Na fila do caixa, ouvimos os gritos: - pois o que eu quero é que você morra! Tudo isto porque, quando a mulher levara a mão ao coração, uma senhora perguntou o que ela estava sentindo. E recebeu esse tresloucado berro como resposta.
Viramos e vimos que a desvairada era uma velha conhecida, pelo menos de vista. Era moradora de uma estranha casinha no Brooklin, que uma vez me inspirou, por seu aspecto e de seus habitantes, a escrever “A Voz da Lua".
Tinha dito então que era gente pacífica, que não incomodava ninguém. E realmente, vimos essa senhora, meio mal ajambrada, conversando tranquilamente com outras locais. Uma vez, ao nos ver passar de mãos dadas, comentou: - como é lindo o amor.
E acho que não era ironia...
Mas, desta vez, ela estava atacada. Possuída, como dizem alguns. Mal vestida, de sandálias havaianas, cabelo à Joãozinho.
Avançou mercado adentro, em passos rápidos, e ouvimos mais gritos. As pessoas se entreolhavam, embaraçadas. Logo, passa rapidamente por nós, sai sem nada levar de compras.
Enquanto embarcávamos os pacotes, no estacionamento, ouvimos mais gritos, lá fora, a plenos pulmões.
Já aí, a Lua não tem nenhuma culpa; é loucura no duro. Que tristeza constatar a fragilidade do cérebro humano, sujeito a impulsos elétricos e cargas químicas, que, minimamente alteradas, provocam a alucinação.
Certa vez, um terapeuta afirmou-me que o maior medo humano é, depois da morte, a loucura. Ou seja, a morte da razão, para mim bem pior do que a primeira morte, e da qual a pessoa não se dá conta; para ela os loucos são os outros.
Outro personagem local, rapaz de boa aparência e, segundo contaram, de boa família, vivia também por ali, jogado pelas calçadas. Ás vezes, bem vestido, casaco de couro, óculos raibã, parecendo um astro de rock; mas, logo em seguida, sujo, barbudo, esfarrapado, falando sozinho.
Disseram-me que sua família morava ali por perto e seu grande problema foi a droga, porém, parece-me ser caso bem mais sério, como a senhora do princípio do texto. Por ali esteve, comovendo a todos, por vários anos.
Uma só vez, educadamente, pediu-me um trocado, e apressei-me em atendê-lo. Mas, agora sumiu... Há muito não vemos sua triste figura. Estará internado? Terá morrido?
Louco, louco, louco, louco, canta a balada de Piazzola. Mas isto, mais que um tango, dá tristeza, vergonha, horror de pertencer à raça humana, de ver seus absurdos e como são tratados esses infelizes pela sociedade. Sem esperança de assistência, nem recuperação.
Então, só mesmo saindo de trás de uma árvore, com uma bandeirinha de táxi livre no chapéu de Carlitos e declarar- Yo sé que estoy piantao, piantao, piantao...no vés que vá la Luna volando por Callao?
Por Luiz Saidenbeg
9 comentários:
Saidenberg: Meu pai sempre dizia uma frase interessante: "Um dia a gota d'água faz transbordar o copo e, então, começa o dia-de-cão!
Pessoas que julgamos reservadas, na maioria das vêzes são contidas em suas emoções. E, um dia a represa se rompe...
Graças a Deus, venho de uma raça dramática, emocional. E fica difícil descobrir se a italianada está "pirada", ou não (risos).
Ás vêzes, a loucura é senilidade, esclerose, alzhaimer, ou a menopausa que eleva a pressão a mil, ou então, a queda/subida do açúcar (no sangue).
Outras vêzes, o caminho das pedras é substituído pelo caminho das drogas...
E também a vida que pode se transformar em um labirinto, onde se procura uma saida sem encontrar.
Razão e loucura separadas por um tênue fio. E um dia, alguém ultrapassa a barreira, "mata a família e vai ao cinema..."
Independete de ser homem ou mulher, há um quê de Medéia em todos nós.
Gostei da sua crônica!
Abração,
Natale
Olá,Luiz!
