terça-feira, 14 de setembro de 2010

Bota uma meia sola

Sempre apreciei bons calçados. Fetiche, dirão alguns. Mas tenho outra explicação, que vem de minha adolescência. Em verdade, é sempre fácil para a gente achar uma explicação, como fazia Freud. Mas creio ter minhas razões.
Em Campinas, quando frequentava o mais venerável e tradicional colégio da cidade, as finanças da casa iam mal, não correspondendo a tanta pompa e circunstância.
Então, meus pais compravam-me sapatos com um nome armênio, Bogosian, Kherlakian, algo assim. Os benditos sapatos, de qualidade duvidosa, não podiam pegar u
ma chuva que a sola, mais parecendo papelão, inchava e começava a se desgastar rapidamente.
Para agravar o processo, eu muitas vezes descia do bonde na praça central e seguia a pé para casa, talvez dois quilômetros distante.
Logo surgiam buracos na sola, como nas ruas paulistanas. E o remédio era colocar um forro de jornal, para o vexame não ser total.
Por isto, assim que tive melhores condições financeiras, comecei a comprar não só belos calçados, mas boas roupas. Lembro-me que, nos tempos de colégio, em São Paulo, para aumentar a durabilidade, costumava-se colocar uma chapinha na ponta. Então, ficávamos todos parecendo sap
ateadores da Broadway, tilintando a cada passo.
Outro costume da época era botar uma meia-sola, para salvar o calçado. Nunca gostei disso. Ficava aquela emenda no meio da sola e o sapato, reconstituído, nunca mais ficava o mesmo. Mas, haviam muitos sapateiros naquela época e, com certeza, cheios de clientes.
Não faziam mais sapatos e botas como outrora, mas, consertos não lhes faltavam.
As coisas mudaram muito. Acho que um dos primeiros sinais foi o Vulcabraz, com sola de borracha indestrutível. O sapato acabava, mas não a sola.
As solas de borracha foram virando maioria, mesmo em calçados finos. Depois veio a invasão dos tênis, abandonando as quadras e congestionando as ruas.
Assim, o trabalho dos bons sapateiros foi ficando mais limitado e suas oficinas mais raras. Mas, ainda subsistem; sempre há um conserto a fazer, um salto ou fivela a substituir. Eles continuam e, creio, até bem.
E a meia-sola? Deverá existir, certamente, ainda quem mande colocar. Lembro-me de meu amigo, “A Velha Serpente”, sobre quem escrevi várias vezes.
Ele, apesar de riquíssimo, em certas coisas era parcimonioso para gastos. Havia comprado na Rua Maria Antonia, perto de nossa agência, uns esplêndidos mocassins, fabricados por um espanhol.
Anos mais tarde, continuava usando esses mesmos calçados, ou os descendentes deles.
Certa vez em que lhe dei carona para casa, os ditos cujos necessitavam reparos.
Ele, morador nos Jardins, tinha ido ao Shopping Iguatemi, providenciar o conserto, mas pediram-lhe uma fortuna para trocar a sola. Indignado, consultou sua empregada, moradora de um mal afamado e distante bairro de nossa periferia.
- Quem sabe lá eles dão um jeito, disse. Afinal, são especialistas em buracos, assim que vêem, sabem se foi de 38, 45 ou 9 milímetros!
É isso, bom e saudoso amigo. Continuaremos colocando meia-sola, senão nos sapatos, com certeza no incerto dia-a-dia de nossas vidas. Caminhemos!

Por Luiz Saidenberg

8 comentários:

Miguel S. G. Chammas disse...

Luiz, eu tambem vivi esses problemas, sapatos de sola de pneu duramte muitos anos me maltrataram os pés.
Depois, bem, depois as coisas melhoraram e passei a comprar sapatos de alta linhagem.
Na Rua Maria Antonia, 185 é onde está localizada a Porto Free, e que faz sapatos maravilhosos, principalmente para se dançar e, omde até hoje compro meuis sapatos.
Valeu a pena ler teu texto.

Soninha disse...

Olá, Luiz!

