quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Uma cidade dinâmica

Como se falou muito do Bixiga, chegou a hora do meu querido Braz, (com Z).
Em todos os bairros da cidade de São Paulo, dependendo dos anos de existência, abrigam fatos, ocorrências, acontecimentos e eventos tais que, com o passar dos anos parecem ficção, invenção popular e, dependendo de sua importância ou clamor que possa ter provocado, são guardados na memória de seus habitantes, pelo menos nos que possuem sensibilidade, mesmo que seja em grau não muito elevado.
Isso ocorre, também e principalmente, com pessoas, isto é, gente que se destaca por vários motivos ou razões, involuntárias personagens que a vida, destino ou quem quer que seja, dependendo da crença de quem os interpreta, uma Entidade Superior. É muito fácil ou mais cômodo se dizer que... “já estava escrito”... sobre uma ocorrência, triste ou alegre mas, os acontecimentos e o desenrolar de nossa existência dependem quase que exclusivamente de nosso empenho e nosso comportamento diante do porvir.

Isso só vem corroborar a crença popular de que a vida é uma tragicomédia, eternamente interpretada por todos nós, entrando e saindo de cena, segundo a vontade do Grande Diretor.
E, nessa comédia ou tragédia humana, quem se destaca no elenco universal? Os mais belos? Os mais inteligentes? Os mais espertos? Os mais valentes ou covardes? Não; nada disso. Os que mais se destacam e permanecem na memória dos saudosistas são os “artistas” que sabem improvisar, os que, sem conhecer nada do “texto”, tem um comportamento diferenciado, são os que levam suas existências de uma forma totalmente liberadas de qualquer esquema ou direção, livres, enfim. E quem são eles ou elas?
São aqueles que se negam a desaparecer de nossa memória, os que marcaram sua presença com “interpretações” de tal forma diferenciadas que sempre, mesmo depois de desaparecerem, continuam vivos, com destaque em nossas lembranças, mais até que determinados parentes ou amigos que passaram por nossas vidas. E todos, acredito eu, que colaboram neste site, tem essa imagem, de seu bairro, do local em que nasceu ou viveu.
Entre eles, lembro do vendedor de pizzas, que ia pelas ruas do Braz, Gasômetro, do Lucas, Assumpção, da Alfandega etc, levando um cilindro de lata, com um diâmetro de, mais ou menos, 25 a 30 cm, preso nas extremidades por uma cinta de couro, nas costas, como se fosse uma espingarda. Entoando uma “canzoneta” napolitana e, ao preço de um mil réis pela pizza inteira, 500 réis, pela metade e 300 réis pelo quarto da inteira. A pizza era do formato do cilindro, ocupando justinho o conteúdo do mesmo, uma sobre a outra, que tinha um metro de comprimento e conforme o desejo do cliente, a maioria crianças, ele tirava o disco do cilindro, punha em cima da tampa e retalhava, se necessário. O sabor era um só, massa bem grossa, conforme a legítima napolitana, (agora os napolitanos fazem mais fina, acho que aprenderam com os paulistas) salpicadas de massa de tomate com alguns fragmentos de aliche, não tinha muzzarela. Foi com ele que comi a primeira pizza de minha vida e... não gostei.
Ou
tro vendedor prosaico, era o que vendia esses doces enrolados, de massa grossa e bem doce, como um canelone, com recheio de creme de baunilha ou de chocolate. Tem um nome característico mas, não lembro agora, é qualquer coisa de “língua da sogra” ou “pastieri” , só sei que ele berrava, em italiano, o nome do doce. Ele vinha todo de branco, até o quepe, levava num balaio preso no pescoço e um manto de grinalda, com uma pinça de metal pra apanhar o produto, sempre para preservar a higiene.
Tinha também, o “machadinho”, que trazia em seu balaio um bloco de doce seco e duro que ele cortava pedaços com um pequeno machadinho e, conforme o valor que o garoto dispunha, 50, 100, 200 ou 400 réis, colocava num pedaço de papel e dava para o cliente. Muitos anos depois fiquei sabendo que ele, o ambulante, se abastecia das fábricas de balas, no Canindé, onde adquiria a massa endurecida por não ter sido manipulada em tempo hábil na formação de balas e com sabores, os mais diversos, sempre dentro de relativa higiene mas, o produto não oferecia nenhum risco , as bases eram (e ainda são) glicose, leite e açúcar e os ingredientes de sabores artificiais.
Um dos mais populares ambulantes, esse de porta em porta, era o vendedor de queijo, espalhafatoso e barulhento como ele só. Ele era polignanes, (natural de Polignano À Mare, província de Bari, sul da Itália); quando a cliente atendia a porta, ele agia com sua proverbial habilidade em manejar o dialeto, enaltecendo a beleza e formosura (que nem sempre correspondia a realidade), oferecendo um naco de queijo que trazia no cesto, a guiza de degustação, antecipando-se em vários decênios na filosofia do marketing moderno. Tudo isso aos berros, sem nenhum constrangimento, como se estivesse na rua. Como nessa época era comum as famílias que moravam em casas térreas, como nós, fazerem um buraco na porta da rua, onde passavam um barbante preso à fechadura interna e, quem chegava da rua, não precisava tocar a campainha; era só puxar o barbante e a porta ficava livre mas, isso só era permitido aos da família ou íntimos. (Imagine um recurso deste, hoje em dia... ). O Ngeuri, esse era o apelido do queijeiro, (le-se nheuro: o escuro) porque, apesar de ser italiano tinha a pele escura, provavelmente pelas influências mouras de séculos atrás, no sul da Itália.

