sexta-feira, 1 de outubro de 2010

“BAGNANDO IL FU CARMINE” - Mooca,1956.

Sempre lembrei desse fato. Mas, o tempo incumbiu-se de fragmentar e tornar confusos os acontecimentos daquele dia fatídico. Fatídico para o Seu Cármine, claro! Então, nada melhor do que minha avó - testemunha ocular, minha mãe - contando a realidade do fato e meu tio para preencher as lacunas de forma hilária e irreverente.
Seu Cármine, um quarentão forte – a imagem da saúde - estava de férias. Não tendo o que fazer, lá pelas nove horas da manhã, foi ao bar encontrar os amigos (amigos que, segundo a mulher do Cármine, eram uns vagabundos, que não queriam nada com o “batente” e uns aposentados que passavam a vida “enchendo a cara”). Foi lá, tomar umas “birra” e jogar dominó. Às dez horas, depois de tomar muitas cervejas e comer, pelo menos, um quarto daquele gorgonzola delicioso, tão fedido que faria um gambá se apaixonar, ele levantou-se da cadeira muito pálido, tentou dizer algo e desmoronou. Caiu ao chão. Estava inconsciente. Um dos amigos correu até o consultório do clínico geral, que ficava a dois quarteirões abaixo, para buscar “u dottore”.
O médico, ao chegar, não se espantou ao encontrar o Seu Cármine estatelado no chão. Contou aos presentes que o defunto foi seu paciente. Um péssimo paciente, por sinal. Desobediente! E que, na última consulta (tinha mais de dois meses), avisou-o que se ele continuasse nessa vida de “Pau d’água”, descuidando da pressão alta, comendo “feito u
m porco”, acabaria por morrer de cirrose ou enfarto. Pediu-lhe que fizesse alguns exames. Mas, não é que “o bèstia” (o animal) do Cármine desapareceu do seu consultório! Não fez os exames e, como se via, não parou de “encher a cara”!
Falava tudo isso, enquanto examinava demoradamente o Seu Cármine, em busca de sinais de vida. Nada! O declarou morto. Não havia mais nada a fazer, a não ser ir ao consultório, preencher a declaração de óbito. Aconselhou, aos amigos do falecido, levá-lo para casa, assim evitariam que o Cármine fosse levado, pelo “Rabecão”, ao necrotério e poupariam muita dor e transtornos à viúva. Ele, por sua vez, declararia que a morte “ocorreu em sua casa, etc, etc”... Um dos amigos acompanhou o médico até o consultório para pegar a declaração e ir ao Cartório fazer o Atestado de Óbito. E, claro, pagou também a conta do médico.
No bar, resolveram levar o Seu Cármine para casa. Mas como fazer isso? O único jeito que encontraram foi colocar o defunto sentado em uma cadeira, amarrá-lo ao encosto com uma toalha de mesa e carregá-lo. O dono pede ao ajudante que fique no balcão e, junto com três amigos do falecido, levaram o dito para a sua casa.
A
distância entre o bar e a casa era pouca. Mas o Seu Cármine era fortão, pesadão. Era preciso parar, descansar um pouco e revezar a posição. Sacudiram tanto o defunto que ele começou a babar uma secreção que fedia a cerveja e gorgonzola... Os que passavam pela rua divertiam-se com aquela cena. Aqueles que conheciam a fama de beberrão do agora defunto, morriam de rir e faziam piadinhas. Um deles, rindo, grita: “Povo! Vamos nos ajoelhar. Pois, carregado em seu andor, está passando São Cármine, o padroeiro dos beberrões”! Nós, as crianças, atraídos por aquela “novidade”, seguíamos os carregadores, em singular procissão.
Chegam ao portão da casa do Seu Cármine. Põem a cadeira no chão e tocam a campainha. Dona Edmèa atende.
Abrindo a porta, ela depara-se com aquela cena grotesca. Arregala os olhos e uma vermelhidão sobe-lhe do pescoço às faces. Estava possessa! Encara o marido e começa a gritar: “Seu filho da P...! Seu pedaço de m...! Não basta me envergonhar, chegando em casa toda a noite, trançando as pernas, cantando, incomodando a vizinhança? Não, não basta! É preciso chegar em casa, assim desse jeito, carregado em pleno dia, desmaiado de tanto beber! Você quer me matar de vergonha? É isso que você quer, desgraçado? É isso?!... Ah, mas não vai não! Antes eu mato você, seu m...!” Descontrolada, abriu o portão, cerrou o punho e avançou contra Seu Cármine. O dono do bar segura a mão da Dona Edmèa e fala alto aos amigos: ““Cazzo”! Que “mancada”! Ninguém avisou a esta pobre mulher que o marido morreu”?
