sexta-feira, 3 de setembro de 2010

As calçadas por onde andei


imagens:
antiga linha Sorocabana, estação Cerqueira César
Pizzaria Castelões no Braz
Cine Oberdan
antigo troleibus da Praça da Bandeira



No principio, era barro.
Não, se pudesse considerar uma calçada, pois se separava da rua apenas pelo rastro deixado pela água que escorria, mas na Rua Bogotá, lá na Freguesia do Ó, no despertar da infância, era um barro só.
A distância não era empecilho. As porteiras na rua Santa Marina judiavam não só da gente, mas de todos que precisavam cruzar as linhas da Sorocabana e da Santos Jundiaí, para ir ao centro da cidade ou dele vir. A subida da Rua Javorau, à esquerda a igreja da Freguesia, à direita a Av Itaberaba, pronto, estávamos em casa.
E foi ali, praticamente no meio do nada ,é que me entendi como gente.
Na rua Guaicurus, na Lapa, um bar e restaurante em frente ao Tendal, onde hoje é um centro cultural(acho). Jogar bola no paralelepípedo ou então colocar uma pedra no trilho do bonde só pra ver o motorneiro descer e ter o trabalho de recompor a linha. As ruas Vespasiano, Caio Graco, Tito, Faustolo, Duilio, me faziam imperador nas brincadeiras diárias.
Brincadeiras, vírgula, pois eu só ia jogar bola depois de encher a geladeira de bebidas e de lavar o estrado (alguém sabe o que é estrado, hoje ?) E voltasse depois das quatro da tarde
que eu ia ver.
A Lapa me levou às matinês do cine Nacional – pobre Olímpia – e a querer imitar na rua o que o Rocky Lane ou Hopalong Cassidy faziam na tela.
Nesse meio tempo, o velho e querido Brás, com seus mistérios e delícias. Quantas discussões sobre futebol eu saboreei no Castelões, beliscando também as delicias que o gerente esparramava no balcão. Quanto provolone e garrafas de vinho, aquelas bojudinhas, enfeitadas com palhinhas penduradas nas prateleiras, quantas palavras desconhecidas, quanta saudade!
E a igreja, então? Missa solene com aquelas moças todas de branco, de fita azul no pescoço, missa cantada, em latim, as vozes do coro emoldurando e a raiva contida quando o padre se dirigia ao púlpito, eu sabia que a missa iria ser longa, porque ele ia falar, falar, falar.... Mas, tenho que ser desculpado, eu era criança e não sabia nada. Intermináveis procissões, pés se arrastando, velas bruxuleando ao vento. Que medo quando a Verônica fazia seu canto. Eu era criança e não sabia de nada.
Quando não tinha futebol, tinha o cine Glória, ou então, o Piratininga, (o maior do Brasil – 1700 lugares se não me engano), ou o cine Oberdã, mas este era mais difícil porque tinha que atravessar as porteiras, o Largo da Concórdia e ai complicava.
O mais legal no Brás, depois das cantinas, da igreja, era conviver com aqueles italianos que falavam alto, gesticulavam e que traziam sempre algum queijo ou outra delícia qualquer do Mercado Municipal. E toca jogar tômbola depois do almoço. Só não gostava quando alguém trazia na sacola uma galinha viva que iria virar ensopado no dia seguinte. De engraçado, só a sacola mexendo e uma cacarejante cabeça aparecendo de vez em quando, sem saber o que lhe estava reservado.
Depois, a Rua Groenlândia.
Se a rua Bogotá foi o jardim da infância, a Guaicurus, o primário, a Groenlândia foi o ginásio e a faculdade, mestrado e doutorado, tudo junt
o.
Ali, eu aprendi tudo.
As ruas sinuosas, casas de muros baixos, jardins enormes, calçadas floridas, os nomes dos países, - Jardim América, Jardim Europa - pessoas discretas e abastadas, famílias tradicionais, carros importados, choferes elegantes, empregadas uniformizadas, patroas exigentes, cônsules estrangeiros, governadores de estado, o industrial que foi prefeito, que foi governador, que foi secretário, que foi preso, que foi solto, que foi deputado federal, este ainda está por lá.
A nata da sociedade morava por lá. A mansão dos Matarazzo ocupando um quarteirão inteiro; O clube Pinheiros na estreita rua Iguatemi, um projeto novo; diziam que ia ser um shopping ( o que era isso?) Foi uma faculdade de primeira. O clube Paulistano com suas aristocratas damas e péssimas jogadoras de tênis que sempre mandavam uma bolinha de tênis por cima do muro. E nós lá, de tocaia, só esperando uma delas voar em nossa direção, na Rua Colômbia.
E que bolinhas fabulosas para se jogar taco! Jogar taco era outra delícia. Às vezes, uma bolinha bem rebatida sumia lá longe e a gente conseguia (naturalmente) acabar com o jogo. Outras vezes, uma bolinha mal rebatida se perdia na vidraça do vizinho e a gente tinha que, obrigatoriamente, acabar com o jogo. O jogo acabava, mas, dois ou três dias depois, depois de passada a raiva do vizinho e a vigília no Paulistano para outra bola, tudo recomeçava.
Na Groenlândia tinha uma vila, onde se reunia a fina flor da criançada para ficar de mal ora com um ora com outro, sempre amolando os pais. Bem, passadas algumas pedradas, nos filhos e não nos pais e muitas surras, dos pais e não dos filhos, alguns ficaram de bem e estão de bem (e muito bem casados) até hoje, Graças a Deus .
Andar de tróleibus era outra missão bem possível e agradável. Subir a Augusta, escolher um cinema; Paulista, Majestic, Picolino, Marachá ou Regência, estes primeiro, o Astor veio depois. Tomar um lanche no Frevinho ou no Frevo? Ou, ao invés disso, que tal descer até o Bolonha e devorar uma empadinha ou duas? E, se a gente descesse até a Ayrosa no Largo Paissandu e comesse umas pizzas no balcão? Tem muita história para se falar deste pedaço.
Longas caminhadas da Groenlândia subindo a Rebouças e chegando ao Pacaembu e dali, com a cabeça quente ou não, seguir até o Brás e devorar ou ser devorado por aqueles italianos nos comentários do jogo, sempre numa cantina e sempre com antepastos e sardelas (hummm).
Por fim, o começo da história. Tantas foram as calçadas que andei, que me envaideço por ter as da Paulista como primeiro caminho. Vim na barriga e no colo fui ,mas a maior avenida foi o palco dos meus primeiros resmungos. Precisava mais ?