Ele chegava em casa, puxava o barbante e já ia berrando, em dialeto: “Feli, (minha mãe, Felícia) como você está linda hoje, não sei o que faço quando te vejo, tenho vontade de voltar pra casa e mandar minha mulher de volta pra Polignano... mas, tenho os filhos... você sabe, né...” Tudo isso e mais alguns galanteios e finalmente oferecia um pedaço do queijo que vendia, sempre aos berros. Meu pai, que o conhecia há muitos anos, não simpatizava muito com esses arroubos, afinal ele tinha comércio e não se interessava muito por produtos alimentícios vendidos dessa forma. Só sei que, no final, minha mãe acabava comprando um pedaço de queijo, geralmente parmesão, que depois eu é que ralava.
Meu avô materno, quando veio da Itália, com esposa e filhos, no início do século XX, deixou em Polignano um barco de pesca, seu instrumento de trabalho. Aqui chegando, sem outra profissão, arrumou dois balaios de madeira forrados de zinco, um forte bambu, colocando em cada ponta um balaio e, centralizando no ombro o peso, saía pelas ruas do bairro e adjacências, vendendo seu peixe, com clientela cativa e constante. Vincenzo Mônaco, seu nome e nós o chamávamos de “Papê”, caladão como um mudo, resultante dos anos e anos no trabalho de pescador na Itália, onde passava, às vezes, dez a quinze dias fora, dependendo como se achava o mar, em matéria de abundância de peixes. Minha avó, sua mulher, era um doce de vó, aceitava a carranca do marido com uma paciência santificada e, de tanto costurar e arrumar as redes de pesca do Papê, ao deitar sobre as pernas as enormes e pesadas redes, sempre úmidas, contraiu um reumatismo virulento que acabou levando sua vida muito cedo, 70 ou 72 anos.
Havia também, o “Luiz das porteiras”, um mulambo, totalmente abobado, mal vestido e sujo que gritava e corria com os braços meio estendidos pra frente, rindo e babando, que a garotada, quando o via, saia correndo atrás dele, gritando “olha o Luiz das porteiras”, e ele seguia direto para as porteiras da rua Monsenhor Andrade ou para as porteiras do Braz., onde se agarrava nas traves e gritava, chorava e ria. Nunca soube se tinha família, onde morava e se seu nome era, de fato, Luiz. Um figurante, talvez, um extra na dramática história dessa cidade dinâmica que não permite estacionar no tempo pra continuar no seu progresso, indiferente às ocorrências que marcam seus habitantes e que é sempre bom registrar.

