1945, ano de acontecimentos espetaculares, transformações radicais na política internacional e em particular, no Brasil. No âmbito internacional, tivemos o fim da II Guerra Mundial e suas consequências; Europa arrasada, França libertada, Alemanha bombardeada, Inglaterra machucada, Japão com o amargo gosto da bomba atômica em Hiroshima, Itália se livrando do fascismo e enforcando Mussulini em praça pública, com sua amante Clara Petacci. Aqui no Brasil, queda dos 15 anos do Estado Novo de Getúlio Vargas, começamos a tomar conhecimento das monstruosas atrocidades contra o povo judeu, através de cartilhas distribuídas nas escolas públicas, confirmando o que já era amplamente divulgado.
Aqui em São Paulo, terminam os racionamentos, farinha de trigo à vontade, gasolina, além de abundante, era mais barata. Agora, mais alegres os tripeiros, os vendedores de tecidos, com rolos de panos diversos nos ombros, guarda-chuveiros, vendedores de leite de cabra, que andavam pelas ruas do Brás, puxando uma corda que se abria como um leque, trazendo em cada ponta uma cabra. Elas eram ordenhadas na hora em que surgia um cliente com uma caneca ou jarro, servindo um leite quentinho, saboroso e nutritivo. Sem a preocupação da proibição de se falar num idioma estranho, os ambulantes apregoavam seus produtos da forma que lhes aprouvessem, gozando uma liberdade nunca sonhada antes, nessa bendita terra paulista, já uma metrópole fervilhante e dinâmica. Sentia-se esse prazer, pois a grande maioria desses pequenos comerciantes eram estrangeiros, lembrando seus países devastados, agarravam-se a estas chances, pois São Paulo já oferecia grandes oportunidades a todos e em todos os segmentos.
Em dezembro, próximo ao Natal, minha mãe já ia preparando as guloseimas, pães, ficazzas (pão de batata com rodelas de tomates), petsica-dolci (torta de ricota), piccicatela scagdeti (tarallas salgadas), i pi lu zuchero (com açúcar), pastieri di grano (torta de ricota com amêndoas, avelãs) etc. Atividades alegres e prazerosas, envolvendo a todos, cada um responsável por alguma coisa. A minha tarefa era o presépio. Tinha 13 anos e, alguns anos atrás, havia presenciado um primo de segundo grau, mais velho que eu, 10 anos (vivo até hoje e clinicando, Dr. Paulo Zupo), confeccionar um presépio que me deixou curioso e com uma vontade louca de fazer igual. Consistia em armar numa mesa de bom tamanho, um “esqueleto” de arames, posicionando alturas e depressões de uma montanha, arrematando com um arco também de arame, identificando a entrada de uma caverna com um papel bem grosso, amassado, dando a impressão dos relevos de uma pedra, jogava esse papel em cima da armação, enrolando na entrada da gruta, amarrotando bastante pra dar um efeito natural. As bordas eram cobertas com areia, depois borrifava com tinta (alvaiade diluído em álcool) com uma bomba de inseticida, o Flit, fazendo a vez de aerógrafo, realçando os picos de marrom e as pastagens de verde. Ficou lindo de morrer. Ocorre que, naquele dia, 17 de dezembro de 1945, minha irmã Maria, terceira da série de nove, ia ter um bebê e todos em casa foram pra maternidade com minha mãe e meu pai, apostando o que seria; homem ou mulher (naquele tempo não havia antecipação, era muito mais surpreendente). Em casa só ficamos eu e meu avô materno, já viúvo, que olhando o presépio dizia em barês, dialeto dos nascidos em Bari, sul da Itália: “Testy, stê belle assai, no bisogna a fare piu niente (está bonito demais, não precisa fazer mais nada, não mecha em mais nada). Ele falou isso porque, observando minhas reações, temia que eu fizesse algo. E eu fiz. Notei que, se houvesse alguma luz escondida no fundo da gruta, atrás da manjedoura, daria um efeito espetacular. Não tinha nenhuma lampadazinha e muito menos fiação, não tive paciência de esperar meu pessoal voltar da maternidade, que seria só à noite. Arrumei uma velinha de aniversário, tirei algumas imagens da frente, Nossa Senhora, São José, o burrico, os três reis magos e introduzi a velinha acesa no interior da gruta e o papel ainda recendia a álcool, acho que vocês já adivinharam; tão logo a pequenina chama encostou-se ao papel, incendiou totalmente meu encantado presépio, chamuscando algumas imagens e destruindo outras e ainda alcançando a cortina da sala, dando início a um incêndio de grandes proporções. Só não ocorreu o pior porque a cozinha era perto e, com baldes de água, consegui evitar a catástrofe. Meu avô, coitado, não sabia o que fazer e o que dizer. Naquele momento chegaram todos da maternidade, era um menino, Roberto, hoje com 62 anos, dois filhos e um neto. Espantados, perguntaram o que aconteceu e eu disse que o Dilúvio Universal acabou com o incêndio de Sodoma e Gomorra, antro do pecado da vaidade.
