Quatro damas na praça, três vestidas uma nua
A praça, pequena e quase solitária. Cheguei cedo, como das duas outras vezes em que fora entrevistado ali. Numa delas, fui fotografado abraçado à moça nua. Na outra, não.
De qualquer forma, saíram em pequenas notas de jornal, e em nada resultou: a bela e nua dama continuou na praça, ainda mais nua e indefesa que antes.
Se vocês não sabem, a praça é a Prof. Cardim, defronte ao Jockey, e a moça, a estátua Nostalgia. Clássico mármore de Francisco Leopoldo e Silva, fazia par com sua irmã Aretuza, no Parque Trianon dos anos antes de 60, donde nunca deveria ter saído.
Cheguei mais cedo que o repórter e fiquei esperando na pracinha. Esta é meio inquietante: no ponto de ônibus, único lugar para sentar, apenas uma senhora, escura e pobre. Logo levanta-se para tomar a condução.
E ali, fico. Que estará fazendo este circunspecto senhor, com uma pasta de cartão nas mãos? Poderá ser confundido com cliente das prostitutas, ou mesmo assaltado ? Não sei, e espero que não. Bem, por prostituto, nesta idade, dificilmente serei tomado.
Chega o jornalista. Valdir Sanches, veterano do JT (Jornal da Tarde) e agora fazendo trabalhos para o Diário do Comércio. Simpático, temos quase a mesma idade.
Mas, ele já viu de tudo; do Brasil conhece muito mais que eu. Enquanto eu dava tratos à bola, na minha salinha, para fazer campanhas da Fiat ou da Volkswagem, ele girava o mundo. Reportou o fechamento do Paribar, a decadência da Confeitaria Vienense.
Tudo viu e tudo sabe, minha visão já é bem mais limitada. E aí estão, o veterano jornalista e o cronista iniciante, falando de estátuas e tempos passados. Contei-lhe o que sabia, e muitas vezes havia repetido, sobre Nostalgia.
Verificamos que o mármore, de alvura lunar, está muito gasto, devido aos maus tratos e à lavagem inadequada, com jatos de alta pressão. O pedestal, sem sua placa de bronze, pende torto sobre uma falha do terreno, talvez uma galeria de esgoto.
Já que nossa idade é, aproximadamente, a mesma, vamos mais além; falamos sobre o Paribar, o Ponto Chic, enfim, sobre todo o belo centro de São Paulo das décadas de 50 e 60. Muitas vezes introspectivo em casa, falo agora a bandeiras despregadas. Afinal, estou em campo minado, mas bem conhecido.
No final, Valdir resolve entrevistar as outras mulheres, as vivas, da praça. Existem várias delas, espalhadas pelas esquinas, mas ali, bem na Lineu de Paula Machado, estão três juntas, e parecem bem acessíveis. Atravessamos o canteiro e comento - elas devem estar pensando: oba, ali vem dois coroas, cheios da grana !
Mas, não é assim; a recepção nada tem de calorosa, provocante ou mesmo de curiosidade. Embora desinibidas e comunicativas, elas não exibem nenhum charme, ternura, ou intenção sexual. Recebem-nos sem medo e sem problemas, mas há uma invisível barreira, como se fossemos alienígenas aterrizados na praça.
Elas estão à venda, suas intimidades à disposição de quem passa.
Mas, seu verdadeiro eu recolheu-se a um inatingível refúgio interior. A vida tornou-as rijas e frias; mais frias que o branco mármore de Nostalgia. Falam desbocadamente sobre a praça, a estátua que lhes faz companhia há vários anos. Uma está há seis anos, afirma que antes de Nostalgia, havia ali outra estátua, também de mármore. Mas, era homem, não mulher nua. Quem seria ?
Não são pessoas refinadas, nem cultas, mas, burras estão longe de ser. Uma, fala dos jatos de alta pressão, que prejudicam o mármore, e a outra acrescenta: isto fora a poluição da avenida, que deve fazer muito dano. Riem, como se os anos passados ali, sem um banco para sentar, sem banheiro, sem nada, não lhes tivesse causado qualquer problema. O dano maior já fora feito na origem, pela pobreza, pelo descaso.
