terça-feira, 5 de outubro de 2010

Memórias Garrafais

Sou, orgulhosamente, brasileiro e paulistano, mas, minha descendência ajudou a forjar minha personalidade. Sou neto de sírios, por parte de pai; meu avo materno era italiano, melhor ainda, napolitano. A nacionalidade da minha avó materna, que não cheguei a conhecer, era russa e foi criada desde muito pequena na França.
Assim sendo, sou uma salada internacional, em se tratando de formação sanguínea. Vem daí a minha característica artística, deve ter vindo da parte italiana, e a minha queda comercial da parte síria. Todo esse preâmbulo eu fiz para iniciar o relato desta minha memória.
Os anos eram os primeiros da década de 50; eu morava, como muitos já sabem, na Rua Augusta 291. Já contei, também, que a casa era antiga, de pé direito muito alto e, agora, acrescento uma informação, ela tinha um porão com mais de um metro de altura, utilizado para guardar tranqueiras, coisas obsoletas, livros antigos, garrafas e litros vazios que eram bastante importantes naquela época. O porão ocupava a totalidade da área construída e, na sua parte fronteira, tinha pequenas janelas resguardadas por grades de ferro e ficavam a pouco mais de 30 centímetros do piso da calçada fronteiriça.
Nos primeiros compartimentos desse porão, eu, meu irmão e meu primo, havíamos delimitado o nosso reino de fantasia. Ali brincávamos, guardávamos nossos poucos brinquedos oficiais e os muitos brinquedos de faz-de-conta que construíamos.
Como um verdadeiro Rei, por ser o mais velho, eu não permitia aos demais componentes daquele reino a ultrapassagem para as demais dependências daquele escuro porão. Para lá, só um verdadeiro e heróico rei poderia fazer incursões e eu as fazia e, nessas minhas explorações, eu dava vazão não só ao meu espírito aventureiro, mas, também, ao meu espírito de comerciante.
No meio desse porão, ficava o depósito de garrafas e litros vazios.
A mim cabia, então, a importante tarefa de transportar essas preciosidades até as janelinhas frontais do porão e, depois, na primeira oportunidade, já na calçada, resgatá-las com cuidado, e oferecê-las no empório que ficava na esquina da Rua Caio Prado com a Rua Augusta, para o “seu José”, proprietário do estabelecimento, que as comprava de muito bom grado.
As verbas obtidas nessas transações eram aplicadas em doces, sorvetes e ingressos para as matinês do Cine Odeon, para assistir aos seriados de Dick Tracy, O Cobra, e os filmes de Esther Willians, Doris Day, Fred Astaire e muitas outras celebridades.
Essas aventuras financeiras duraram muito tempo. Eu até pensava que elas não teriam mais fim. Um dia, sem mais nem menos, minha fonte de rendas foi descoberta. As garrafas, já em fase terminal, assustaram minha mãe, minha tia e meu avô.
A falta das garrafas já transacionadas promoveu uma grande surra neste que lhes escreve e, como castigo, um mês sem cinema e guloseimas.
Hoje, ao me lembrar do caso tenho mais convicta ainda, a certeza de que não tive a mínima culpa em toda a estória... A culpa foi devido, totalmente, à minha descendência oriental.

Por Miguel Chammas

8 comentários:

Luiz Saidenberg disse...

Muito bom, caro Miguel. Bela aventura, em que realmente pesou seu gosto oriental pelo comércio, desde pequeno.
Vc não teve mesmo culpa, foi dessa Salada Russa que vc, como eu, tem no sangue ! Não sabia que sua avó era russa; os meus avôs paternos tb vieram da antiga União Soviética! Spaciebo pelo belo texto, Tovaritch.

margarida disse...

Miguel, que bom ter um lugar onde o reinado era só seu! Que aventura cheia de fartura, mesmo que por um tempo. Tudo tem tempo para começar e acabar e com o grande rei não foi diferente. Com certeza depois do castigo e como todo rei, você foi pensar no próximo passo para obter verbas.... a culpa fica mesmo com a salada internacional. Adorável texto e um grande beijo.

Soninha disse...

Olá, amor!

Desde pequenino já queria ser o chefão, né?!
Só que esqueceu que tinha um chefão para você também...(rss)
Um chefão esperando para lhe dar uma boa sova depois de sua "arte"....merecida, não é mesmo?!
Mas, suas memórias nos trouxeram a infância de todos nós...as brincadeiras, as estrepolias, lugares, segredos...
Além de nos fazer conhecer um pouquinho mais sobre os lugares e as histórias de Sampa.
Valeu!
Obrigada.
Muita paz! beijossssssss

Zeca disse...

Olá, velh'amigo do peito!

Com que então, desde begueno bocê já era chegado num dinieirinio, hein?
Eu não tenho sangue oriental (que eu saiba!), mas sei que venho de uma salada entre Portugal, Espanha, Itália e França. E também me virava para arranjar um dinheirinho pros doces e cineminha do final de semana. Mas o pior foi o meu irmão, que vendia as moedas da coleção do meu pai pro "seu" Luis, dono do armazém. E pior ainda foi que eu, como mais velho, entrei na surra também, pois devia ter vigiado (veja só!) meu irmão para não permitir que ele fizesse aquilo... coisas de pais... hehehe.
Gostei muito, como sempre, de mais esta história contada por você.
Abração.

Arthur Miranda disse...

Miguel bela historia, também na casa em que nasci na Freguesia do Ó (que se mantém intacta até hoje e tombada pelo patrimônio,)havia um porão imenso no qual eu nunca me arrisquei a entrar sozinho, pois eu era muito medroso. Mas unido a amigos brincava-mos muito de esconde esconde.Nele havia muitos cacarecos guardados e uma preciosa caixa de ferramentas de papai, que apesar de ter a profissão de encadernador gostava de mexer com marcenaria.
Eu então adorava utilizar aquelas ferramentas para fabricar os meus brinquedos. Mas acho que os nossos porões foram bem mais agradaveis que os Porões do Doi-codi durante a ditadura nos anos 70. parabéns.

Wilson Natale disse...

É, Miguel. A culpa é da mistura de raças... Mas a idéia de lucrar com o capital alheio é muito napuletana. Muito mesmo! Ahahahaaaaa!
Saudades dos porões! A criançada hoje, não sabe o que é e o que era para nós um belo porão. A "terra do nunca" escondida sob as velhas casas da Paulicéia.
Gostei!
Abração,
Natale.

Wilson Natale disse...

Miguel, estou de volta para falar de uma curiosidade importante para a Memória da Paulicéia.
Litros e garrafas eram importantes.Quando se comprava vinho ou cerveja - mesmo refrigerantes - era preciso levar o vazilhame vazio e trocá-lo pelo cheio. Senão, tínhamos que deixar um depósito. Aí pagávamos pela bebida e pelo vazilhame. O mesmo acontecia com os litros de leite. Lembra?
Abração, Natale.

Nelson de Assis disse...

'Habib'
Não ponha a culpa de suas traquinagens infantis na mistura das raças. A verdade é que, voce foi muito peralta quando menino.
Portanto, mereceu o castigo - rsrsrss.
Etnias à parte, quem de nós e, daquela geração dos 'casarões' não promoveu tais peraltices?

Abraços