segunda-feira, 4 de abril de 2011

Sem consultar seu coração, uma trágica opção e premonição a escolha, única preocupação, a esperança da volta a seu torrão



As datas foram baseadas nas que constam na capela da família Laruccia, no cemitério do Braz - "Quarta Parada", que não fica no Braz.


1915, Santo Laruccia, forte e sacudido, recém-chegado de Petrópolis, Rio de Janeiro, com seus pais Vito e Ana Maria e mais quatro irmãos, nascidos em Polignano à Mare, província de Bari (Itália), e a mais nova, Carmela, nascida em Petrópolis.
Ao chegar ao Brasil, Vito vai direto a Petrópolis, em 1901, onde nasce a Carmela.
Por enquanto, fico com o Santo. Tudo baseado em datas sepulcrais e narrativas familiares, pois a pouca lembrança que guardo do "tzi" (tio) Santo é de 1938, ano de sua morte - e eu com seis anos.
Com trinta anos, trabalhando com seu pequeno caminhão como distribuidor do jornal "Correio Paulistano", Santo, vaidoso (traz seu nome grafado na porta do caminhão), ambicioso no bom sentido, tem uma existência atribulada e rica em afazeres sociais no bairro do Braz, reduto de maioria absoluta de polinhaneses, oriundos de Polignano à Mare, Bari, sul da Itália. Essa espécie de "gueto" peninsular, tão fechada que quem não é barês é tachado de "frastire", ou forasteiro, estrangeiro, mesmo sendo brasileiro. Seu apelido entre seus pares é "Carioca", em virtude de seu falar, traindo influência fluminense, pois, mesmo sendo italiano e polinhanês, não guarda nada do sotaque barês.
Entre suas prestações de serviço na comunidade está a de servir, com seu caminhão, as várias necessidades da Associação São Vito Mártir (atual mantenedora das Festas de São Vito), como buscar e levar, nos municípios do ABC, os músicos que animam as festas e acompanham as procissões, nos meses de maio e junho. Tem também a destreza de sacrificar pequenos animais para as festas de Páscoa, Natal e fim de ano, tais como patos, galinhas, perus, porcos e cabritos. Um verdadeiro "fac toctum" da barezada.
Popular, conhecido, respeitado por todos nos seus quase 28 anos, resolve casar; como todo bom italiano na época, quer progredir e voltar pro seu torrão natal e mostrar aos que ficaram que a ida à América foi uma boa opção do seu pai, Vito.

Pela preocupação de ser barrado no seu retorno à Itália, por não ter atendido ao chamamento de italianos no exterior ao alistamento militar durante a guerra mundial (1914/1918), decide se casar com uma italiana, baresa, se possível. Prevê que, se casar com uma compatriota, facilitaria na eminência de qualquer problema que poderia surgir. Isto se deve também, como lembra meu saudoso pai, Bartholomeu, seu irmão, a um mal disfarçado preconceito de não querer se casar com uma barezinha do Braz, quase todas (como minha mãe) operárias da fábrica de tecidos do Matarazzo.

Para tanto, aciona amigos e parentes em Polignano, que estabelecem contatos com os imprescindíveis e onipresentes casamenteiros de plantão. Pessoas boas, bem intencionadas, estes formadores de matrimônios, bem sucedidos na maioria das vezes, quando sabem de resultados positivos se satisfazem tanto como se, num coito, chegassem ao clímax completo.
Com fotos do Carioca, Tereza Pedoti, uma polignanesa de 25 anos (para os padrões da época, já na "marca do pênalti"), de boa família, se interessa pelo pretendente por imposição dos pais. Contrariada por isso, aceita casar por procuração e parte para o Brasil, em São Paulo, isso em 1915. Gostaria de, primeiramente, como todo mundo, namorar, conhecer bem o noivo e, se gostar, casar. Essa predisposição teve resultados funestos pros dois.

Já no Braz, com a esposa, Santo, morando na Rua Assumpção, 113, tem o primeiro e único filho, Vito, em 1916. Como todos os seus irmãos, respeita a forte tradição dos barezes (e dos italianos em geral), colocando nos filhos os nomes do pai ou mãe, conforme o caso, começando com os avós paternos e depois os maternos e dos tios e tias, se a prole for aumentando; sempre priorizando o lado paterno.
Abrindo um parêntese, esse costume se prendia à tradição de que sempre, por séculos e séculos, os parentes se dariam tão bem e que seriam, todos eles, bem comportados e corretos. Só na família dos meus pais tivemos seis "Vito", cinco "Ana Maria", três "Santo", três "Vicente", dois "Modesto" e dois "João", a maioria com sobrenome igual. Sou um dos Modesto. Por mais de trinta anos tive de correr aos bancos para tirar "certidões negativas" por causa de meu primo, que um dia me pediu que tomasse cuidado com o nome, pois "ele tinha contas em vários bancos". Cuspiu pra cima, sifo (e mifo também). Vamos continuar.

