1942; tenho dez anos, o Brasil, na iminência de entrar na guerra contra o eixo (Alemanha, Itália e Japão), que desafia quase todo o resto do mundo. Na escola primária, Grupo Escolar Romão Puiggari, são distribuídos folhetos quinzenais, anunciando a implantação da nova capital da república, no centro do mapa do Brasil, precisamente em Goiás, e que levará o nome de Brasília. Acho o nome bonito, a localização da nova capital num planalto que, na justificativa dos promotores, está bem alto, no centro do país, longe do mar, sem correr o risco de sofrer ataques marítimos.
Eu, na idade do primeiro decênio e na limitada preocupação com essas ocorrências, passo as aulas lendo meus gibis, nas segundas, quartas e sextas-feiras, e o Globo Juvenil, às terças, quintas e sábados, onde me inteiro, através dos meus heróis preferidos, Super-Homem, Batman, Capitão América, Namor, o Príncipe Submarino, Terry e os Piratas, Mandraque, Flash Gordon etc, das bravuras dos soldados aliados contra os “bandidos” do eixo. Minha posição, na intimidade do lar, é com os aliados, com as caricatas figuras dos três comandantes do eixo, sentindo um pouco de piedade com relação à do Mussolini, de quem meu pai gosta. Mensalmente, leio o Gibi Mensal e o Globo Juvenil Mensal (os dois com 100 páginas), O Gury, O Lobinho (os dois com 78 páginas).
Na escola, além dos folhetos da nova capital, tomo conhecimento dos horrores da guerra, através de folhetos ilustrados dos campos de concentração nazista. Em casa, nas conversas com meus irmãos e com meu pai, procuro esclarecimentos sobre o Brasil entrar na guerra, contra o eixo, principalmente, contra a Itália. Meu pai, fervoroso adepto do fascismo do Mussolini, diz que o Brasil não vai entrar em guerra contra um país que conta com grande número de imigrantes aqui vivendo. Mesmo tendo saído da Itália bem jovem, 11 anos, meu pai se mantém informado das obras do Duce, na Itália, a estação ferroviária de Roma, melhoria econômica do povo, derrubada do regime monarquista, etc. Culpa os americanos que estimulam o Brasil, por meio de ameaças, a sair de cima do muro, que é a pretensão do governo. Getúlio Vargas tenta resistir, com bom relacionamento com os três países beligerantes, quer seguir os exemplos de Espanha, Portugal e Suíça, que se mantêm neutros. Não consegue.
Aqui, em São Paulo, na esteira das graças envolventes do mundo cristão, principalmente da igreja católica, que se prepara para realizar um congresso eucarístico, faço, nesse ano, a 1ª comunhão e inscrevo-me para participar deste grande evento.
No mês de junho de 1942, venho de minha casa, na Rua Alfândega, no Brás, a pé, até o Vale do Anhangabaú, sob o Viaduto Santa Ifigênia, assisto à Santa Missa Campal do 4º Congresso Eucarístico Nacional de São Paulo, oficiada por Dom José Gaspar d'Afonseca e Silva, Arcebispo de São Paulo, nascido em 6 de janeiro de 1901 em Araxá, MG, e falecido em 27 de agosto de 1943, no Rio de Janeiro, num desastre de avião em que falece, também, Cásper Líbero, diretor d´A Gazeta.
Esse Congresso, precedido por campanhas radiofônicas, pela imprensa, tem seu ponto alto na venda de um escudo de folha de flandres, com os dizeres “4º Congresso Eucarístico Nacional de São Paulo junho de 1942”, com a finalidade de levantar fundos pra realização do evento e os que compram, pregam nas portas das residências, pra dar ao conhecimento de todos que a família colabora.
Uma festa para os olhos, o Vale todo tomado por uma multidão e a missa campal rezada, com a distribuição do sacramento por um exército de sacerdotes, todos com a preocupação de melhor atender aos fiéis, o que foi conseguido.
As festas da Páscoa, com todos os preparativos domésticos em que prevalecem os quitutes relativos à data, começam com a quaresma, os 40 dias decorrentes após o carnaval, a Quinta-Feira Santa com o Lavapés, Sexta-Feira da Paixão, com procissão do Cristo Morto, e a Vigília. Durante toda a quaresma, nas sextas-feiras, se faz a abstinência de carne, seja ela in natura, industrializada ou acompanhando qualquer receita, mesmo com pequena participação. Em casa, minha mãe chegava ao exagero de proibir, além da carne, o leite, o queijo e a manteiga, que eram subprodutos da vaca, ou seja, ela dava uma de SIF. Nestes dias, só peixe. No Sábado de Aleluia, com a malhação do Judas, ao meio dia, começava a Vigília Pascal, confissão, à meia-noite, Missa do Galo e, ao meio dia, comilança pra nenhum descrente botar defeito. Nem se cogita sobre ovos de Páscoa de chocolate; a única coisa parecida que minha mãe faz é uma massa com formato de boneca, se for pras meninas e, para os meninos, um cavalinho, todos levando um ovo cozido e envolvidos numa massa, feito empada, grudado na figura e que tem o nome de “papriug”, qualquer coisa parecida com “pato”.
Pra nós, descendentes de bareses, além das observações religiosas, temos um folguedo a mais, temos a “pascoela”. Em que consiste a pascoela: na segunda-feira, após o domingo de Páscoa e com as sobras do domingo gordo, nós e a vizinhança vamos à margem do Rio Tamanduateí (piscoso, na época), no parque D. Pedro II, fazer um belo piquenique, liquidando, de vez, tudo o que restou da Páscoa e mais alguma coisa preparada em última hora. É uma verdadeira festa de arromba, com músicas (sempre tinha alguém que tocava algum instrumento), comida à vontade, brincadeiras de roda, futebol (com bola de meia) e as “mamas” pondo seus assuntos em dia, rasgando “o manto diáfano da fantasia”, como diz o escritor português Eça de Queirós. E o que mais nos surpreende é que, em volta, todo o perfil da cidade, com a imponência do prédio Martinelli dominando o panorama e, pasmem, todos trabalhando. Na minha visão infantil, será que eles não sabem que hoje é “pascoela”, não se trabalha? Acho que não... Eles não sabem o que é viver!
Até hoje eu penso assim...
Por Modesto Laruccia