sábado, 23 de abril de 2011

Sexta-Feira da Paixão (1960)


(ou, Como um estúpido bocudo perdeu o seu ovo de Páscoa)
O velho ditado vitoriano deveria ser dito ao contrário: Adultos são para serem vistos e não ouvidos!
Fosse assim, as crianças estariam a salvo de muitos males. Principalmente eu, que vivia prestando atenção ao que os adultos diziam. Os tais adultos, nesse caso, eram os amigos do meu tio Amedeo. Falavam eles sobre as procissões e se divertiam descrevendo os "santarrões" e as beatas que as integravam: Eles, uns paus d'água, desbocados que viviam mexendo com as mocinhas. Elas, todas "mexeriqueiras". E os "amicci" falaram muito, muito mais... Davam uma visão diferente daquela que eu tinha sobre as procissões. Contavam certas passagens que me faziam rir desbragadamente.
Há muito tempo as procissões foram banidas dos grandes centros, e algumas foram restringidas a um quarteirão no entorno das paróquias.
A que eu sempre via passar, aqui na Mooca, tinha um percurso longo: era a procissão da "Chiesa della Madonna del Buon Consiglio" (Igreja de Nª. Srª. do Bom Conselho). Um quilômetro e meio de percurso. E na procissão, toda uma rica parafernália representativa dos passos e morte de Jesus.
Nesta Sexta-Feira Santa de 1960, fui preparado para ver a procissão por outro ângulo e para constatar se certa passagem era falsa ou verdadeira... Ah! Esses adultos!
O trajeto da procissão começava a ser interditado às cinco da tarde. Às seis, saía a procissão. Eu, minha mãe e minha avó, estávamos desde as seis junto ao cordão de isolamento, na esquina da rua de casa... Algum tempo mais, ouve-se o cantochão fúnebre; mais um minuto e a procissão surge diante de nossos olhos. O padre, os coroinhas, o sacristão; pálios e bandeiras de irmandades; imagens identificam os "passos" de Jesus. No andor, carregado e ladeado por membros da congregação de Cristo, vem a imagem de Jesus açoitado. Mais além, surge, após a representação da queda de Cristo, a Verônica que, abrindo um pergaminho, canta com voz carregada de dor e sofrimento. E, atrás da Verônica, estavam várias mulheres, todas de preto, com véu espesso sobre as cabeças...
Foi aí, nessa passagem que eu, nos dizeres atuais, "dancei bonito". É que os amigos do meu tio contaram que, atrás desses espessos véus, estavam as 'biscates' mais conhecidas da Mooca, as 'putane' de vida alegre, as moças que deram um (para eles bom) 'mau passo' e certas senhoras casadas (na opinião deles muito gostosas), que haviam praticado o adultério. Elas expunham-se ao "julgamento público" (Expostas? Como assim? Cobertas até os pés? Nem as mãos se podiam ver?)... Eram as tais 'Madalenas Arrependidas'. Arrependimento que os "amicci" do titio diziam durar até o fim da procissão.
Eu, querendo mostrar que tinha mais conhecimento que a minha mãe e vovó (aqui foi a minha queda), digo, gritando de satisfação: "Nonna! Mamma! Guarda le putane!" (Vovó! Mamãe! Olha as putanas!). Um forte tapa na boca, dado pela minha mãe, quase me faz engolir os dentes. Olhei ao redor e vi mulheres me olhando com olhos que diziam "Massacra!" E vi homens que mordiam o lábio inferior para não explodirem de rir. Mudo, assisti à procissão até o final da sua passagem. Só em casa minha mãe percebeu que meu lábio sangrava.
Tratam o corte do meu lábio, dão-me um pano com uma pedra de gelo para pôr em cima e evitar o inchaço e começam as perguntas: Quem foi que te ensinou essa barbaridade? Quem disse isso a você? Quem daqui, quem dali... Quem de lá... E eu, "mudinho da silva". A paciência limitada da minha avó se extingue: "Não vai falar, não quer falar e eu sei por que! Esse "bestia" está protegendo o Amedeo! Uma coisa dessas só pode ter vindo daquele "stronzo".
"Amedeo! Amedeo!" - lá se vai a "nonna" até o quarto do meu tio. O bate-boca que começa lá e termina na sala. Meu tio olha na minha cara, como quem perguntasse algo. Eu movimento a cabeça em negativa. E a "nonna" falando, falando. Jogou na cara do meu tio que ele era uma influência nociva para mim. Titio ofendeu-se. E eu gritei, calando a minha avó: "Juro por Deus que não foi ele! “Ouvi a história de uns homens que estavam jogando “trucco”, lá no bar.” Menti. E, sob pressão, como eu era bom nisso!
"E por que não disse antes, "stronzo"?", pergunta a minha mãe. "Porque sei que nem a senhora e nem a "nonna" gostam que eu fique na porta do bar e nem que eu fique vendo os homens jogando."
A "nonna" desculpou-se com o meu tio, não sabia o que fazer para reparar as palavras duras que havia dito a ele. Desculpou-se como podia e, para se safar, direcionou toda a sua raiva contra mim. Ouvi palavras dramáticas do quanto eu a fazia sofrer e o quanto ela se sacrificava por mim, pelo meu bem-estar... Coisas que mães, avós de todos os tempos diziam, dizem e dirão...
Aproveitando um momento de calmaria, meu tio diz: "Vem "Ciccio". Vamos ver se a padaria está aberta. Eu quero comprar sorvete." Saímos.
Na rua, ele me diz: "Mentirinha mais esfarrapada aquela tua. Quem foi que te contou essa história da procissão?". Eu respondo: "Foram os teus amigos!". O "zio" cai na gargalhada: "Mas que amigos mais f... d... p... que eu tenho!"... "Eles te falaram sobre 'as mulheres de padre'?" "Não?... Então eu te conto..."
E lá estávamos nós, descendo a rua, eu ouvindo e ele enchendo a minha boca dolorida de risos e a cabeça de "cacca"... E a padaria estava fechada.
Em casa, meu "nonno" e meu pai nos esperavam. Pensei comigo: "É hoje que o couro vai cantar". O "babbo" fala comigo em voz pausada: "O que você fez hoje foi muito grave e triste. Foi uma falta de respeito a Jesus. Não vou bater em você e nem castigar. Mas, pelo que você fez hoje, não vai ganhar um ovo nesta Páscoa."
Pensei "Como não vai me castigar? Está me dando o pior castigo." Nada a fazer, senão resignar-me. Meu pai nunca voltava atrás.
Antes de sair da sala, vi papai e vovô olhado um para a cara do outro, mordendo os lábios inferiores - como os homens na procissão - para não caírem na gargalhada. Desabafei com o meu tio: "Cazzo! Eles me castigam e ainda riem da minha desgraça!" O tio pisca um olho para mim e diz: "Agradece a Deus por ter perdido o ovo de Páscoa e não os "teus".
Tio Amedeo era um sábio. Muito sensato.

