quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A voz da lua

Fazer caminhadas pelo bairro é um bom hábito. Faz bem aos ossos, tendões e coração.
Mas, vai mais além. Aguça a mente e a imaginação. Às vezes, ao passarmos pela primeira vez por um lugar, nada notamos. Mas , com a repetição, começam a surgir coisas insuspeitadas, que nada nos diriam de primeira. Uma pequena mo
dificação, um detalhe quase imperceptível e nos deparamos com as sombras do mistério, em pleno dia a dia.

Numa das principais ruas que cortam o Brooklin chamado Novo ou Paulista, um sobradinho chamou nossa atenção. O que tinha ele? Quase nada. Pequeno, bem cuidado, com uma parreira cobrindo sua área externa.
Mas, da segunda vez que se passa ali, percebe-se que a porta está sempre aberta. E o portão, também. Caso raro, aqui em São Paulo. Às vezes, embalagens de alumínio com restos de comida, lixo, sinais de desleixo, na frente. Em outros dias, não... Tudo está varridinho.
Aí, um dia você começa a ver as pessoas que o habitam. E, a compreender. Vemos saindo dali uma senhora, quase bem arrumada, mas com toques exóticos: as roupas meio puídas, uma pelerine sobre os ombros, resmungando algo sozinha. E outras assim, homens e mulheres, com algum cuidado com a aparência, mas sempre com um algo estranho, a barba por fazer, as roupas como saídas de um brechó.
E, girando meio perdidos pelo bairro, num mundo à parte. Mas, sem incomodar ninguém, ou talvez pedindo, às vezes, um trocado, respeitosamente. Serão loucos, que se reuniram numa associação, talvez amparada por uma boa alma?
Quando falamos em loucura, a primeira associação é com pessoas alucinadas e perig
osas, a roupa em frangalhos, os gestos desabridos, a berrar sua insanidade aos quatro ventos.
Não é o caso. Talvez sejam apenas lunáticos, vivem normalmente parte de seu tempo, até sentirem os eflúvios e a voz da Lua, sussurrando em seus ouvidos.

Tentarão, como no filme de Fellini, ouvir a voz que vem dos poços? Mas os poços de São Paulo ficaram atirados para a periferia e, sem estes oráculos para se aconselharem, as pobres criaturas tentam manter seu equilíbrio no caos da grande cidade. Talvez a casinha como ponto de reunião lhes dê força e esperança, para enfrentar a loucura muito maior que reina nos semáforos, nos viadutos, nas grandes avenidas, onde o troar das máquinas abafa qualquer reflexão.
Ficamos surdos e insensíveis, mas não eles, sustentados pelas vozes de seu estranho mundo interior, que pode manifestar-se a salvo no espaço dessa minúscula casa do Brooklin Novo.

Por Luiz Saidenberg

10 comentários:

Zeca disse...

Luiz,
com este texto tão delicado você conseguiu atiçar minha curiosidade, uma das minhas (às vezes piores) características.
Ainda ontem vi na Band, trechos do programa A Liga, em que duas repórteres passaram 24 horas em duas casas de atendimento para pessoas com deficiências mentais, convivendo, comendo e dormindo com as internas. Ambas as experiências foram semelhantes, com as moças recebendo uma dose enorme de carinho e "agradecimento" por ter dado um pouco de atenção a essas pessoas que, só diferem de nós (que nos consideramos normais) por estarem sempre atentas aos sussurros da Lua, vivendo suas fantasias.
Seu texto está ótimo! Parabéns!
Abraço.

Miguel S. G. Chammas disse...

Beleza de texto Luiz. O mistério foi apresentado, e a solução?
Será precisoentrar em contacto com outros planos e pedir ajuda de Holmes, Agatha e outros que tais?

Arthur Miranda disse...

Quando vejo ou ouço noticias como a dos casos do Goleiro Bruno e da jovem Mercia - Mizael Bispo, somados a certos acidentes automobilísticos que quase diariamente acontecem por esse Brasil afora, fico pensando seriamente quem serão realmente os tais lunáticos e malucos, nós... ou eles.
Parabéns Saidenberg, pelo filosófico texto.

Soninha disse...

Olá, Luiz!

As vezes, até nós caminhamos meio desnorteados, desatentos, ou, consternados, parecendo lunáticos e abobados...Talvez por conta dos inúmeros problemas que os metropolitanos enfrentam, somados à injustiça e diferença sociais...
Que bom seria se pudéssemos ter, também, uma casinha ebm cuidada, com jardim e com gente paciente e caridos, que pudesse nos ouvir, nos ceder seu ombro amigo, nos aconselhar, nos acalmar...uma casinha com suas portas abertas, para nos receber sempre que precisássemos, não é mesmo?!
Que bom que Sampa ainda tem estes redutos de caridade, para amenizar um pouco a imensa diferença social que nos deprimi a alma.
Adorei seu texto, Luiz.
Obrigada.
Muita paz!

margarida disse...

Saidenberg, este ponto de encontro que abriga e conforta tais pessoas, talvez seja o único que eles tem. Com certeza existe alguém que os ajuda silenciosamente neste ponto de parada. Só pode ser um abençoado por Deus, mas a grande verdade é que somos surdos e insensíveis a tudo isso.
Lindo seu texto! Um abraço.

Leonello Tesser disse...

Luiz, seriam loucos? seriam sonhadores? quem sabe eles ouvem a voz da Lua, ou será que nós é que somos lunáticos procurando a paz nesta selva de pedra? quem sabe, parabéns pelo belo texto, abraços, Nelinho.

Leonello Tesser disse...

Luiz, seriam loucos? seriam sonhadores? quem sabe eles ouvem a voz da Lua, ou será que nós é que somos lunáticos procurando a paz nesta selva de pedra? quem sabe, parabéns pelo belo texto, abraços, Nelinho.

Modesto disse...

Quando vc escreveu esse texto, Luiz, vc não esperava que alguém fosse desvendar o mistério dos habitantes deste sobradinho. Penso que sua intenção foi a de apresentar personagens da tragicomédia humana, não com os atores principais e sim com o coadjuvantes que, sem serem personagens de destaque, completam a história da humanidade, com todos os papeis bem distribuidos. Fazem o corolário das desdobradas ocorrências que permitem o universo ser o que é, com o DIRETOR levar avante o desenrolar da VIDA. Sua narrativa conta essa hipótese muito bem explíscita sempre com a beleza que te é peculiar. Parabéns, Saidenberg.

Luiz Saidenberg disse...

Amigos, não resolvi o mistério.
Mas, certamente são pessoas não muito equilibradas, embora inofensivas. Como não incomodam ninguém, não serei eu a incomodá-los, talvez fosse levar inquietação a este simples refúgio. São Paulo sempre teve seus mistérios, e talvez seja melhor continuar assim. Abraços.

Anônimo disse...

Aquele pequeno sobrado é uma redoma intransponível do imaginário dos que lá habitam. Não é preciso ser louco ou lunático para entendê-los. Mesmo porque, não podem entendê-los.
Alienados estão e assim permanecerão, numa paralela ausência dos reais problemas do nosso cotidiano. Estes sim, uma verdadeira loucura.