sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Baianada paulista II

Depois da saga dos valentes nordestinos (baianos ou não) em 'Baianada Paulista', volto à carga com uma nova aventura, desta feita com quatro personagens que conheci na minha já distante juventude, vividas na velha e querida Rua Santo Antonio, no bairro do Bixiga. Esta narrativa envolverá também outros participantes, a exemplo de 'seu' Tito (‘Seu Tito’: um grande bixiguense), familiares e amigos nossos, todos 'bixiguenses'. Estamos na década de sessenta e a ditadura militar impõe as 'novas regras' a todos os cidadãos brasileiros. Mandatos políticos são cassados e um séquito de exilados de todas as esferas culturais buscam, em outros países, novos ares e a calmaria necessária para refletirem sobre a situação da pátria mãe.
No Bixiga, a vida não difere muito dos acontecimentos às voltas com a situação nacional e todos buscam suas alternativas econômicas para a necessária manutenção econômica e familiar, já que a velada recessão imposta pelo regime militar havia atingido vários setores da indústria e do comércio, causando demissões. O seu Tito, assim como o meu pai e outros trabalhadores, foram surpreendidos com a 'nova ordem econômica' imposta pelo regime militar e, dispondo de algum recurso financeiro, adquiriu um pequeno terreno na Rua Santo Antonio, onde originalmente havia uma 'maloca', e o transformou em um estacionamento para automóveis. Foi um verdadeiro 'achado', pois muitas das casas e prédios de apartamentos de nossa rua não dispunham de garagem para aquele
s que tivessem um automóvel. Foi a fome com a vontade de comer, e o 'pirão' estava servido. Ou seja, seu Tito estava coma a faca e o queijo nas mãos.
Estacionamento inaugurado com o sugestivo nome do mais novo membro da família Maita, foi batizado 'Estacionamento Marcelo' e já contava com uma freguesia fixa de mensalistas e alguns ocasionais. O movimento crescia sempre nos dias e noites de sextas-feiras e sábados, por força das cantinas e dos bares das redondezas. A necessidade de um gerente para administrar o novo empreendimento de seu Tito 'bateu' de frente com o Zezito, um baiano da cidade de Tucano, saído não sei de onde e que, adquirida a confiança e acertados os devidos pormenores, passou a ser o responsável pela guarda e manutenção do estacionamento.
Seu Tito era assim. Quem dele necessitasse e ele podendo atender, tudo certo! Zezito era um tipo característico de baiano que não deixava dúvidas quanto a sua origem. Bem falador (falava mais do que papagaio) e gostava das coisas corretas. Muito responsável e cioso, cuidava do estacionamento como se dele fosse e, com o decorrer do tempo, conquistou a simpatia e confiança de seu Tito, assim como a de todos os fregueses do pequeno comércio.
Eu, de pronto, fiz amizade com aquela figura exótica que trazia estampada a ‘baianidade’ co
ntemporânea e sertaneja e passamos a travar nossos entendimentos. Contudo, o meu novo amigo ainda se sentia um pouco destacado do convívio 'bixiguense' e as saudades da 'boa terra' por vezes o prostrava em visível tristeza. Foi quando por lá apareceram três 'conterrâneos' seus, o Braulio, o 'Preto' e outro que não me recordo de seu nome, mas o apelidei de 'Dengoso', pelo modo descansado e relaxado no seu falar.
Foi uma só alegria esse inusitado encontro que esbarrou num pequeno problema. Todos estavam sem lugar para ficar, situação essa que, depois de falar com o seu Tito, todos se 'arranjaram' em um cômodo improvisado nos fundos do estacionamento. Era uma espécie de 'mezanino' onde o Dengoso armava sua rede de dormir e os demais, em camas construídas rusticamente pelas mãos hábeis de Preto, que se revelou um bom marceneiro. Quanto ao Braulio, este tinha emprego e era o mais nam
orador da turma. Passado o tempo, a vida fluía tranquila, até quando o Zezito me revelou uma sua vontade que era a de aprender a dirigir automóvel. Pensei um pouco e respondi-lhe: - E porque não?
Seu aprendizado deu-se até que rapidamente, pois a área do estacionamento era perfeita para o exercício de pequenas manobras e assim o Zezito, ao cabo de alguns dias de 'lição prática', aprendeu a dirigir (ou pelo menos manobrar). Em uma das sextas-feiras de movimento no estacionamento, à noite, um ocasional freguês adentra o estacionamento para guardar o seu carro. Não se tratava de pessoa comum. Era o comediante Ronald de Golias e sua família, que viera a uma das cantinas e aportou com seu Galaxie LTD verde-cana e que foi por mim recepcionado.
O Zezito não quis 'manobrar' o enorme veículo por achá-lo muito grande e temeu um acidente ao posicioná-lo na vaga, transferindo para mim a 'responsabilidade'. Feita a ação, surge na entrada do estacionamento um outro veículo. Desta feita, não era ninguém de nosso conhecimento, mas o carro é que foi um drástico problema para o Zezito.
- “Nelson...”, gritou ele.
- “O que foi, Zezito?”, respondi.
- “Venha cá, ver essa 'peste' de carro que não tem o pedal do 'desembréio'.”
- “...???...”
- “Corre aqui e veja você mesmo...”
Corri em direção do Zezito que vociferava:
- “Como é que o 'cabra' passa as marchas desse ‘infeliz’ se não tem o pedal do 'desembréio', 'oxente'...tá com a 'molesta'...”
E depois de vociferar, blasfemar e se 'retar' com a falta do pedal do 'desembréio' disse-lhe:
- “Zezito, não se 'avéxe' não, více! Esse tipo de carro tem o câmbio automático. Só não lhe falei antes porque é um pouco difícil de um deles aparecer por aqui...”
- “Mas, apareceu, né...”
- “Pois é. Apareceu. Mas, fique tranquilo. Vou lhe mostrar como se dirige um desses.”
Passado o 'retamento' de Zezito, coloquei-o ao meu lado no tal veículo sem o pedal do 'desembréio' (era uma Mercedes 280) e passei a mostrar-lhe como conduzi-lo. Zezito não se convenceu e achou por bem estabelecer um acordo comigo. Quando por lá chegassem carros 'normais', ele mesmo faria as manobras e os estacionaria e, caso fossem aquelas 'monstruosidades' do tipo do carro do Golias ou 'capenga' de pedal, estes seriam de minha total e exclusiva responsabilidade.
Não consegui segurar a risada e questionei:
- “E, se por um acaso, eu não estiver aqui, como você fará?”