Não sou sambista nem nada, mas nasci com a Bela Vista aos meus pés.
Não sou poeta nem nada, mas tinha que começar tudo na Paulista. E ,quando eu me for desta para outra melhor, talvez seja enterrado por aqui, ao som de dois amigos, um com seu tamborim – ta ta ta ta ta tá, outro com seu surdo Tum tum tum tum – ta ta ta ta tum tum, ta ta ta tum tum, arrastando os pés nesta Paulista que tem trepidante amanhecer das manhãs serenas, o sorriso de lindas morenas, querendo a todos enfeitiçar; Paulista onde um sambista sua vida toca e, num instante, sua tristeza enxota e faz a alegria consigo morar; nesta Paulista de tantos sonhadores tropeçando nas calçadas, muito boêmio namorando as madrugadas, sonhando com a sorte grande que ainda não ganhou; nesta Paulista onde aquela menina não fez troça nem pirraça, uma Silvinha menina tão cheia de graça que meu coração, meu coração guardou.

Ah, as calçadas por onde andei.

Por José Carlos Munhoz Navarro

8 comentários:

Miguel S. G. Chammas disse...

Sou fã incondicional deste autor. Ele sabe escrever como poucos. Pena que não se valorize e faça um texto novo por semana.
Zé, escreve um poucio mais e deixe os numeros para trás.

Soninha disse...

Olá, José Carlos, querido amigo!

Assim como Miguel, também sou fã de tudo o que você escreve.
Seu texto, rico em detalhes e sem perder o romantismo típico dos sonhadores, nos levam a um passeio delicioso por São Paulo antigo, tando como recompensa, conhecer um pouco de sua história e de Silvia.
Valeu, amigo.
Queremos mais, tá?!
Obrigada.
Muita paz!

Arthur Miranda disse...