Por Wilson Natale

18 comentários:

Miguel S. G. Chammas disse...

Natale, excelente texto e relatando uma situação extremamente delicada.
Os dogmas de antiogamehte eram tão importantes como o ar que se respirava.
Valeu a historia, ri às bandeiras despregadas (gostou do termo?).
Abraços e Feliz Páscoa.

Luiz Saidenberg disse...

Natale, grande Zio Amedeo! De tios assim é que toda criança precisa, os que desmistificam ritos tradicionais e lutos funéreos,
com sua irreverência-seria acaso um anarquista?
Quanto às penitentes cobertas, isto me faz lembrar La Processión de Los Pasos, na Espanha, com os encapuçados carregando, como expiação, pesadíssimos altares.
Em alguns lugares do interior do Brasil ocorrem vestimentas parecidas, sem a grandiosidade das, por exemplo, originais em Sevilha. Triste, mas magnífico espetáculo. Gostei da história...e do Zio Amedeo! Abraços.

Arthur Miranda disse...

Bravo Natale, bela e gostosa narrativa, mas a coisa mais cruel a meu ver foi você ter ficado sem seus ovos ( os de Páscoa é claro).Pois para mim isso seria um grande castigo.
Quanto ao Tio Amedeo, queria ter tido um tio assim, mas felizmente eu tive um irmão por parte de pai quase assim chamava-se Jorge. Parabéns ri muito.

Soninha disse...

Olá, Wilson!

Interessante o que se passava na cabeça das crianças,quando viam estas imagens....as das mulheres com véus,falando algumas lamentações ritimadas...
Quando eu era criança também não compreendia nada e minha mãe e minha avó nos explicavam sobre o papel daquelas mulheres, na procissão... Depois, quem nos explicava melhor eram as freiras do Vila Prudente, e o próprio pároco, durante algumas missas.
Sua história é bem engraçada e nos trouxe o cotidiano de sua família italiana que, acredito,era o dascentenas de outras famílias italianas em nossa Sampa.
Valeu, Wilson!
Obrigada!
Feliz Páscoa!
Muita paz!

Soninha disse...

PS:
* As freiras do colégio onde eu estudava,o circulo de trabalhadores cristãs de Vila Prudente,ou simplesmente, círculo operário.

Perdão.

Muita paz!

suely aparecida schraner disse...