Não. Ninguém a avisara.
A vermelhidão desapareceu das faces de Dona Edmèa. Seu corpo, tenso, relaxou de vez. Ela deu um grito apavorante e desmaiou. Que fazer, meu Deus? O dono do bar, amparando Dona Edmèa, diz aos outros que fossem chamar as vizinhas. E foram. Logo, a rua ficou cheia de mulheres – a turma do vinagre e dos sais aromáticos. Correram para a casa de Dona Edmèa e deram de cara com o Seu Cármine, morto, amarrado à cadeira. Gritos de susto, a princípio, depois, as lamentações, as lágrimas e por fim, a Razão que pedia que se socorresse a viúva. Os homens, acompanhados pelas vizinhas, levaram a viúva para dentro da casa. Era preciso cuidar dos vivos... E, o Seu Cármine ficou lá na calçada babando, exalando odores de “birra” e gorgonzola. Logo o levaram para dentro e o deitaram na cama.
A casa de Cármine e Edmèa virou um pandemônio, um hospício onde um mundo de mulheres gritando ordens, mandava e desmandava. Um ir e vir sem chegar a lugar nenhum. Aparece o amigo com o formulário do óbito e homens foram à funerária tratar do velório.
Dona Edmèa, que havia saído do desmaio direto para a realidade, estava em choque. Viu as vizinhas a esvaziar a sala e viu as cadeiras (a maior parte emprestadas pelos vizinhos) serem dispostas ao longo das paredes, para que se montasse a “pompa fúnebre” (aparatos do velório). Só ficara a poltrona onde ela estava. Confusa, olhou para a sala vazia, olhou para as mulheres e cons
tatou que não havia tido um mau sonho: O seu (até pouco tempo, um traste imprestável) amado Cármine estava morto! Deu um grito gutural, semelhante a uma fera ferida e enlouqueceu de dor. Levantou-se e começou a andar de um lado a outro, beliscando forte o próprio braço. Jogou-se ao chão, batia com os punhos no assoalho. Levantou-se e, desesperada, começou a gritar o nome do marido, puxando os próprios cabelos.
Rechaçava qualquer aproximação. Queria o seu adorado Cármine! Batia na cabeça com os punhos fechados, arranhava o rosto e chamava pelo marido. De repente, ela parou no meio da sala e desandou a gargalhar, histericamente. Agarrou uma vizinha e começou a gritar: “É brincadeira, não é? Como vocês puderam fazer isso? Fazer uma brincadeira de tão mau gosto, suas putanas”! E ria. Dona Fina e minha avó empurram a Dona Edmèa de volta a poltrona. Ela debate-se, resiste. Vovó deu-lhe uma tremenda bofetada na face e disse: “Cármine está morto! Conforme-se”! “Se não acredita, venha vê-lo. Está lá no quarto”.
No quarto, Dona Edmèa desesperou-se mais ainda. Jogou-se sobre o corpo do marido e começou a gritar: “Cármine, por que você fez isso comigo?” – chorava sentido – “Por que, quando eu estava dizendo aquelas besteiras lá no portão, você não me mandou calar a boca e me disse que você estava morto e não bêbado, “mio bello”? Por quê?”
Chorava copiosamente e, ora apertava-se contra o marido, ora esmurrava-lhe o peito. E o defunto babando... Dona Edmèa, cansada, parecia ter-se acalmado, aceitado a realidade. Chorava baixinho, acariciando a face do marido. Mas, quando vovó e Dona Fina tentaram tirá-la de cima do marido, ela começou tudo de novo. Foi preciso chamar as outras vizinhas para tirá-la de lá. Foi preciso que Dona Fina andasse dois quarteirões e trouxesse o médico para dar “um sossega leão” na Dona Edmèa. Sob o efeito calmante da injeção, ela relaxou. Ficou catatônica por um tempo e logo adormeceu na poltrona.
As vizinhas, então, puderam relaxar. Falando baixinho entre si, esperavam pela
funerária.
Nesse instante, irrompe na sala a Carmelona. Entrara na Rua Guarapuava, vinda do trabalho, quando soube da notícia pelos moleques. Emocionadíssima, com os olhos cheios de lágrimas, cumprimentou a todos e caminhou em direção à Dona Edmèa. Rápido, a Dona Anunziatta levanta-se e barra Carmè, dizendo: “Não faça isso, pelo amor de Deus! Não “mi” acorda ela”! Você não sabe o inferno que nós passamos com “essa daí”. “Deixa “ela” sossegada, senão vamos ter outro espetáculo.” Carmelona concordou e foi sentar-se. Depois de um tempo calada, respirou fundo e falou. “Coitadinha da Edmèa. Os homens já vieram lavar e vestir o defunto?”... Pronto! Instalou-se o pânico entre as vizinhas. Ficaram loucas.
