sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Através da vidraça




Ela era linda. Mais que isto: era uma visão etérea, espectral, quando pousava as sandálias naquele andar. De onde vinha? De outra divisão da firma, ele não sabia qual. Mais parecia vir de outro mundo.
Nem o que vinha fazer ali, falar com quem. Flutuava pelos corredores, parecendo dissolver-se no complexo de salas.
Linda e estranha. Morena, mas com a tez muito pálida, uma expressão esgazeada nos grandes olhos escuros, a longa cabeleira negra encaracolada. Vestia-se sempre de branco; trajes meio desconjuntados que lembravam mais anáguas, peças íntimas. Como uma ialorixá que tivesse perdido sua fé, uma noiva de um casamento desmanchado.
Ou, melhor ainda, um fantasma, uma lady inglesa fugida de seu castelo, de um conto de Poe. Meio hippie, meio louca, meio alucinação.
Como um reflexo fugidio numa vidraça, passava sem ver, nem falar com ninguém. Nunca olhava, nem para ele, nem para ninguém mais. Todos, para ela, pareciam também serem transparentes. Um mundo de vidro e ilusão. O mundo da vidraça, em que ela se isolava.
Por alguns anos foi assim, impalpável, preservando seu mistério em silêncio. Com que voz falaria, que língua? A dos anjos, talvez.

Mas, todas as coisas mudam. A grande firma fora vendida, mudara-se de prédio e bairro. Da Rua General Jardim, Vila Buarque, para a Vila Olímpia. Muita gente foi demitida, ou saiu espontaneamente. Os sobreviventes se encararam, sobressaltados, e procuraram ficar mais unidos para enfrentar a hostilidade da nova situação.
Assim, aquela bela forma de outra dimensão pareceu ligar-se mais à Terra e a seus habitantes. Ela passou a cumprimentá-lo, geralmente no elevador, e trocar algumas palavras. Até mesmo a sombra de um sorriso surgiu naqueles lábios.
Ele não lembrava como os fatos se encadearam, mas, muito bem da culminância. Sem dúvida, houve crescente intimidade, ou nada teria ocorrido. Mas aconteceu. Ela estava em seu andar e, como sempre, de passagem. Viu-a numa sala fechada, através de uma vidraça. Aproximou-se do vidro e ela também.
Então, como se tivessem ensaiado um século, ambos os lábios se colaram à vidraça.
Um beijo louco, selvagem, de quase derreter em areia líquida a fina lâmina de vidro.
Durou uns instantes; depois se afastaram, talvez embaraçados. E sua história terminou assim. Tentou quebrar a vidraça, o gelo, convidando-a a tomar algo. Não. Não podia. Nunca pôde.
O beijo continuou impresso, ardentemente nas duas faces da vidraça. Permaneceu lá, mesmo quando esta foi retirada. E com ela, a parede. E todas as paredes. Tudo mudava novamente, a firma trocava de nome, de pessoas.
Os dois nunca mais se viram. Mas, a aura vibrante do beijo continuou frustrada, a latejar no mesmo ponto. A esperar, talvez, que os parceiros voltassem ali algum dia. E repetissem o ato.
Desta vez, sem vidraça.

Por Luiz Saidenberg

7 comentários:

Wilson Natale disse...

Saidenberg, Teu texto lembrou-me o fragmento de uma poesia de Florbela Espanca:
"Tudo passa!
E o que fica?
Fica o beijo que não foi dado
E as palavras que não foram ditas"...
No texto, ao menos, mesmo através da vidraça o beijo foi dado. Um beijo que sabia areia e não ao mel de lábios ardentes... Mas um beijo com certeza. Ficaram mudas as palavras.
Gostei muito. Texto bem intimista, ao gosto de Clarice Lispector.
Abração e Feliz Natal!
Wilson

Luiz Saidenberg disse...

Muito obrigado, Wilson...e que sábia poesia a de Florbela.
Às vezes, o beijo não dado fica, muito mais do que o executado. É esse o caso, ainda mais nas suas estranhas circunstâncias. Ficou, como diz o texto, vibrando no éter, para todo o sempre.
Abraços Natalinos!

Soninha disse...

Olá, Luiz!

Que linda história! E verdadeira...isso que é mais legal!
É incrivel como certas cenas de nossa vida ficam mais impressas em nossa lembrança para sempre, não é mesmo?!
Valeu pela história...valeu pelo beijo através da vidraça.
Obrigada.
Feliz Natal!
Muita paz!

Miguel S. G. Chammas disse...

Luiz, texto poéticamente perfeito.
Um beijo cobetto pr um véu diafano de amor impossível.
Adorei!

Modesto disse...

Como poucos, vc, Saidenberg sabe burilar termos, perágrafos e textos. Não importa saber o destino dos persongens e nem quem ficou ou não com quem. O importante, no texto é o tratamento dado ao episódio, o cuidado que vc teve em relatar essa preciosidade. Aplausos pra vc, Luiz e um Extravagante e Diferente Ano Novo, são os votos da familia Laruccia

Luiz Saidenberg disse...

Muitíssimo obrigado.
Deveria haver uma galeria dos beijos em nossas mentes: Beijos ardentes, beijos roubados, beijos indiferentes e beijos não dados, como quase chegou a ser esse.
Os nossos beijos todos, muitos deles esquecidos, e perdidos para sempre. Como é bom , num átimo, reacender um desses, em sua fúria e paixão original !

suely schraner disse...

Lindo relato! Ótima escrita. Para ler e reler. Parabéns!