Gente, que porca miséria! ma che roba. Povero bambino! Grazie,Wilson!

Zeca disse...

Natale!

Pior que a mamma e a nonna, foi o babo, que mentiu feio pra você! Ele mesmo disse que não iria castigá-lo, mas confiscou os seus ovos (os de páscoa, claro!). E tem pior castigo para um moleque do que ser privado dos seus ovinhos?! Pena que o simpático zio não tenha corrigido essa falha...
De resto, a história é ótima; mostra claramente um dia de procissão na vida de uma autêntica família italiana. Daquelas dos nossos tempos, pois hoje acho que os costumes devem ter mudado bastante...
Parabéns pela forma leve e engraçada de nos contar essa história, que contada de outra forma poderia até ficar melodramática.

FELIZ PÁSCOA A TODOS!

Abraço.

marcia disse...

Muito alegre,divertida sua ..Acho que muita gente teve um tio tipo Amedeo.
abraço

Wilson Natale disse...

MIGUEL: Ahahahaaa! Bandeiras despregadas foi ótimo! Quando é que você vai contar as histórias do seu tio?
Abração, Natale

Wilson Natale disse...

SAIDENBERG: Parecida às procissões de Sevilha, mas não com a mesma pompa e grandiosidade são as procissões dos fogos, feitas à noite, em Minas Gerais.
Tio Amedeu foi a melhor coisa que aconteceu na minha infancia, adolescência e idade adulta. Enfim, amelhor coisa que aconteceu na minha vida.
Sou privilegiado! Tive um Avô-herói, um Pai hérói e um Tio Pai d'égua! Ahahahaaaaa!!!

Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

ARTHUR: Meu pai era pródigo na punição e na recompensa. E, no castigo merecido, ele não voltava atrás em sua decisão.
Mas, graças a essa punição, pasme, aconteceu um milagre de Páscoa!
Tio Amedeo, chocólatra e egoísta, dividiu se ovo comigo!Claro que ele estava com uma cara de quem estava fazendo o maior sacrifício do mundo... Ahahahaaaa!
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

SONINHA: Até ouvir a "história" pela boca dos amigos do meu tio, eu pensava que as tais "donne in nero" (mulheres de pret0) tinha a haver com as três Marias somente.
E a italianada era, e ainda é, de uma religiosidade extrema. O que não os impede de louvar e "bestemiare" (dizer impropérios) a Deus (risos).
E as pobres "Madalenas" que já eram faladas ficavam mais faladas ainda! Sabe como é, né? A língua não tem osso...
Um ditado npolitano define bem isso: "Esconda o teu pecado e viva no céu. Revela o teu pacado e tenha um inferno em vida".Enfim, o arrependimento sai mais caro que o pecado (risos).
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

SUELY: Que o povvero bambino mereceu, mereceu!Ahahahaaaa!
Tenho certeza que, naquele momento, minha mãe e avó, olharam para o céu e perguntaram "que mal haviam feito para ter um filho/neto como eu"?...
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

ZECA: Meu pai não me castigou. Castigar era sentir a "Serafina" (nome que dávamos - eu e meu irmão- à cinta dele) cantando no nosso trazeiro".
Na verdade, papai me puniu com rigor. E, embora raras, as punições aplicadas por êle, sempre atingia os meus pontos fracos.
E êle me puniu com muita razão! Afinal, gritar a pleno pulmão, acima do canto entoado "Olha as putanas"!Não é coisa que se faça. Ahahahahaaaaa... Mas, eu fiz!
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

MÀRCIA: Com certeza toda família tem um Tio Amedeo. Eles são o sal, as especiarias, que tornam a família mais gostosas e nos transmitem a alegria de viver.
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

ZECA: Ahahahaaaaaa!
O TRASEIRO, meu e do meu irmão, não é diferente do dos outros. Então, leia TRESEIRO EM VEZ DE TRAZEIRO.
Vez ou outra, entre os tantos erros, sempre acho, ato falho, que traseiro tem a haver com o verbo TRAZER (risos).
Abração,
Natale

Laruccia disse...

Fiquei com pena de vc, Natale "ma naquela hora vc tinha que falá estas coisas, porca miséria". Nem um ovinho, piquinininho, daqueles que davam de troco? O seu babo era brabo,hein?
Natal, adorei sua crônica. Soberba, como sempre, formidável. Parabéns, vechio compagno.
Laruccia

Wilson Natale disse...

Larù, carissimo! Nen um ovinho mixuruca para não passar a Páscoa em branco!
Mas, como disse acima, aconteceu um milagre. Tio Amedeu dividiu seu ovo comigo.
Nessa época eu descobri a verdade do ditado: Falar é prata. Calar evita que a gente perca os dentes (risos).