Dona Fina diz: “Pu... que la mer...! E agora? E agora, o que fazer, Dio Santo?! Onde vamos encontrar um putano que faça isso?” Nervosa e irritada acrescenta: “ Esse traste do Cármine “mi” tinha que morrer de repente, pela manhã, no meio da semana! Justo quando todos os homens estão trabalhando... Não dá para esperar a volta dos amigos. Vamos nós, dar o banho naquele pedaço de asno!”
Dona Fina, Dona Anunziatta, vovó, mamãe e Carmelona dirigiram-se ao quarto. Lá, concluíram que não dava para levar o Cármine ao banheiro. Não é que o putano era mais pesado que um porco cevado! Banho mesmo era impossível. Então resolveram dar-lhe um bom “banho de gato” ali mesmo.
Com grande esforço, tiraram o Seu Cármine da cama e o colocaram no chão, sobre o congóleo. Enquanto despiam o defunto, Carmelona foi pegar um balde com água, o sabonete, uma bucha e toalhas.
Lavavam o corpo e conversavam entre si. Lamentavam a pobre Edmèa que, sem filhos, ficara sozinha no mundo. Estava sem arrimo. Ainda bem que ela era nova. Não era nenhum “bagulho” e poderia refazer a sua vida. Dona Fina, apreensiva, preocupava-se com a situação financeira de Edmèa: “Será que esse traste está regularizado com a Previdência? E as prestações do Montepio? Estariam em ordem? Minha mãe acrescenta que, graças a Deus, a casa estava quitada e que Dona Edmèa, com sua máquina de ponto “ajour” ganhava um bom dinheiro. Teria com que se sustentar, até que tudo se normalizasse. Dona Anunziatta falava às vizinhas e ao defunto: “Imbecile” (imbecil), agora você está contente. Morreu de “cara cheia”! Agora você está ai, com essa cara de bos..., enquanto a sua mulher está lá na sala, “acaba da” e sem forças para continuar vivendo... Esse traste não merecia a mulher que tem!”
Falavam, falavam, enquanto enxugavam o corpo do Seu Cármine. Só Carmelona pouco falava. Em resposta a tudo que ouvia, resumia o seu comentário à frase “Coitada da Edmèa.”
Incomodada de tanto ouvir “Coitada da Edmèa”, Dona Fina volta-se para Carmelona e diz: “Você está me irritando. Não tem outra coisa para dizer?” Carmelona, com o olhar fixo no defunto, cutuca Dona Fina e aponta a genitália do Seu Cármine. Dona Fina olha e exclama: “Coitada da Edmèa!!!” E chama a atenção das outras para o “cavicchio” (pênis) do falecido.
Todas exclamam ao mesmo tempo: “Coitada da Edmèa!” Riem um risinho abafado, trocam piscadelas maliciosas. E a conversa em voz baixa torna-se “picante”, obscena. Entre risinhos, “Dio Santo!” e “porca miséria!” falavam da bela “verga” do Cármine, de como a Edmèa era “bem servida” e que “outro” igual seria difícil de encontrar.
Vovó, sorrindo e ironizando, fala com Seu Cármine: “É, meu caro Cármine. Tanta “minhoca” fazendo um monte de filhos e você, com essa “cobra” não fez nenhum”.
Tinham acabado de colocar o defunto de volta na cama e vovó estava pegando um vidro de perfume na penteadeira para espargir sobre o Seu Cármine quando Dona Edmèa entra no quarto. Estava zonza, letárgica. Olhou para vovó e lhe disse: “Não faz isso! O Cármine é alérgico a p
erfume. Nem eu uso. Está ai só de enfeite”.
Vovó abraça a Dona Edmèa e fala: “Agora, o perfume não pode lhe fazer mal, minha querida. E é melhor o perfume de flor de maçã do que o cheiro do Cármine “perfumando” a sala. Venha. Agora você precisa escolher a roupa para vestir o seu marido”.
Minutos depois, lá estava o Seu Cármine de cabelo penteado, lambuzado de brilhantina, vestido no seu terno preto de risca de giz, deitado na cama à espera da pompa fúnebre. Dona Fina olha para o defunto, benze-se e comenta com Dona Anunziatta: “Que lindinho! Com esse terno parece até um mafioso”!
Chega a funerária. Seu Cármine é levado para a sala e inicia-se o velório. E, nas 24 horas que se seguiram, o assunto principal entre as comadres e carpideiras foi a genitália do falecido Cármine...