Santo continua levando sua vida de sempre: trabalha e cuida do filho e da esposa, segundo seus critérios. Tereza tem no filho a esperança de um dia voltar a Polignano. Ama demais o Vitinho, lindo menino (característica familiar), que cresce, aprende as primeiras letras na Regina Marguerita, se aplica no primário, no Romão Puigari, até que Santo resolve colocá-lo no Colégio São Bento.

Por essa época, nove ou dez anos de casados, Tereza começa a apresentar os primeiros sinais de esquizofrenia, exigindo tratamento. Partindo de um casamento errado, sob vários aspectos, a união se mantém por absoluta concordância, respeitando a "opinião pública", fugindo de futricas de parentes, amigos e vizinhos. Vitinho é a principal peça de resistência do casal, mas Tereza não suporta mais e parte pra agressões. O cerne das intrigas será somente desamor? Ou nem isso, se essa emoção nunca existiu? Nunca saberemos.

Em 1927, Santo, depois de vários tratamentos e consultas a especialistas, escreve aos pais da Tereza, na Itália, contando, pormenorizadamente, o que está acontecendo. Acredita que na Itália deva ter algum especialista ou clínica voltada para esse problema, e que vai mandar a Tereza de volta para um parecer de outro médico peninsular; ou que, talvez, estando no seio de sua família, ela reaja de forma positiva.

Acertado isso, prepara a viagem de navio. Tereza só concorda em ir embora se levar o filho. Carioca tenta convencê-la dessa impossibilidade, sem sucesso.

Sabemos que determinado tipo de esquizofrênico nunca aceita a situação de doente - os outros é que padecem de misteriosa doença. Não vamos nos perder nestes detalhes; talvez ela tivesse suas razões, ou não - a verdade só Deus é que sabe.

Com apoio da família, Santo, com ajuda de enfermeiros e médicos, consegue embarcá-la. Isso meu pai Bartholomeu conta, não com lágrimas apenas, mas chorando. O adeus de Tereza é digno de uma cena de teatro trágico, como poucas vezes viu em sua vida. Na amurada do navio, em Santos, segura por enfermeiros, grita como louca pelo filho que está lá, com o pai, pedindo sua presença, e vocifera ódio por todos os poros contra o Santo; joga praga as mais temerárias e carregadas de sangrenta visões, terminando com "... vou sem meu filho, seu filho de uma p..., desgraçado e maldoso instrumento do demônio, mas você não terá o gosto de ficar muito tempo com ele, eu vou te arrancá-lo, custe o que custar...".

Dois anos após, em 1929, Tereza vem a falecer, na Itália, vitimada por um profundo, deplorável e triste estado melancólico, sem nenhuma vontade de viver. Neste ano, Santo segue sua vida e as festas de São Vito se aproximam, exigindo de seus serviços os contatos com os músicos que, desta vez, são de São Caetano.

Resolve ir, acompanhado de outros dois diretores da Associação, no seu caminhão, para contatar e agendar com os referidos músicos. Estão todos reunidos na esquina da Rua Assumpção, com a travessa do Gasômetro, pequena viela sem saída, existente até hoje, onde se localiza o empório de meu pai, preparando-se para viagem (na época). Vitinho e seu primo Vito, meu irmão (já falecido), brincam nas imediações, quando o Vitinho manifesta desejo de ir com o pai. Santo concorda e convida o sobrinho, meu irmão Vito, a ir também. Meu pai não deixa, pois eles, as crianças, vão na carroceria, enquanto que na boléia iriam os dois diretores. Meu pai chama a atenção do irmão, mas não adianta, o menino quer ir.

Na volta, com pressa de chegar antes de escurecer, nos caminhos de terra, Santo não vê um enorme buraco. O caminhão, com relativa velocidade, entra com a roda dianteira e os três, na boleia, batem com a cabeça no teto e pernas nas laterais; mas o pior acontece com Vitinho, quando a roda traseira, como uma catapulta, cai no buraco, arremessa o garoto de treze anos contra o solo, matando-o instantaneamente.

Santo casa-se novamente em 1934, com Maria Impaleia, viúva de seu primo, Bartholomeu Carone, que vem com dois filhos, Luiz e Francisco (os dois já falecidos), e dá-lhe um casal de filhos, Vito e Ana Maria (só ela viva).