- “Daí, eu chamo o seu Tito.”
- “E, se ele não estiver?”
- “Então, eu chamo o Amadinho.”
- “E se o Amadinho não estiver também?”
- “Olhe, Nelson. Você já tá procurando é confusão. Então eu peço para o dono mesmo estacionar e se ele não quiser, que largue o 'cabrunco' dele no meio da rua e se pique...”
- “Mas, não é assim não, Zezito.”
- “Pois, que se não for assim, vai ser.”
- “Você precisa ter mais paciência. A coisa não é tão difícil assim e, com jeito e treino, amanhã você poderá estar dirigindo até jamanta...”
- “É, mas por enquanto, vamos ficar naquilo que a gente se acertou.”
Algumas vezes mais a Mercedes automática foi nossa 'cliente', bem como outros carros, igualmente automáticos ou hidramáticos, para o desespero do Zezito. Não sei o que se sucedeu depois de certo tempo com o Zezito e o estacionamento do seu Tito, pois dali a alguns meses, minha família se mudaria de casa e de bairro, indo morar no distante bairro do Tremembé, visto que o proprietário da casa em que morávamos não quis renovar o contrato de aluguel e já tinha proposta para a sua venda, o que foi feito assim que nos mudamos. Das vezes que passei em frente ao estacionamento, pude ver o Zezito às voltas com os carros a serem estacionados e imaginava como estaria ele se saindo com os carros sem o pedal do 'desembréio'.
De tudo e de todos, ficaram as lembranças e as saudades, mas do estacionamento, ainda consigo visualizá-lo através do 'Google Earth', mesmo que em estática imagem. Quanto ao Braulio, Preto e o Dengoso, estes também nortearam seus caminhos e devem estar em algum lugar por aí e, com certeza, guardam as mesmas saudades.

Por Nelson Assis

8 comentários:

Zeca disse...

Pois é. Nelson! E pensar que devemos tanto do progresso de nossa cidade e de nosso estado a esses "baianos" todos que para cá vieram em busca de uma vida melhor e nem sempre são lembrados ou valorizados! Parabéns pela lembrança e até mesmo pela ponta de carinho que o texto revela pelo personagem!
Abraço.

Laruccia disse...

Num bairro como o Bixiga, cada morador é um artista. Caso seja mero figurante na dramatologia do mestre Nelson de Assis, será devidamente valorizado seu empenho pois, nada escapa desse escrivinhador, autentico observador do quotidiano. Mesmo que ele esteja vivendo longe de São Paulo e décadas de anos já passaram, a memória viva do Assis está sempre "fresquinha", (a MEMÓRIA, bem entendido)pra contar estes trexos de encantamento bixiguence. Fratelo mio, auguri e parabéns. Laruccia

Soninha disse...

Olá, Nelson!
Os "baianos" de todo o nordeste que vieram para cá, deixam histórias incríveis para que o paulistano que foi para lá possa nos contar.
Histórias que somaram e fizeram a própria história de Sampa.
Ainda há muito que nos contar, não é mesmo, amigo?!
Como creio na pluralidade das existências, quem sabe até eu, em outras épocas, já não tenha assentado alguns tijolos ou carpido algum jardim de Sampa e estou inclusa na baianada paulosta, né?!
Mas, valeu, Nelson!
Adorei!
Obrigada.
Muita paz!

Soninha disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Soninha disse...

Oie...de novo!
Na correria só fiz atrapalhadas...rss
Perdoe-me, tá?!
Eu quis dizer baianada paulista, viu?!
kkkkkkkkkkk
Mais paz!

Luiz Saidenberg disse...

Pois é, Nelson. Vc conheceu, e relatou bem o melhor desses dois mundos; o dos baianos no Bexiga e o de um bexiguense na Bahia...Saravá ! Abraços.

Arthur Miranda disse...

Nelson, que legal essa sua historia, muito divertida, fiquei inutilmente esperando que o tal Zezito ao estacionar um fusquinha e ao abrir o capô descobrisse que o mesmo não tinha motor, como acontecia na propaganda da época com o querido e saudoso companheiro, Rogério Cardoso.

Leonello Tesser (Nelinho) disse...

Nelson, no estacionamento que trabalho já tivemos também os bons baianos e colaboraram bastante para o sucesso do proprietário, abraços, Nelinho.