Hoje em dia, com o advento dos direitos humanos, usam o termo deficiência mentalpara qualquer distúrbio psíquico e buscam tratar de forma mais racional. Mas, nem sempre foi assim e a exclusão persiste até hoje.
Dificil esta questão social,nãoémesmo?! Seres doentes que fazem a sociedade humana doente tb, necessitando urgente o tratamento adequado, através de mudanças significativas,comportamentais,sociais,políticas e educacionais.
Bela crônica,Luiz!
Valeu!
Obrigada.
Muita paz!
Pois é, Saidenberg!
Através desta bela crônica, você nos trouxe um pouco daquilo que todos vemos por aí, às vezes nem tão por aí assim... muitas vezes, a "loucura" está tão próxima de nós que basta um gesto, um olhar ou um pequeno barulho para que ela surja, sem controle.
Como diz aquele dito popular: de médico e de louco, todos temos um pouco. E mais uma vez, a sabedoria popular que cria essas sentenças, mostra o conhecimento acumulado, ao longo dos séculos.
Todos temos, em nossa rua, bairro ou cidade, pessoas com algum tipo de deficiência mental, muitas vezes, tão forte, que aquele ser se transforma numa espécie de habitante de outro planeta, motivo de medo para alguns e até de zombaria para outros. O difícil mesmo é encontrar pessoas que as notem, que as vejam respeitosamente e até mesmo sintam falta delas, como acontece em sua bela crônica.
Parabéns pela delicada colocação! Parabéns pela demonstração de respeito ao seu próximo!
Parabéns pelo sensível texto!
Abraço.
Acredito que algumas das pessoas
"perturbadas" ,tenham sido esquecidas, rejeitadas pela família, amigos e sociedade e passaram a viver uma vida plena de solidão e, então a alma, o coração,
o corpo ficam de braços abertos para a "perturbação".
abraço grande
Muito obrigado. E, muito legal, Soninha, a frase caiu muito bem.
Uma dica, já que no site vários colaboradores foram, ou são católicos, alguns mesmo tendo sido coroinhas, como o caro Miguel. Ainda que não tenham sido nada disto, como eu não fui, não percam ! "Homens e Deuses", filme francês, Palma de Ouro em Cannes conta a grandiosa saga de um pequeno grupo de monges católicos, que vivem na Argelia e prestam assistência à comunidade àrabe local, sendo queridos e vivendo em harmonia com todos. Até que um dia...o filme independe de religião, credo ou raça; fala de humanidade, colocada entre sua fé e a morte, da grandeza ou da miséria a que o Homem (o verdadeiro Ser Humano, sem machismos ou feminismos) pode chegar, num espetáculo grandioso e lindíssimo. Sem pieguices, nem hipocrisias, ou demagogia política de qualquer espécie. E baseado em fatos reais.
Vc sabe, Luiz que este é um assunto muito delicado.
Sua preciosa escrita, enobrecida pelo cuidado e respeito que se deve ter com esquizofrênicos, é um sinal de que vc sabe como sofrem estas pessoas, principalmente os familiares. Sei por que tenho entre meus familiares, pessoa que merece todo nosso respeito e atenção. Não vou me estender sobre o assunto por motivos óbvios mas, o que vc conta é a mais dolorosas das verdades. Gostei muito do seu texto, Saidenberg,
Parabéns.
Laruccia
Caro Modesto, muito obrigado. Na realidade, existe na família de minha mulher uma pessoa que sofre desses transtornos, incuráveis. É muito doloroso, e o que pode se fazer é ir empurrando a situação, com paciência e remédios que permitem condições mais toleráveis de vida. Abraços.
Pois é Luiz, a pior doença é aquela que a pessoa não se dá conta que tem. Se a pessoa quebra uma perna, todos veêm e se compadecem. Já as doenças da alma só despertam medo e impotência. Mais um belo texto. Abraço.
Luiz, primeiramente desculpa por minha tão atrasada visita, segundamente, sua crônica me fez lembrar de muitas outras figuras exuberantes, exóticas e até mesmo assustadoras que vi em toda a minha vivência pelas ruas de São Paulo.
Lindo texto. Parabéns!
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