segunda-feira, 16 de maio de 2011

Sábado de Aleluia


1957 – Dias antes da Semana Santa, velhas ceroulas eram recheadas com as rebarbas de madeira e serragem, que o “signore” Gino – o Barês, trazia de lá da serraria. Uma velha fronha era transformada em uma cabeça recheada e pintada com um rosto horrendo e era costurada ao corpo “ceroulal”. Depois ele era vestido com roupas velhas, doadas pelos vizinhos. Prontinho... O Judas ficava à espera da sua punição.
Na nossa rua três eram os Judas: Para as crianças, os adolescentes e os adultos. Eles ficavam guardados na casa do Seu Gino.
Na quinta-feira santa, o jejum rigoroso para os adultos e frugal para as crianças. Ouvia-se o rádio e TV em volume baixo. Crianças podiam brincar sem muita algazarra e sem palavrões. Adultos evitavam a maledicência...
Ah! A Última Ceia. Judas vendera Jesus por 30 dinheiros... Ah! Judas! Você não sabe o que te espera!
Na sexta-feira santa, a Mooca virava Jerusalém. Consternada, vagava pelo Monte das Oliveiras, caminhava pela “Via Crucis” e, transtornada, deixou-se ficar no Calvário, testemunhando a agonia de Cristo... “Consumatum est”. Nada mais a fazer. Restou apenas levar o “Bom Rabi” até a sua última morada... “Miserere nobis”... “Agnus Dei quid tollit peccata mundi”. Segue a procissão. Em seu andor, surge a Addoloratta, provocando o choro e os lamentos dos calabreses. “Ben’detta vui, Regina Celeste, matre dee calabres”! (Bendita sois vós, Rainha Celestial, mãe dos calabreses).
Uma sexta-feira cansativa, tensa e dramática. A Mooca-Jerusalém, aos poucos vai apagando as suas luzes e adormece.
Sábado de Aleluia. Manhã cedinho, os três Judas estavam pendurados nos postes. As crianças vociferavam, diziam palavrões e cuspiam nos Judas, “mostrando a ele” os pedaços de pau, cabos de vassouras. Gritávamos “Attendi pezze ‘e merda! Chista la pagherai colla vita”! (Aguarde pedaço de merda! Pelo que fizeste, pagarás com a vida!).
Crianças, adolescentes e adultos transformaram a rua em uma praça de guerra. Crianças abaixavam os calções e urinavam nos postes, onde estavam os Judas. Os adolescentes partiam em busca de “cacca” de cachorro (e humana também) e voltavam atirando tudo contra os Judas. Os adultos jovens e velhos escarravam sobre “u venditor’ di Cristo” (o vendedor de Cristo) e nos incitavam até a loucura.
Os apitos das fábricas anunciavam o meio-dia. Todos nós corríamos para as nossas casas, para lavar os olhos e nos livrarmos da “cegueira do paganismo”. E abrirmos os olhos para a luz. Rápido, voltávamos à rua. Nesse meio-tempo, o Gino Baresi embebia os Judas em álcool.
Um fósforo dava início a malhação!
Corre corre, em direção aos Judas em chamas! Xingamentos, pauladas. Os Judas soltam-se da corda que os atavam ao poste e caem ao chão. Em chamas, eles são massacrados à pauladas.
No desvario da vingança, pauladas daqui, pauladas dali. Um cocuruto é atingido e o atingido revida. O foco do ataque muda e a coisa degenera. Um pé na bunda, um soco na cara e mordidas (coisa típica dos napolitanos), pois brigar é morder também. E os Judas incendiados, desmembrados viravam cinza, alheios à pancadaria.
Final da história, cabeças quebradas, pés torcidos, olhos roxos, queimaduras e choradeiras de dor. E mães discutindo feio, umas com as outras, por causa dos filhos.
Nessa guerra, ganhei uma mordida no braço, fiquei com duas unhas pretas, pois, pisaram-me a mão, e um joelho torcido. Perdi meu canino de leite que deixei encravado no braço de alguém.
Azares da guerra. Ano que vem, tem mais. Aí, eu me vingo!

Por Wilson Natale

13 comentários:

Soninha disse...

Olá, Wilson!

Velhas tradições...herança dos colonizadores espanhóis e portugueses e ainda trazemos certos costumes conosco... Sim,porque há lugares que ainda se cultiva tal prática de malhar o judas.
Na minha infância também era assim... A meninada fazia o tal boneco e os adultos também. Ao meio dia do sábado de aleluia, pauladas nele...depois o fogo. As meninas só olhavam... Eu mesma mal compreendia porque de tanta violência contra o pobre boneco.
Penso que temos de matar o "judas" que trazemos dentro de nós... As efemeridades que guardamos e que, muitas vezes, a sociedade desculpa, mas que sabemos que são falhas da personalidade humana,por conta de nossa imperfeição. Claro que já estamos mehores,mas, há muito o que melhorarmos ainda, não é mesmo?!
Boas recordações, Natale.
Valeu!
Obrigada.
Muita paz!

Luiz Saidenberg disse...

Coitado do Judas, servia de bode expiatório para todos os pecados de cada um e todas as frustações acumuladas. Os japoneses são mais sagazes; colocam nas empresas bonecos de pancada, para descarrego da agressividade. E fizeram uma experiência : colocarm junto o boneco do patrão e do operário. Adivinhem qual o mais espancado pelos empregados: o do operário, ou seja,no fundo é uma agrssão ao que a própria pessoa tem de mais negativo, dentro de si. Abraços.

Laruccia disse...