Por Modesto Laruccia

7 comentários:

Luiz Saidenberg disse...

Ótimos tipos populares, caro Modesto. Muito bem descritos, e ainda com um toque de filosofia sobre sua exoticidade. Pizza ambulante...deve ter sido o primórdio dos inumeráveis deliverys de pizza que se espalham pela cidade. Narrativa tão saborosa como a pizza( que vc não
gostou) e os doces que povoaram nossa infância.
Aliás, o enrolado com recheio é o famoso canoli, muito típico da Sicilia.
Um abraço.

Miguel S. G. Chammas disse...

Modé, seu texto, como sempre, fantástico.
É um apanhado de memórias, gangas, que poderia muito bem se passar por um tfratado de sociologia urbana.
Muitas dessas atividades comefciais tinhamos tambem no Bixiga e delas ja me socorreram em diversos textos.
É sempre muito bom lembrar os velhos tempos.

Zeca disse...

Belíssima crônica, Modesto! Sua saudade mostra o carinho que dedica a cada um dos tipos aqui retratados e que, em outros bairros, outras cidades, se repetiam, cada qual com seus detalhes. Também tínhamos os nossos vendedores que iam, de porta em porta, levando seus produtos e suas novidades. E como atesta em sua crônica, cada um deles deixou suas marcas que, de alguma forma, influenciaram o crescimento da garotada que os festejava.
Abraço.

Arthur Miranda disse...

Modesto, como sempre adorei seu texto, mas a coisa que mais me tocou foi aquela cordinha passada para o lado de fora que permitia aos amigos intimos e a parentes mais chegados, a abertura da mesma pelo lado de fora, na porta de minha casa lá na Freguesia tinha um barbantinho desses que durou até 1955, e sempre foi respeitado e é dessa confiança e desse respeito que eu sinto saudades. Parem o mundo que eu quero descer.
Aceite meus modestos Parabéns.

Soninha disse...

Olá, Modesto!

Nossa! Quanta saudade!
Como é gostoso falar de nossa infância, de nosso bairro, de nossa vida, de nossa família, de tudo o que vivemos, não é mesmo?!
Lendo seu texto, senti tanta saudade de meus tempos de menina (que não faz tanto tempo assim, né...rsss), dos vendedores ambulantes das guloseimas que você citou...escutávamos ao longe a tramela do vendeiro de lingua de sogra e saíamos em disparada para pedir um troquinho para nossa mãe ou nosso pai...que delícia!
O vendedor de quebra-queixo, do pirulito em forma de guarda-chuva ou de chupeta, do algodão doce, de balas, de bijou, de sonhos....que delícia! Com estas suas recordações, senti até o sabor destas guloseimas que estarão para sempre em nossa memória gustativa.
Muitos doces que fizeram parte de nossa infância e que farão guarida em nossa lembrança para sempre.
Valeu, Modesto!
Show!
Obrigada.
Muita paz!

Leonello Tesser (Nelinho) disse...

Modesto, mais um belíssimo texto repleto de recordações do velho Braz que eu também conheci, em casa também tinha o cordãozinho para abrir a porta da rua, bons tempos aqueles, parabéns, abraços, Nelinho.

Nelson de Assis disse...

Modesto, 'fratelo mio'.
Nunca, o Braz será ofuscado pelas histórias do Bixiga, ainda mais se contadas por voce. O Braz tem a sua própria identidade e, narradas pelas lembranças que são só suas, fazem deste bairro uma referência única e autêntica.
Devo-lhe uma linda história deste vairro para voce e para o site mas, acredito não ter vivido o suficiente desta atmosfera para escrever algo com tamanha profundidade histórica. Contudo, tentarei, para fazer justiça a um dos mais emblemáticos bairros de São Paulo. Parabéns por tão bela crônica, repleta de 'saborosas' lembranças.
Abraços, Nelson.