* Esclarecimento: Em função da noitada de tango que teremos em 13/08/2010, nosso querido amigo, Modesto Laruccia, quis prestar uma homenagem à Argentina, com o texto, abaixo, que nos enviou.
Entrego-lhes.
Muita paz!
1996
- Maria, são onze horas, filme um pouco longo, não? vamos comer alguma coisa na lanchonete, parece que você não gostou do filme...
- Adorei, Sandro, por que pergunta?
- Notei que você está com um semblante sério, triste.
- Triste... um pouco... filme lindo mas, muito triste, senti a mensagem... algo mexeu comigo e você sabe porque...
- Claro mas, vamos entrar nessa lanchonete; É boa e bem limpa. Conta, Maria, o que mais, vamos dizer, mexeu contigo, a mãe, o pai a filha... mas antes, o que queres comer?
- Pra mim, um de presunto e queijo. Olha, Sandro, o que mais me comoveu foi a mãe, Rosa, uma professora severa mas, correta e sensível; com o desenrolar da historia vai compreendendo a rebeldia de alguns alunos, revoltados com situações de parentes dos desaparecidos, torturados e mortos durante a ditadura militar.
- Concordo, Maria. Rosa foi a fundo, exigiu do marido, Roberto, um empresário de caráter fraco, dizer onde, realmente se deu a adoção da única filha, a Gaby que eles tem.
-Viu como o diretor do filme foi muito feliz, narra fatos que ocorreram há pouco mais de dezoito anos, aqui em Buenos Ayres e ilustra bem a Rosa, que ama demais a filha adotada mas, sente profunda revolta e tristeza com a angústia das mães e avós em busca dos desaparecidos e dos bebês, nascidos no cativeiro.
- O filme é atual, "A História" dá uma conotação de realidade incontestável. Vai fazer sucesso no lançamento mundial ainda nesse 1996, vai ver...
- Puxa, Maria, faz uma semana que assistimos o filme e ainda...
- Ainda não me saiu da cabeça, Sandro, essa história que o diretor não soube ou não quis dar um final, me perturba demais...
- Por que você é adotada e...
- Sim, por isso e mais alguma coisa... sabes que, com dezoito anos, ainda não tenho, pelos meus pais adotivos, uma aproximação muito íntima ou pelo menos, a desejável relação de pais pra filha. Estou pensando em sair de casa...
- Não faça isso, Maria, é uma decisão um pouco precipitada, afinal,
Osvaldo e Maria Cristina te criaram... e bem, não fosse...
- Sandro, há um bom tempo, venho com essa preocupação... me conheces bem mas, pouco sabes do meu íntimo e isso é algo que martela aqui... as coincidências são de medo... nasci em fevereiro de 1978, adotada em maio, do mesmo ano... em casa nunca disseram que lugar, que asilo, ou que mãe...
- Querida, não te torture mais, o que fizeres não vai trazer ninguém de volta, mas sim, só sofrimentos e desenganos...
- A última discussão a respeito que tive com esses que querem se passar por meus pais, Osvaldo, nervoso me disse que se não fossem eles eu estaria na sarjeta, abandonada, morta de fome... pois sim, respondi, e minha mãe?, será que, ao me resgatar, nem por curiosidade queria saber seu nome, diz-me sempre que ela morreu ao me dar a luz mas, isto não impede de conseguir informações a respeito dela...
- Maria, naquela época a ditadura perseguia, prendia, tortura e matava centenas de pessoas; Partindo dessa premissa, quem garante que seus pais biológicos, envolvidos em atividades subversivas, foram presos e não...
- Que seja, Sandro, mas não aceito essa evasiva dos dois em me dar informações a respeito; arrogantemente alegam sempre minha "boa estrela" em tê-los com tutores... mas isso não basta... Vez ou outra, vou a praça ver e ouvir “As Avós da Praça de Maio” e tentar conseguir algumas informações.
- Crês realmente, que seus pais biológicos sejam subversivos desaparecidos e...
- Sim, Sandro, vou atrás disso, leve o tempo que levar, custe o que custar mas, vou descobrir a verdade.
- Oi, Sandro, e aí, como vais?...
- Bem querida, quero saber da sua pesquisa, tem algum progresso?
- Está fazendo um ano, mais ou menos, que assistimos aquele filme
"A História" que, por sinal, está fazendo muito sucesso.
Eu queria sair de casa e você me convenceu a não sair... agora vou, estou decidida, vou mesmo, os passeios na Praça de Maio renderam algumas informações que, infelizmente, não posso te contar, por enquanto, estou tratando de encontrar um bom apartamento e mudo logo que achar o ideal... sabe que trabalho e tenho condições de me sustentar, não é fácil mas, vou conseguir...
2001
- Veja, Sandro, eu venci... olha esta foto...
- Maria, você esta... chorando...
- Sim, sim, é claro... veja...veja meus pais... de verdade, Sandro... como são bo...bonitos, né?
- Como e o que descobriu a respeito, prometeste me contar?
- Pois bem, o nome de meu pai era Leonardo Sampallo e de minha mãe, Mirta Barragam. Cheguei a esse resultado graças a minha constante idas à Praça de Maio e conversar com as Avós, tudo confirmado pelos exames de DNA.
Os dois foram sequestrados em dezembro de 1977, minha mãe, grávida, deu a luz em fevereiro do ano seguinte e em maio, meus sequestradores...
- O quê...?
- Sim meus sequestradores, Osvaldo Rivas e Maria Cristina Gómes Pinto, receberam das mãos do capitão da reserva, (outro carrasco), Henrique José Berthier: eu.
- Não reconheço em nada, nesse casal, foram velhacos e vou iniciar um processo contra eles... quero vê-los presos, pela pena máxima, vinte e cinco anos...
- Mas, e a lei de anistia, do governo Raúl Alfonsín...
- Vou esperar, Sandro, ela vai cair, há um movimento em torno disso, eles não podem ficar impunes das barbaridades cometidas...
- Tem toda a razão desse mundo, Maria...
- Não esqueça, Sandro, Maria Eugênia Sampallo, filha de Leonardo Sampallo e Mirta Barragan.
- Eu sei, Sampallo, quero apenas chamar atenção pra um detalhe... você viveu dezenove anos com...
- Por favor, não repita...
- Deixa falar, pô, se viveu todo esse tempo com eles, não restou nada... nem uma pouquinho de carinho... deve-se levar em conta que tiveste educação, cuidados e...
- Pode parar, Sandro, não quero ser grosseira com você mas vou perder o respeito se continuar... nada neste mundo poderá amenizar os terríveis momentos por que devem ter passado meus pais, antes de serem selvagemente assassinados, nada, ouviu, nada...
- Mas, isto te faz mal...
- Não mais do que a dor que esses filhos da puta causaram pra centenas de famílias argentinas. Fiquei sabendo que esse casal maldito poderia ter procurado meus avós, na época, mas, calaram, compactuaram com os algozes por interesse e, a título de colaboração, me pegaram pra me criar.
2005
Cai a lei de anistia do Governo Raul Alfonsin.
2008
Justiça argentina condena Osvaldo Rivas e Maria Cristina Goméz a oito e sete anos de prisão, respectivamente e o capitão de reserva Henrique José Berther a dez anos.
Por Modesto Laruccia