"Natale, tu sei um vero diretore di cenna", papagaio, (pra não falar outra coisa) o massacre teve até o latim em vez do vernáculo. Afimal, Judas acabou se arrependendo e se enforcou. A "carnificina", ou melhor, a "panoficina", termina com os próprios "soldados" se arrebentando todo. Foi uma desforra Calábria X Napoles, patrocinada pelo Gino Barês, então o melhor é terminar com as palavras de Jesus: "PAX DOMINE SIT SEMPER VOBISCUM" (Que a paz esteja sempre com vocês). Soberba descrição a que nós, "barezinhos" estavamos habituados. Parabéns, Wilson.
Laru (solo per te)

Wilson Natale disse...

São lembranças de um adulto que foi criança.
E a criança virou um adulto que começou a repensar e redimir esse Judas tão estigmatizado pelo ódio das gerações de seguidores daquele que nos dizia: "Amai-vos uns aos outro"!
Nos Evangelhos eu aprendi que "Tudo aconteceu para que se cumprissem as profecias".
Judas foi um intrumento de Deus. E não foi menos amado por Jesus. E Jesus preocupava-se com Judas, pressintia o ato do suicídio dele.
E a cena do beijo, fica subentendido a aprovação de Jesus. E, rápido Judas faz o que tinha de fazer.
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

Saidenberg - Os tempos mudaram. Antes o movente era a profunda religiosidade; depois virou ato político - malhava-se os nobres vereadores, deputados estaduais e federais, senadores, prefeitos, c governadores e os presidentes.Como acontecia até pouco tempo, no Cambucí.
Sobre a malhação do Judas, meu avó se divertia e nos divertia, contando que,os padres estigmatizaram o Judas e os Judeus por todos esses séculos. E que, no entanto, quando se fala do massacre dos cristãos na Roma Antiga, fazem questão de afirmar que foram os ROMANOS que os mataram - fazendo de conta que não foram os italianos. Sim, porque todos os italianos foram romanos um dia...
Cada um puxa a brasa para a sua sardinha, não é mesmo?!
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

Laruccia: Eram coisas da italianada - "Cosa nostra" - que, mesmo distante da pátria,seguia as tradições e os rituais antigos.
E mesmo com a pancadaria generalizada pelos ataques e revides, sempre havia PAX - Pace - Paz. A raiva grassava no momento, mas sem ódio ou rancores posteriores. Éramos uma grande família.
E o "signor Gino baresi" foi a pessoa mais humana entre as que conheci. Era dele que provinha os bilboquês, os io-iôs e os piões da criançada da rua.
Era dele que provinha os baús daqueles que desistindo, retornavam à Itália.
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

NOTA: O primeiro comentário foi feito em resposta ao comentário da Soninha.
Natale

Miguel S. G. Chammas disse...

Natale, mesmo com atraso gostaria xe dizer que participei muitas vezes da "malhação do Judas" na Rua Paim, na Rua Frei Caneca e na Augusta nos tempos de infanto-juvenil.
Depois, com o adveno da TV assistia as malhações mais pesadas, inclusive a do Cambuci que era feita ao 1/2 dia do sábado de Aeluia na Rua Espirita.
Valeu a recordação!

Luiz Saidenberg disse...

O inferno são os outros, dizia Sartre. No OUTRO projetamos toda nossa raiva, inveja, frustração, sadismo, o nosso lado negro da força. E este tem de ser exorcizado; como carregar tal carga dentro de si? Por sorte, existem os bodes expiatórios, como o próprio Cristo foi um dia. E daí os linchamentos, os massacres raciais, a limpeza étnica, a fogueira para os herejes. Na falta destes, um boneco de pano mesmo já dá e basta. E no fim acaba acontecendo o mesmo que sucedeu ao caro Wilson; massacrado o Judas, voltamo-nos contra nosso vizinho de ira, e acaba em guerra, como no Cambuci. Vade retro!

suely aparecida schraner disse...

Eu gostei do seu texto Natale! Aprendi um pouco mais e também apreciei os comentários acima. Valeu! Abraços, Suely

Wilson Natale disse...

MIGUEL: Acho que todos da nossa geração participamos da malhação. Seja ativamente ou sentado nos muros, ou então às janelas. Foi uma experiêcia e tanto!
É uma tradição que existiu e que ora desaparece. E é muito bom que isso aconteça. Está na hora de dixar o Judas em paz, que ele sejao Iscariotes ou a idealização dos políticos.
Vale como informação histórica paulista e paulistana.

Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

SAIDENBERG: A malhação do Cambuci sempre foi um caso aparte. Mas, nos últimos tempos tornou-se um horror. muita violência.
E Sarte tem razão, por inveja, amor, competição,fazemos da nossa vida um inferno e achamos que o Inferno e o outro.
E o Alberto Morávia, em seu romance "A ROMANA", retrata muito bem isso: O homem da choupana, sonha com a casinha de madeira; e o da casinha de madeira sonha com a casa de pedra; o da casa de pedra sonha com o solar, o homem do solar sonha com o Catelo... E complementa: "É incrível como o ser humano insiste em colocar o próprio inferno no inferno dos outros.
E a idéia do ser humano é subir a íngreme ladeira civilizatória e, as vezes escorrega... E escorregando, vai agarrando os que lhe vem atrás e os leva junto...
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

SUELY: Sou eu quem agradece.
Entre os textos, vou lembrando a vida na Mooca nos tempos de festas e feriados. Estou reduzindo algmas memórias sore as "minhas" Festas Juninas.
Abração,
Natale