terça-feira, 5 de outubro de 2010

Na carteira e no pátio

Amarcord - (Io me raccordo). Inesquecível filme de Fellini, com tipos antológicos como professores. Quando penso nos que tive, faço sempre uma ligação com aqueles tipos fellinianos.
Eram outros tempos; ali o que contava era o ensino público. Escolas particulares eram menosprezadas. Bem, haviam ótimos colégios particulares, nem todas eram moleza, mas, algumas delas sim, o que originava este boato.
Então, se você queria ensino e disciplina rigorosos, nada como uma boa escola pública, de preferência com nome ilustre.
F requentei uma destas, no interior. Na verdade, frequentei mais de uma, pois mudávamos seguidamente de cidade, como uma tribo de ciganos. Mas, em Campinas, estudava na mais tradicional, pela qual passaram muitos personagens famosos, daqueles que dão nomes às ruas.
Nas suas veneráveis escadarias, fotos com professores e formandos notáveis pendiam das paredes, em grandes quadros escuros. Era um espetáculo assustador, subir sob os olhares de censura daqueles vultos severos.
Mas, tinha de enfrentar os professores reais, ainda mais rigorosos, ou, pelo menos, aparentavam isto. Tinham status e pose de luminares do ensino, considerando-se infalíveis e omniscientes. Io me raccordo:
- Sampaio, professor de português, implacável, incapaz de um sorriso. Cultor da nobiliarquia, só fazia chamada oral para alunos com nomes quatrocentões, pronunciando lentamente, como se saboreasse - "Augusto Frederico Novaes de Camargo Barros!" Se você fosse um Zé das Couves, tinha boa chance de nunca ser chamado, o que não deixava de ser uma vantagem.
- Galvão, de latim, idoso, magro e meio gagá, com seus ternos sempre negros e colarinhos puídos. Era casado com uma hedionda professora de português, com quem tive de passar um ano, Mercedes. Galvão gastava seu latim, sem que ninguém lhe desse atenção, fato de que não se dava conta.
Uma única vez escapou à sua rigidez, contando uma piada, para espanto dos alunos - "vocês sabem a diferença entre um paulista e um paulistano?" Ninguém sabia. -"ora, um paulistano é um paulista com um nó no rabo!" Quiá,quiá,quiá! A classe caiu na risada. E Galvão, furioso – "silêncio, seus imbecis! Silêncio!"
Agora, eu lamento o pobre Galvão, fosse hoje em dia, tentaria ser o melhor aluno da classe! Ainda assim, lembro o início de "De Bello Galico", de César: - Galia est omnia divisa in partes tres, primae Vercingetorix regnat...
- O violento Von Stuck, de educação física, que em seus maus dias fazia os alunos passarem por um "corredor polonês", levando pancadas da enorme "medicine ball" por todos os lados...
Nem tudo era essa dureza e mau humor. Havia Maria Helena, professora de geografia. Passeava sua beleza morena entre os alunos embevecidos, com os hormônios pipocando à flor da pele, um oásis naquele mundo de mestres carrancudos e enrugados.
Com a morte de meu pai, viemos para São Paulo. Aqui, no curso noturno no Roosevelt da R. Gabriel dos Santos, a pressão era bem menor. Ainda haviam alguns mestres durões e rabugentos, mas, a maioria, se solidarizava com os alunos, alguns já cansados da jornada diária de trabalho, tendo ainda de acordar cedo no dia seguinte.
Ainda assim, foi um ótimo curso. Sempre estudei melhor quando sentindo-me respeitado e tendo mais incentivo dos professores. Lembro-me agora, com espanto, da severidade e antipatia com que éramos tratados pelos antigos "luminares". Como é que podia? Hoje não dá para acreditar.
Fellini que o responda.

Por Luiz Saidenberg

8 comentários:

Miguel S. G. Chammas disse...

Saidenberg, só tive essa rigidez no curso primário e, mesmo assim, ela era aliviada nas aulas de Da. Lourdes, um anjo no meio de tantas caras assustadoras c omo as de Da. An gela, Da. Rina e Irmã Ivone.
Depois, bem depois, a coisa melhorou bastante.
Meu professores se tornaram parceiros e o suplicio terminou.
Na verdade, se meus mestres tivessem sido um pouco mais rígidos, eu poderia estar escrvendo em Latim e Italiano como você.

Soninha disse...

Olá, Luiz!

Ah, a escola! Como eu amava a escola!
Que texto delicioso...fez-nos lebrar de nossos tempos de estudante e, também, dos tempos de professora...
Ainda sinto o cheiro do giz, dos cadernos, do papel, dos lápis...de tudo...
Recordações de todos os mestres...todos que influenciaram em nossa formação, de uma maneira ou de outra.
Mesmo que não gostássemos dos mais severos, foram suas reprimendas, suas correções, suas observações que nos fizeram melhorar, cada vez mais...
Os "bonzinhos"...foram seus elogios, suas notas, seus estímulos, que nos fizeram seguir em frente, com mais coragem e vontade...
Acredito na força da educação. Sei que este é o caminho para a verdadeira mudança política e, consequentemente, a grande mudança humana.
Adorei, Luiz!
Valeu!
Obrigada.
Muita paz!

Arthur Miranda disse...

Puxa, Saidenberg alem de saborear suas belas histórias, ainda vou ficando mais culto e aprendendo um pouco mais de português graças ao seu privilegiado saber. Parabéns e obrigado por dividir com a gente seus conhecimentos

Zeca disse...

Caramba, Saidenberg!
Seus textos bem escritos fazem refletir sobre a diferença da escola do nosso tempo e a de hoje, onde a maioria dos alunos sai sem saber escrever nem ler.
Eu também estudei em escolas públicas, até mesmo por serem as melhores noutros tempos! As escolas particulares eram tidas como caça-níqueis, mais interessadas na grana dos nossos pais do que no aprendizado dos alunos. Como as coisas mudaram de lá pra cá, hein?
Tudo isso deixa bem claro que o que mais precisa ser mudado neste país é o sistema de ensino. Seguindo-o, o de saúde e, agora, como não poderia deixar de ser, o de segurança. Fé no futuro, fazendo a nossa parte, que é selecionar melhor nossos representantes no governo.
Mais um ótimo texto, este!
Grande abraço.

margarida disse...

Saidenberg, a escola antiga era assim mesmo,também estudei em escola publica com muitos "luminares do ensino". Ela foi boa para a época e hoje o modelo antigo, graças a Deus, não serve mais. Nossos alunos tem o direito de uma escola renovada, de qualidade e que atenda as suas necessidades.Um grande beijo.

Wilson Natale disse...

Muito bom Saidenberg!
Quanta coisa eu lembrei lendo este texto. Parabéns!
Natale

Luiz Saidenberg disse...

Muitíssimo obrigado. Assim vcs me deixam comovido. Mais ainda no caso do generoso Arthur. Tutu, não sou culto, sequer um intelectual. Apenas uma pessoa de olhos e mente aberta para as coisas desta vida, e como na escola citada, sempre aprendendo... Abraços.

Nelson de Assis disse...

Said.
Desculpe a demora. Eu estava no 'mato' do roçado, aqui no sertão baiano.
Quanto à sua crônica, só tenho a dizer que sinto uma grande saudade de minha professora, dona Elza Brito e da 1ª Escola Mista da Bela Vista, hoje Escola Estadual Paulo Machado de Carvalho, na rua Aguiar de Barros, 160.
As coisas mudam. É uma pena.

Abraços