E, a tudo Nostalgia contempla, ou medita, pois seu rosto, apoiado na mão direita, mostra a tristeza de nascença, em que foi concebida e por tal recebeu esse nome.
Uma página inteira no Diário do Comércio - mais uma esperança de que as autoridades se condoam da pobre donzela e a façam voltar à família, como disse uma das “meninas“: Bom seria se estas também pudessem voltar à sua família, de onde, como Nostalgia, jamais deveriam ter saído.
Ou, continuarão todas, vestidas ou não, até o final dos seus dias, nesta árida pracinha da Cidade Jardim, perdidas no tempo e no espaço imenso desta cidade?
Por Luiz Saindenberg
A praça, pequena e quase solitária. Cheguei cedo, como das duas outras vezes em que fora entrevistado ali. Numa delas, fui fotografado abraçado à moça nua. Na outra, não.
De qualquer forma, saíram em pequenas notas de jornal, e em nada resultou: a bela e nua dama continuou na praça, ainda mais nua e indefesa que antes.
Se vocês não sabem, a praça é a Prof. Cardim, defronte ao Jockey, e a moça, a estátua Nostalgia. Clássico mármore de Francisco Leopoldo e Silva, fazia par com sua irmã Aretuza, no Parque Trianon dos anos antes de 60, donde nunca deveria ter saído.
Cheguei mais cedo que o repórter e fiquei esperando na pracinha. Esta é meio inquietante: no ponto de ônibus, único lugar para sentar, apenas uma senhora, escura e pobre. Logo levanta-se para tomar a condução.
E ali, fico. Que estará fazendo este circunspecto senhor, com uma pasta de cartão nas mãos? Poderá ser confundido com cliente das prostitutas, ou mesmo assaltado ? Não sei, e espero que não. Bem, por prostituto, nesta idade, dificilmente serei tomado.
Chega o jornalista. Valdir Sanches, veterano do JT (Jornal da Tarde) e agora fazendo trabalhos para o Diário do Comércio. Simpático, temos quase a mesma idade.
Mas, ele já viu de tudo; do Brasil conhece muito mais que eu. Enquanto eu dava tratos à bola, na minha salinha, para fazer campanhas da Fiat ou da Volkswagem, ele girava o mundo. Reportou o fechamento do Paribar, a decadência da Confeitaria Vienense.
Tudo viu e tudo sabe, minha visão já é bem mais limitada. E aí estão, o veterano jornalista e o cronista iniciante, falando de estátuas e tempos passados. Contei-lhe o que sabia, e muitas vezes havia repetido, sobre Nostalgia.
Verificamos que o mármore, de alvura lunar, está muito gasto, devido aos maus tratos e à lavagem inadequada, com jatos de alta pressão. O pedestal, sem sua placa de bronze, pende torto sobre uma falha do terreno, talvez uma galeria de esgoto.
Já que nossa idade é, aproximadamente, a mesma, vamos mais além; falamos sobre o Paribar, o Ponto Chic, enfim, sobre todo o belo centro de São Paulo das décadas de 50 e 60. Muitas vezes introspectivo em casa, falo agora a bandeiras despregadas. Afinal, estou em campo minado, mas bem conhecido.
No final, Valdir resolve entrevistar as outras mulheres, as vivas, da praça. Existem várias delas, espalhadas pelas esquinas, mas ali, bem na Lineu de Paula Machado, estão três juntas, e parecem bem acessíveis. Atravessamos o canteiro e comento - elas devem estar pensando: oba, ali vem dois coroas, cheios da grana !
Mas, não é assim; a recepção nada tem de calorosa, provocante ou mesmo de curiosidade. Embora desinibidas e comunicativas, elas não exibem nenhum charme, ternura, ou intenção sexual. Recebem-nos sem medo e sem problemas, mas há uma invisível barreira, como se fossemos alienígenas aterrizados na praça.
Elas estão à venda, suas intimidades à disposição de quem passa.