Navarro fiquei extasiado nessa sua historia, me vi andando de bicicleta alugada a três cruzeiros à hora pela Avenida Itaberaba, descendo sem freio a Rua Javoraú, avançando pela Santa Marina atravessando a ponte ainda de Madeira sobre o Tietê passando em frente à Vidraria Santa Marina cruzando as porteiras da Água Branca pelos trilhos da Santos a Jundiaí e da Sorocabana chegando a Rua Guaicurus, caminhando de Bicicleta por ela passando pelo cine São Carlos, depois o Tendal, chegando até a Rua 12 de Outubro atravessando as duas porteiras da Lapa, alcançando então a Lapa de Baixo passando em frente à Indústria Martins Ferreira, passando por cima das duas Pontes de Madeira na Rua Cel. Bento Bicudo no Piquerí, entrando e subindo a Avenida Paula Ferreira, em frente à Vila União e Vila Arcádia passando em frente ao Velho Gitema e chegando ao Largo da Matriz Nova na Freguesia bem ao lado da Igreja de N. Sra. do Ó. me vi então descendo a Rua Antonieta Leitão chegando novamente no inicio da caminhada, ou seja, Avenida Santa. Marina em Frente o Cine Clipper, e devolvendo a bicicleta na bicicletária onde aluguei a mesma isso um pouco depois de uma hora de aluguel, e que o dono não cobrava os poucos minutos passados. Essas andanças eram sempre feitas com mais dois ou três companheiros.
Parabéns pelo texto e por favor mande mais, muito mais, seu texto lubrificou minha memória, e acho que também a de muita gente.

MLopomo disse...

Zé Carlos. Me vi criança no seu texto. Quanta coincidência de passos, amigo. Como ajuda somente. Na Rua Guaicurus onde era o tendal, hoje é a estação Ciência, onde levei meus filhos para trabalhos escolares. O cine Piratininga tinha mais de 2,500 lugares, Na Rua Groelândia e grande parte dos jardins Europa e Paulista quantos terreno baldios tinha não? Que pena que no texto, você não chegou até a Vila Olímpia, por onde pisou também. Como sempre Zé, você estraçalha o texto. Parabéns.

Leonello Tesser disse...

Navarro, que pena que você demora a escrever seus maravilhosos textos, me vejo ao seu lado caminhando por essas calçadas que você tão bem descreveu, a Silvinha é uma mulher de sorte, parabéns pela crônica, abraços, Nelinho.

Nelson de Assis disse...

Amigo Zé. Seu texto não é para ser lido. Alguém terá de lê-lo e, quem ouví-lo, terá de estar de olhos bem fechados e assim, poder viajar no tempo e no espaço, saboreando a cada passo, um pouquinho de cada saudade dos caminhos, ruas e calçadas.
Sim, ainda me lembro de um certo 'estrado' de madeira que lavávamos nos dias de sábado, lá na mercearia de meu 'tio' Jabra, no Bixiga.
Da velha Freguesia, me lembro do bairro (Vila Iório) que morei, quando então me casei. Foi por pouco tempo mas, viví o bastante nesta atmosfera da zona oeste, com a Santa Marina e a Lapa.
Boas saudades voce me trouxe, num texto repleto de poéticas lembranças.
Abraços

Zeca disse...

Nossa, Xará!!!
Fiquei aqui, como se estivesse hipnotizado pelo seu texto, que me levou por calçadas por onde andei e também por outras, que jamais pisei, mas com a nítida sensação de conhecê-las todas. Vejo pelos comentários dos seus leitores que você demora um pouco para escrever. Por favor, faça uma forcinha e presenteie-nos com outras crônicas/poemas com mais regularidade. Sem consultá-los, tenho a certeza de que este pedido pode ser feito em nome de todos.
Abraço.

Modesto disse...

Navarro, eles, acima disseram quase tudo, menos uma coisa: vc é demais modesto (adj., o substantivo sou eu), vc tem vigor e argumentos pra vários textos.
Um passeio como este, não se vê toda hora; sem se preocupar com o trânsito, vai de uma bairro a outro, num piscar de olhos. Belíssima narrativa de cunho turístico, bem redigida e repleto de informações. Parabéns, Navarro.
laruccia