Nunca mais esquecemos o incêndio de Jerusalém do Brás. Quando o Roberto faz aniversário, ao acender as velinhas, a gente lembra, de imediato.
Por Modesto Laruccia
Aqui em São Paulo, terminam os racionamentos, farinha de trigo à vontade, gasolina, além de abundante, era mais barata. Agora, mais alegres os tripeiros, os vendedores de tecidos, com rolos de panos diversos nos ombros, guarda-chuveiros, vendedores de leite de cabra, que andavam pelas ruas do Brás, puxando uma corda que se abria como um leque, trazendo em cada ponta uma cabra. Elas eram ordenhadas na hora em que surgia um cliente com uma caneca ou jarro, servindo um leite quentinho, saboroso e nutritivo. Sem a preocupação da proibição de se falar num idioma estranho, os ambulantes apregoavam seus produtos da forma que lhes aprouvessem, gozando uma liberdade nunca sonhada antes, nessa bendita terra paulista, já uma metrópole fervilhante e dinâmica. Sentia-se esse prazer, pois a grande maioria desses pequenos comerciantes eram estrangeiros, lembrando seus países devastados, agarravam-se a estas chances, pois São Paulo já oferecia grandes oportunidades a todos e em todos os segmentos.
Em dezembro, próximo ao Natal, minha mãe já ia preparando as guloseimas, pães, ficazzas (pão de batata com rodelas de tomates), petsica-dolci (torta de ricota), piccicatela scagdeti (tarallas salgadas), i pi lu zuchero (com açúcar), pastieri di grano (torta de ricota com amêndoas, avelãs) etc. Atividades alegres e prazerosas, envolvendo a todos, cada um responsável por alguma coisa. A minha tarefa era o presépio. Tinha 13 anos e, alguns anos atrás, havia presenciado um primo de segundo grau, mais velho que eu, 10 anos (vivo até hoje e clinicando, Dr. Paulo Zupo), confeccionar um presépio que me deixou curioso e com uma vontade louca de fazer igual. Consistia em armar numa mesa de bom tamanho, um “esqueleto” de arames, posicionando alturas e depressões de uma montanha, arrematando com um arco também de arame, identificando a entrada de uma caverna com um papel bem grosso, amassado, dando a impressão dos relevos de uma pedra, jogava esse papel em cima da armação, enrolando na entrada da gruta, amarrotando bastante pra dar um efeito natural. As bordas eram cobertas com areia, depois borrifava com tinta (alvaiade diluído em álcool) com uma bomba de inseticida, o Flit, fazendo a vez de aerógrafo, realçando os picos de marrom e as pastagens de verde. Ficou lindo de morrer. Ocorre que, naquele dia, 17 de dezembro de 1945, minha irmã Maria, terceira da série de nove, ia ter um bebê e todos em casa foram pra maternidade com minha mãe e meu pai, apostando o que seria; homem ou mulher (naquele tempo não havia antecipação, era muito mais surpreendente). Em casa só ficamos eu e meu avô materno, já viúvo, que olhando o presépio dizia em barês, dialeto dos nascidos em Bari, sul da Itália: “Testy, stê belle assai, no bisogna a fare piu niente (está bonito demais, não precisa fazer mais nada, não mecha em mais nada). Ele falou isso porque, observando minhas reações, temia