Estava, assim, consumada a premonição de Tereza? Não me atrevo a responder; deixo cada um, se quiserem, dar seu parecer sobre essa triste estória.

 

Por Modesto Laruccia

9 comentários:

Miguel S. G. Chammas disse...

Mô, ha muita água para passar por debaixo de uma ponte. Há muitos misterios entre o céu e a terra.
Como poderemos nós, simples mortais, julgar os designios de Deus ou do destino?
Podemos, apenas, constatar que seu lindo relato, como soe acontecer, muito nos emocionou.
Cada vez que surge um texto seu por aqui, me preparo para saboreá-lo em todos os pontos e virgulas.
Continuo cada vezmais, a ser teu fã de caderneta.]
Parabéns.

Arthur Miranda disse...

É Modesto como já disse o Miguel não acredito em premonição, mas... O importante de tudo isto é esse seu enorme talento de escritor, registrando aqui mais um capitulo dessa rica e maravilhosa historia dos Laruccia. Receba meus enormes parabéns em ritmo de Tarantela,

LAERTE CARMELLO disse...

Caro MODESTO: também eu não acredito em premonição. Acredito sim no poder de atração, ou seja, somos como um ímã: atraímos tudo aquilo que pensamos e desejamos. No caso, Tereza já estava bem longe e não tinha mais nada que atrair para Vitinho. De outro lado, Santo estava pensando em trabalhar para sustentar a família sempre de uma perspectiva positiva. Então tudo o que aconteceu foi um mero acidente.
Apesar de triste, gostei muito da sua história, que mostra uma parte da saga dos Laruccia, família de Imigrantes que, a exemplo de outras milhares, ajudaram a construir os fundamentos do desenvolvimento de São Paulo e do Brasil. Hoje o Brasil é um dos emergentes que surpreendem o mundo não é por acaso. É graças ao trabalho e saga
de Imigrantes como a Família Laruccia, aqui radicada pelo precursor Santo e desdobrada pelos
seus valorosos descendentes, como
Você Modesto Laruccia, que só nos
proporciona bons e felizes momentos de vida! Um abração! Laerte.

Zeca disse...

Laruccia,

como bem disseram o Miguel, o Arthur e o Laerte, seus textos são excelentes e chegam mesmo a emocionar. Essa história trágica do seu primo é uma de tantas que aconteceram na maioria das famílias que para cá vieram ajudar a construção desse Brasil onde vivemos hoje. A história toda, que nos contou, iniciada com a vinda dos seus avós e tios para cá, é um retrato da forte imigração ocorrida no início do século passado, onde países como a Itália e Portugal sofriam os horrores de guerras e epidemias, sendo muito maltratados pela pobreza, ansiando por melhores condições de vida na América. Daí ramos inteiros das famílias se dirigiram para a "América do Norte" e outros para a do Sul, onde o Brasil os acolhia de braços abertos, pois necessitava da sua disposição para o trabalho duro. Muitos se frustraram, mas muitos acabaram encontrando aqui seus caminhos, prosperando e consolidando suas famílias. Merecem respeito e homenagens todas aquelas pessoas que deixavam sua terra, munidos de muita coragem para enfrentar toda espécie de problemas na busca de uma vida melhor!
Parabéns, Laruccia, por mais esta bela e emocionante crônica!

Abraço.

Wilson Natale disse...

Larù: Como dizem os Napolitanos, "il Destin ci tiene tra le ditta" (O destino nos tem entre os dedos.)e nunca se sabe o que será amanhã.
Premonição? Pode ser. Mãe é um ser inexplicável. Mesmo que seja de uma forma obscura, sempre sabe e sente o que se passa, passará com a sua "creatura".
E,demora as vezes,a fatalidade um dia bate em nossa porta.
Gostei muito do texto: Uma história familiar retratando a vida de um imigrante recheada de esperança e de drama.
Abração,
Natale

Miguel S. G. Chammas disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Soninha disse...

Olá, Modesto!

A saga dos Laruccia ilustrando um pouco a própria história dos imigrantes italianos, qua tanto trabalharam para o engrandecimento deSão Paulo e demais cidades do Brasil.
Bacana saber um pouco mais sobre sua família, Modesto.
Valeu!
Obrigada.
Muita paz!

Luiz Saidenberg disse...

A história dos Laruccia...certamente, uma bela página a ser registrada na saga dos imigrantes bareses, e mesmo no histórico geral da imigração no Brasil. Verdadeira peça de acervo de museu. Parabéns, Modesto, e avanti il popolo, cosí marccia la humanitá...abraços.

suely schraner disse...

Êta árvore genealógica, Modesto! É a vida aprontando das suas. Eu gostei do do seu texto. Bela aula de história!Abraço.