Para meus pés tamanho 36 sempre foi fácil comprar calçados. Então, em boas lojas sempre achei o que queria.
Mas, sempre considerei imortante a confecção de sapatos adequados para cada pé...Por isso, os sapateiros são imprescindíveis.
Lembrei-me da época em que meu filho teve que usar botas ortopédicas, até 6 anos de idade...tínhamos que ir a uma sapataria especializada para fazer as botas; e lá, eu via muitas pessoas mandando fazer sapatos especiais, tamanhos especiais, palmilhas especiais, modelos diferentes, enfim, da maneira mais adequada para seus pés.
Ainda hoje tem esta sapataria, na Vila Prudente e o proprietário tem necessidades especiais e ainda trabalha confeccionando os calçados.
Muito legal.
Adorei seu texto, viu?!
Obrigada.
Muita paz!

Unknown disse...

Saidenberg, sofri muito com sapatos, pois tenho o arco dos pés muito acentuado.Hoje consigo boas marcas e muito conforto. Mas lembro-me que meu marido no começo de casados, tinha somente 2 pares de sapatos. Um marrom e outro preto. Certa vez, levei um deles, para colocação da "meia sola" mas troquei os pares e nem o sapateiro percebeu. Quando fui buscar, deu o maior rebú. Só aí descobri que meu marido passou a semana, trabalhando com um pé de cor marrom e outro preto. Mas hoje, posso dizer que caminhamos com solados diversificados e bem mais confortáveis.
Parabéns, um texto muito gostoso de ler.

Zeca disse...

Saidenberg!

Ótima lembrança, essa sua! Tá certo que ainda sobrevivam alguns sapateiros por aí e até que ainda exista alguém que mande colocar meia sola nos sapatos velhos, mas precisamos reconhecer que isso está ficando cada vez mais raro.
Aqui em minha cidade, por exemplo, não existe nenhum sapateiro!
Mas lembro bem de como eram as coisas nas décadas de 50 a 70, onde, antes de comprar um novo par de sapatos, o antigo era recauchutado, às vezes até duas vezes... depois, a oferta abundante foi deixando essa prática para as nossas lembranças.
Abraço.

Leonello Tesser (Nelinho) disse...

Luiz, boas lembranças, aquí no Ipiranga o Tonico sapateiro resolvia todos os problemas, lembro-me que colocávamos chapinha também no salto para durar mais, abraços, Nelinho.

Laruccia disse...

Bem, falar de calçados (ou sapatos, é mais íntimo), como vc. fala, Saidenberg, em matéria de narrativa, não é uma simples "meia sola" mas, sim a sola inteira. Um texto primoroso, enxuto, bem colocado e oportuno. Vc colocou bem o assunto pois, vivemos o dia todo sobre os pés e eles precisam de um conforto máximo. Se seu sapato é um tantinho desconfortável, vc não trabalha direito e chegando em casa, a primeira coisa que faz é procurar os chinelos. Gostei do tema pois refere-se a primeira profissão de minha vida. Tenho algumas histórias pra contar mas, esse espsço e seu, não meu. Obrigado, Luiz.

Arthur Miranda disse...

Caro Simões, jamais tive um furo no sapato até os meus 14, pois antes praticamente nunca tive sapatos, sempre alparcatas e sandálias, minha mãe viúva e muito pobre nunca teve dinheiro para comprá-los. Meus sapatos sempre foram ganhos de parentes e vizinhos, então eu pouco usava, pois eram grandes demais ou apertados, e eu só usava-os em casamentos, e aniversários, e assim mesmo sempre acabava tirando-os do pé no meio da festa. Só pude possuí-los depois dos 14 anos quando passei a trabalhar e a comprá-los daí então levei muitos deles ao sapateiro para colocar meia sola, chapinhas nas pontas na ponta da frente e na detrás para que o mesmo durasse o maximo possível. Adorei à sua narrativa e me trouxe boas recordações da luta de minha querida mãe para nos criar (eu e mais duas irmãs). Obrigado, amigo.

Nelson de Assis disse...

Boas e gostosas saudades da 'meia sola', até a aparição da 'sola inteira', do salto 'Amazonas' do 'Neolite', até chegar ao Vulcabrás e o Passo Doble.
Não era só a sola que furava. A meia, invariavelmente se rompia e na sola do pé nascia uma bolha que só ia doer dias mais tarde.
Abraços, Nelson