que eu fizesse algo. E eu fiz. Notei que, se houvesse alguma luz escondida no fundo da gruta, atrás da manjedoura, daria um efeito espetacular. Não tinha nenhuma lampadazinha e muito menos fiação, não tive paciência de esperar meu pessoal voltar da maternidade, que seria só à noite. Arrumei uma velinha de aniversário, tirei algumas imagens da frente, Nossa Senhora, São José, o burrico, os três reis magos e introduzi a velinha acesa no interior da gruta e o papel ainda recendia a álcool, acho que vocês já adivinharam; tão logo a pequenina chama encostou-se ao papel, incendiou totalmente meu encantado presépio, chamuscando algumas imagens e destruindo outras e ainda alcançando a cortina da sala, dando início a um incêndio de grandes proporções. Só não ocorreu o pior porque a cozinha era perto e, com baldes de água, consegui evitar a catástrofe. Meu avô, coitado, não sabia o que fazer e o que dizer. Naquele momento chegaram todos da maternidade, era um menino, Roberto, hoje com 62 anos, dois filhos e um neto. Espantados, perguntaram o que aconteceu e eu disse que o Dilúvio Universal acabou com o incêndio de Sodoma e Gomorra, antro do pecado da vaidade.
Nunca mais esquecemos o incêndio de Jerusalém do Brás. Quando o Roberto faz aniversário, ao acender as velinhas, a gente lembra, de imediato.
Por Modesto Laruccia
10 comentários:
Que brincadeira hein Mô?
Acho que o susto aleu tanto que até hoje vc se lembra do fato.
Por falar em presépios, eu adorava montar os meus que eram enormes e muito bonitos. Ficava muito triste ao ter que desmontá-los depois do dia 6 de janeiro.
Bela recordação, embora um tanto quanto perigosa.
´Larù, mio bello! Que maldade! Por sua causa vou ter que fazer a minha pastiera di granno (Ainda bem que sei fazê-la.
E é muito bom lembrar que o fim da guerra e o fim da ditadura trouxe alegria ao povo. Farinha é tudo!
Ainda nos anos 50 as cabras circulavam perot da minha casa, nas ruas Bresser, 21 de Abril e Conselheiro Justino. Desfilavam com as tetas cheias, sininhos no pescoço e balindo. Algumas eram acompanhadas dos seus cabritinhos. Passavam deixando uma infinidade de "caroços de azeitona pelo chão (risos).
Lembro também de uma história de uma cabrita enforcada pela porteira do brás.
Agora, fogo no presépio ninguém merece! Acho que naquele dia o "espírito do natal" saiu de você e baixou o "espírito de um piromaníaco" ahahahahaaaaa!
Gostei muito!
Abração.
Natale
Ola, Modesto!
Meus irmãos e eu gostávamos de montar o presépio também....e ajudávamos minha mãe e meu pai a montarem a árvore...mesmo simples, ficava linda!
Missa do galo também era quase que obrigatório para nós.
Bem...esta de você incendiar sua casa, por conta dde sua pseudo engenhoca do presépio, foi demais...nossa!
Valeu, MOdesto!
Obrigada.
Feliz Natal!
Muita paz!
Caro Mõ, belíssima descrição de un Vero Natale no Brás. Belos pratos, e cetamnete não faltavam os ótimos vinhos da Puglia, seu paese de origem. Agora, botar fogo no presépio já é coisa de un Nerone!
É muita paixão demais! Abraços.
Caramba, Modesto!
