quarta-feira, 14 de julho de 2010

Um domingo perdido no tempo

Era vez um reino muito, muito distante. É o que me parecia São Paulo, uma miragem ilusória, banhada pelo sol da tarde, naquele domingo na Vila Palmeiras.
Faz muito tempo. Recém chegado, eu cursava o Colegial, como se dizia na época. O Científico, mas, só mais tarde descobriria que o Clássico teria sido melhor, por meus pendores por Ciências Humanas. Eu trabalhava de dia, ou, procurava trabalho, pois o dinheiro deixado por meu pai esgotava-se rapidamente.
Curso noturno, Colégio Roosevelt de Aplicação, Rua Gabriel dos Santos, Perdizes. As aulas não comportavam modismos ou frescuras, nem muita conversa. Geralmente mais velhos, os alunos vinham de seus empregos para recuperar o tempo dos estudos regulares. Como um supletivo, nos nossos dias.
Boas pessoas, fiz ali vários amigos. Era bom aluno, mas, destacava-me mais no desenho, caricaturando todos, professores e alunos. Meu melhor amigo era Nelson, morador da longínqua Vila Palmeiras, na zona norte. Carro ainda nem sonhava, mas, a condução fácil e tranquila, o ameno trânsito, tornavam toda cidade acessível.
Assim, qu
ando ele me convidou para almoçar em sua casa num domingo, lá fui eu. Não sei por que caminhos, quantas conduções, mas, certamente, cheguei lá. Família italiana, com todos os seus clichês: mesa farta, massas, frango, vinho e, enquanto o pessoal partiu para uma sesta, meu colega e eu seguimos para o campo de futebol mais próximo.
Afinal, ele era um dos craques locais e, com pança cheia ou não, a disputa era obrigatória. Sapo de fora, assisti a partida das arquibancadas, ou seja, os barrancos, lotados de torcedores, da acidentada região. Fim de jogo, nada de brigas, os adversários se confraternizando no boteco vizinho e era só alegria.
Fazia, como disse, sol e calor. Sentiria depois os efeitos nas queimaduras, pois, filtro solar ainda era ficção científica naqueles tempos. Voltei da vila pelos mesmos caminhos estranhos e tortuosos da vinda, mas certeiros. O bom filho sempre à casa torna.
Éramos, paulistanos ou forasteiros como eu, todos ingênuos, numa São Paulo pacata e ingênua, também. Teria, ainda, muito a contar dessa época, meu primeiro porre, a primeira incursão à mítica e misteriosa Zona, as sessões de cinema, notadamente no Itamaraty, da Rua Barão de Tatuí, compartilhadas com os colegas de escola.
De como, findo o curso, vi-os poucas vezes mais, pois São Paulo, num vórtice irresistível, já começava a sugar-me para sua terrível máquina de produção. Era cair fora ou merg
ulhar e fui arrastado pela correnteza, sem pensar ou resistir. Ao meu lado, tentadoras sereias cantavam-me aos ouvidos as apregoadas maravilhas do futuro: mulheres, fama, dinheiro. O céu era o limite.
Ás vezes cantavam, literalmente, como a do prédio da Gazeta, pontualmente sempre ao meio dia. Sim, a cidade me queria e carregava, como um ídolo de rock nos braços dos fãs. E eu segui, subi a alturas, desci a abismos e vejo-me agora no mesmo lugar, ou quase.
A cidade é a mesma, embora completamente outra. Então, só com espanto e certa incredulidade, consigo ainda lembrar-me de tardes de domingo como aquela. Um estranho lugar chamado Vila Palmeiras, naquela cidade desaparecida.

Por Luiz Saidenberg

9 comentários:

Miguel S. G. Chammas disse...

Luiz, como eram boas aquelas tardes de domimgo.
Quanta paz, quanta reunião familiar, quanto nhoque da mamma, quanta matinés, quanta saudades....
Eu, mesmo com raizes nascidas nesta nossa Sampa, tambem fui por ela tragado e hoje, lambendo as feridas que o tempo nos dá, relembro os dias de antanho, igualzinho a você.

Soninha disse...

Olá, Luiz!

Uqnto gratificante, para mim, está sendo estas leituras maravilhosas...estas recordações dos autores, seus relatos, suas histórias...
Trazem de volta a infância distante. Doces recordações de almoços em família, de festas natalinas, de peraltices infantis e juvenis, de pessoas queridas e de outras nem tanto.
Muito legal seu texto. Recordei os almoços de domingo em nossa casa.
Valeu, Luiz!
Muita paz!

Arthur Miranda disse...

Luiz, linda narrativa e ainda falando da Vila Palmeiras, que pertence a Freguesia do Ó, bateu uma imensa saudades do bonito futebol jogado nos campinhos entre barrancos. E lá na Vila Palmeiras havia um timão chamado Corintinha da Vila Palmeiras (pura incoerencia). Acho que foi nesse campo que você assistiu essa partida com seu amigo Nelson. Parabéns.

Leonello Tesser disse...

Luiz, tardes de domingo que já não voltam mais, parabéns pelo texto, abraços, Leonello Tesser (Nelinho).

Unknown disse...

Saidenberg, como disse a Soninha, é muito gostoso ler essas estórias, repletas de recordações. Através delas, também conhecemos um pouco mais de quem as escreve. Esses domingos simples e de mesas fartas, deixaram muita saudade.
Um abraço / Bernadete

margarida disse...

Saidenberg, muito bom conhecer um pouco mais da sua historia e da sua vida. Bons tempos aqueles! Um abraço.

Modesto disse...

Vou fazer de novo, acho que o primeiro comentário deu crepe.
Luiz, vc. resgatou uma gota de sua eterna e prodigiosa memória ao descrever um domingo inesquecível. Com muita poesia e delicadesa no trato de observações em detalhes que, nas mãos de um neófito não teria esse resultado. Parabéns, Saidenberg, lindo texto.

Unknown disse...

Luiz, uma cidade que inicialmente parecia tão, tão distante, foi brilhantemente alcançada por você, que hoje a tem na palma da mão. Parabéns pelo texto, como todos os seus, bilhante, e um abraço.

Zeca disse...

Saidenberrg, gostei demais deste texto, que me levou imediatamente àqueles tempos em que vivíamos tranquilos, sem tantas informações, mas também sem grandes preocupações, que não as próprias de cada um de nós. E onde tínhamos tempo para apreciar um delicioso e farto almoço familiar e ainda assistir uma pelada sentados "confortavelmente" no barrando...
Abrço.