Mas, seu verdadeiro eu recolheu-se a um inatingível refúgio interior. A vida tornou-as rijas e frias; mais frias que o branco mármore de Nostalgia. Falam desbocadamente sobre a praça, a estátua que lhes faz companhia há vários anos. Uma está há seis anos, afirma que antes de Nostalgia, havia ali outra estátua, também de mármore. Mas, era homem, não mulher nua. Quem seria ?
Não são pessoas refinadas, nem cultas, mas, burras estão longe de ser. Uma, fala dos jatos de alta pressão, que prejudicam o mármore, e a outra acrescenta: isto fora a poluição da avenida, que deve fazer muito dano. Riem, como se os anos passados ali, sem um banco para sentar, sem banheiro, sem nada, não lhes tivesse causado qualquer problema. O dano maior já fora feito na origem, pela pobreza, pelo descaso.
E, a tudo Nostalgia contempla, ou medita, pois seu rosto, apoiado na mão direita, mostra a tristeza de nascença, em que foi concebida e por tal recebeu esse nome.
Uma página inteira no Diário do Comércio - mais uma esperança de que as autoridades se condoam da pobre donzela e a façam voltar à família, como disse uma das “meninas“: Bom seria se estas também pudessem voltar à sua família, de onde, como Nostalgia, jamais deveriam ter saído.
Ou, continuarão todas, vestidas ou não, até o final dos seus dias, nesta árida pracinha da Cidade Jardim, perdidas no tempo e no espaço imenso desta cidade?
Por Luiz Saindenberg
9 comentários:
Pois é, Saidenberg!
Essa praça eu não conheço; provavelmente de passagem sem, no entanto, reparar nela. Mas as mulheres que lá lhe fizeram companhia, devem conhecê-la muito bem e, de você, certamente não esquecerão mais. As vestidas, lembrando o tratamento respeitoso e a despida, embora de mármore, aquecida pelo carinho das suas palavras. Ela talvez devesse, sim, retornar à sua casa; mas sem ela, essa praça talvez fique ainda mais despida e passe ainda mais despercebida.
Abraço.
Saidenberg, foi bom reler aqui o teu texto. Nós e nossas apaixonantes deusas nuas - nós, os caçadores das estátuas perdidas.(rs) Logo eu falarei dos meus amigos de pedra em um texto. Você fotografa as suas, eu as minhas estátuas e, breve, eslas estarão de volta. Se não for nas Praças elas estarão na Internet... Pelo menos aqui elas estarão a salvo do vandalismo.
Continuo achando ótimo este seu texto!
Abração,
Natale.
Eis aí o poeta das obras de arte. Luiz esta é uma das suas grandes característica.
Ler teus textos é aprender mais que nas carteiras de uma escola.
Legal.
Parabéns, Saidenberg, o teor dos seus textos, ganham calor e poesia em todos os parágrafos.
Mô
Saidenberg, toda vez que leio um texto seu aprendo mais um pouco, e como saber nunca será demais, vou continuar lendo e com você apreendendo. Parabéns recheado de gratidão.
Muito obrigado a todos, mas, caro Miranda, quem sou eu para ensinar algo a alguém, ainda mais com sua experiência de vida, muito maior que a simplicidade da minha.
Pelo contrário, chegando quase à casa dos 70, sinto o muito que deixei de cumprir, e talvez nesta altura reste pouco tempo. Abrações!
Eita nossinhora dus afritos, é tanta rasgação de seda qui eu num guento.
Luiz, assume logo a vastidão dos teus saberes, e Tutu para de se fazer de tadinho.
Grazie tanto. Quanto à observação
do Zeca, acho que mais do que está, árida a praça não ficará.
Mas, pensando bem, talvez seja até bom que a estátua fique por lá.
A menos que voltasse para o verde gradeado do Trianon, talvez num local mais movimentado já estivesse destruída.
Abraços.
Olá, Luiz...
Interessantes relatos e belas lembranças.
Fico chateada de ver nossas praças tão deterioradas...que pena!
Valeu, Luiz!
Obrigada.
Muita paz!
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