Piromaníaco aos 13 anos! Mas o melhor mesmo foi a explicação encontrada: o Dilúvio Universal acabando com o incêncido daquele antro do pecado e da vaidade!" E haja criatividade!!!
Você deve ter muitas histórias para contar da época da Grande Guerra, com os racionamentos, as filas, a falta de tantas coisas necessárias, além do receio de que algum membro da família fosse enviado para os campos de batalha. Eu nasci em 1948 e as poucas informações que tenho são resultado de histórias ouvidas ainda na infância, já diluídas pelo tempo. Ou, então, aquilo que se lê nos livros...
Agora, os costumes praticamente não variavam, nem no tempo, nem na geografia. Em casa também montávamos uma bela árvore de natal e o presépio era responsabilidade minha, que sempre fui, desde bem novinho, o religioso da familia. Cheguei a fazer as tais armações de arame, recobertas de papel grosso e bastante amassado; a fazer laguinhos com pedaços de espelho, e outros enfeites para o Menino Jesús, conforme a imaginação e a criatividade dispusessem. Só não cheguei a bancar o Nero, incendiando o presépio e, muito menos, a sala de casa... risos.
Gostei bastante da sua história e espero que venham muitas outras, principalmente com tantas informações históricas, vividas e sentidas por você.
Feliz Natal a você e a todos os seus.
Abraço.
Isso é que é gostar de luz. Belas recordações em raios de lembranças calorosas. Parabéns!
Modesto, boas lembranças daqueles Natais de antigamente, mas botar fogo no presépio é demais, quase que o querido amigo imitava o Nero que colocou fogo em Roma, parabéns pelo texto, abraços, Nelinho.
Modesto, que falha grave!!! mandei meu comentário como anônimo, me perdoe caro amigo, Nelinho.
Modesto,você aos 13 anos já era muito criativo.Hoje aos 70, nos encanta com textos divertidos e uma memória privilegiada.
Adorei!!
Um Feliz Natal para você, sua Myrtes e família.
Amigos do "Memórias...", em primeiro lugar, quero agradecer a todos, no sentido vertical:
Miguel, vc é um incentivador de primeira. Um apreciador e entusiasta de tudo que escrevo. Muito obrigado.
Natale, vechio amici. Vc diz que sabe fazer "pastieri di grano", eu adoro, gosto de leite de cabra, também. Quanto a "pirotcnia", foi uma ousadia em chegar a perfeição. Obrigado pelos comentários. Vc também é um grande incentivador.
Sonia, a gente deve sempre tentar... tentei e dei com "os burros nágua". Obrigado pelos comentários.
Saidenberg, agradeço seus comentários e reportando a outro texto, no SPMC, não esqueci do vinho; é que tinha, numa mão, o sanduiche e noutra o gibi, então... Vinho nunca faltou a nossa mesa.
Zeca, querido, dei uma de piromaniaco mas, de leve... Por coincidência, dos nove irmãos, (cinco mulheres e quatro homens), só o mais velho, Vito, com 21 anos, que tinha feito o "tiro de guerra", escapou de ser convocado. Os outros, incluxive eu, estavamos fora da faixa. Quanto as histórias do tempo de guerra, tenho, sim e vou passar pra Sonia depois das festas. Obrigadao pelas suas considerações.
Suely, muito obrigado pelos comentários o ano todo. Vc é um amor.
Nelinho, o único anônimo com nome, RG, CIC, e foto. Obrigado, Nelinho, vc mora na lateral esquerda do meu coração. Não sou o Nero mas dou minhas faiscas.
Muito obrigado, Bernadete, vc é muito querida por todos nóa mas, mais por mim. Um beijo
Quero agradecer ao Lopomo, apesar de ele não ter feito comentário. Obrigado, Mario.
No final, quero, não e nem encisto, EXIJO que todos vcs e suas respectivas famílias tenham um Santo e Feliz Natal e Um Próspero Ano Novo, sem com as benções de Deus. Obrigado
Myrtes e Modesto
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