- Coitada da Dona Edmèa!

Por Wilson Natale

10 comentários:

Luiz Saidenberg disse...

Benvindo ao site, caro Wilson, ainda mais com suas pitorescas italianadas do velho brás! Quando vi o título pensei que fosse algo como " Il Fu Mattia Pascale", mas não. O pobre "Fu" si fu, mesmo, estava morto, mortíssimo.
Uma tragédia digna de uma ópera, com tutti i cuori a piangere! Abraços.

Soninha disse...

Olá, Wilson!

Seja bem vindo!

Que situação, heim!
Coitada da Edmèa, mas, no sentido de ficar viúva, sem filhos, acostumada à dureza da vida de boêmio do marido, que nem se dera conta que estaria livre deste transtorno. Mas, vida de casado é assim, né?! A gente acostuma até com o ruim...
Interessante, também, como antigamente se procedia com relação aos defuntos...velava-se em casa mesmo e os amigos ou parentes se encarregavam de preparar o morto e o local para o velório.
Ainda bem que hoje em dia, embora sejam caroso estes serviços, temos locais mais apropriados para estas ocasiões...coisas do progresso, não é mesmo?!
Valeu, Wilson!
Obrigada.
Muita paz!

Miguel S. G. Chammas disse...

Bravo!
Bravissimo!
Mais um grande cronista adere a este blog.
Wilson seja bemvindo e, por favor, traga com sua chegada toda a sutileza e perspicácia dos teus textos, sempre muito bem desenvolvidos.
Por falar nisso, pobre da Dna, Edméa, afinal, nunca mais será uma mulher repleta de alegria....

Zeca disse...

Olá, Wilson!
Já chegou muito bem vindo, com esta história hilária que me fez rir do começo ao fim! Embora esperasse um final mais "dramático", operístico mesmo, encontrei-o muito bem costurado ao "terno de madeira" que acabou levando o defunto para o lugar ao qual nenhum de nós quer ir, pelo menos por enquanto. E não posso deixar de unir-me ao coro geral e dizer: "Coitada da Dona Edmèa!"
Espero muitos outros textos como este!
Abraço.

Arthur Miranda disse...

Nátale, nunca ri tanto em um velório, como nesse seu, nesse seu tão bem contado conto é claro.
E quando chegou à parte do tamanho do "cavicchio" do falecido eu em proteção aos meus interesses próprios
sentei-me e permaneci sentadinho até o final da historia. Pensando; e se no final de seu conto o defunto não estivesse morto de fato??? Seguro meu amigo morreu de velho. Parabéns e seja muito, mas muito ben vindo mesmo no MSBS.

margarida disse...

Natale, lendo seu texto lembrei do meu tio Nerio que teve morte muito semelhante e o velorio foi na casa em eu morava, marcou muito minha infancia. Um abraço.

Wilson Natale disse...

Agradeço a todos pela calorosa boas-vindas! Velórios na Mooca, Brás, Bixiga eram um espetáculo à parte.Não bastava a dor. Era preciso dramatizar... Para que o povo não saisse falando que o defunto não foi bem-chorado. Aqui, tratei dos bastidores do velório onde, mesmo com toda a irreverêcia, a solidariedade era amorosa e intensa. Abraços a todos. Natale.

Unknown disse...

Natale,acho que os velórios de antigamente, eram marcados pelo riso,principalmente de piadas e estórias divertidas, contadas quase sempre à noite,enquanto guardavam o defunto. Hoje,pelo menos aqui no Rio, não há mais velórios durante a noite, por conta de assaltos que ocorriam nesse período.
Seu texto realmente é muito hilário.
Um abraço

Luiz Saidenberg disse...

Wilson, pensando bem, coitada de Da. Edméa, enquanto o cidadão VIVIA, como bem notou a Soninha! Madonna mia, conviver-se com um stronzo destes! Abraços.

Wilson Natale disse...

A bem da verdade é preciso que eu diga que o Seu Cármine era um daqueles "bebuns" inofencivos. Chegava em casa trançando os pés. Mas, no dia seguinte,na hora certa, lá ia ele para o trabalho. Nunca perdeu um dia que não fosse por doença. E D. Edmèa recebeu certinho a pensão e o pecúlio.
Abração,
Natale