- Ih, minha filha. Ora se eu me lembro. No dia que vim para cá, era todo mundo vomitando. Aquilo chacoalhava que só vendo.
- Minha vinda foi triste. Só um mês de viuvez. A mais nova recém-nascida. Fui para casa de parentes. Tudo muito custoso e sofrido.
- Eu vim de Maria Fumaça. Com os meninos mais novos. Os grandes, já estavam aqui, trabalhando. Foi preciso dois taxis. Saímos de uma casa de doze cômodos para uma de quatro. Quantos filhos? Vinte e dois.
- E eu? Vim na carroceria do caminhão. Treze dias de viagem. Estrada? Tinha não. Só terra e ribanceira. Vi caminhão que vinha atrás, despencar logo depois que passamos na pinguela.
- Já eu, mudei para uma casa em construção. Nem porta nem janela. Meu marido ia fazendo aos poucos. Filhos? Só uma mais a outra, na barriga que eu peguei, logo ao chegar.
- Chegamos direto na Estação da Luz. Fomos caminhando, da Luz até a Praça da Árvore. Sem costume na cidade, não aguentamos não. Só mais um ano, depois voltamos. Aqui estamos e aqui ficamos.
- Eu vim encaixotado. O agente foi lá em Minas. Falei prá mamãe: “vou trabalhar em São Paulo”. Onde? “Na Light”. Fiquei morando no alojamento. Documento tinha não. Nem registro de nascimento. Nem Light. Só na construção e no galpão.
- Eu, lá em Pernambuco. O homem, mais de 11 meses sem me mandar uma linha. Escrevia pros outros, ora. Aí, me danei. Vim para São Paulo. A menina só urinava que fralda descartável não tinha não. Vergonha daquele fedor no ônibus.
- Vim pra ser freira. Sozinha com 10 anos de idade. Mala e bilhete mais o dinheiro pro táxi. Passagem foi grátis no avião da FAB. Destino: Avenida Nazaré, Convento Sagrada Família. De onde? Cuiabá, Mato Grosso.
- Chegamos apenas com a roupa do corpo. O pai foi trabalhar com a picareta. Tirando paralelepípedos para dar lugar pro asfalto. Onde ficamos? Num cômodo de madeira. Tudo junto e misturado. Quantos? Só dez.
No Dia Em Que Eu Vim-me Embora (Caetano Veloso)
No dia em que eu vim-me embora /Minha mãe chorava em ai /
Minha irmã chorava em ui /E eu nem olhava pra trás /
No dia que eu vim-me embora /Não teve nada de mais
Mala de couro forrada com pano forte brim cáqui/
Minha vó já quase morta/Minha mãe até a porta
Minha irmã até a rua /E até o porto meu pai
O qual não disse palavra durante todo o caminho
E quando eu me vi sozinho /Vi que não entendia nada
Nem de pro que eu ia indo /Nem dos sonhos que eu sonhava
Senti apenas que a mala de couro que eu carregava
Embora estando forrada /Fedia, cheirava mal
Afora isto ia indo, atravessando, seguindo
Nem chorando nem sorrindo /Sozinho pra Capital
Nem chorando nem sorrindo /Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital ...
Por Suely Schraner
- Minha vinda foi triste. Só um mês de viuvez. A mais nova recém-nascida. Fui para casa de parentes. Tudo muito custoso e sofrido.
- Eu vim de Maria Fumaça. Com os meninos mais novos. Os grandes, já estavam aqui, trabalhando. Foi preciso dois taxis. Saímos de uma casa de doze cômodos para uma de quatro. Quantos filhos? Vinte e dois.
- E eu? Vim na carroceria do caminhão. Treze dias de viagem. Estrada? Tinha não. Só terra e ribanceira. Vi caminhão que vinha atrás, despencar logo depois que passamos na pinguela.
- Já eu, mudei para uma casa em construção. Nem porta nem janela. Meu marido ia fazendo aos poucos. Filhos? Só uma mais a outra, na barriga que eu peguei, logo ao chegar.
- Chegamos direto na Estação da Luz. Fomos caminhando, da Luz até a Praça da Árvore. Sem costume na cidade, não aguentamos não. Só mais um ano, depois voltamos. Aqui estamos e aqui ficamos.
- Eu vim encaixotado. O agente foi lá em Minas. Falei prá mamãe: “vou trabalhar em São Paulo”. Onde? “Na Light”. Fiquei morando no alojamento. Documento tinha não. Nem registro de nascimento. Nem Light. Só na construção e no galpão.
- Eu, lá em Pernambuco. O homem, mais de 11 meses sem me mandar uma linha. Escrevia pros outros, ora. Aí, me danei. Vim para São Paulo. A menina só urinava que fralda descartável não tinha não. Vergonha daquele fedor no ônibus.
- Vim pra ser freira. Sozinha com 10 anos de idade. Mala e bilhete mais o dinheiro pro táxi. Passagem foi grátis no avião da FAB. Destino: Avenida Nazaré, Convento Sagrada Família. De onde? Cuiabá, Mato Grosso.
- Chegamos apenas com a roupa do corpo. O pai foi trabalhar com a picareta. Tirando paralelepípedos para dar lugar pro asfalto. Onde ficamos? Num cômodo de madeira. Tudo junto e misturado. Quantos? Só dez.
No Dia Em Que Eu Vim-me Embora (Caetano Veloso)
No dia em que eu vim-me embora /Minha mãe chorava em ai /
Minha irmã chorava em ui /E eu nem olhava pra trás /
No dia que eu vim-me embora /Não teve nada de mais
Mala de couro forrada com pano forte brim cáqui/
Minha vó já quase morta/Minha mãe até a porta
Minha irmã até a rua /E até o porto meu pai
O qual não disse palavra durante todo o caminho
E quando eu me vi sozinho /Vi que não entendia nada
Nem de pro que eu ia indo /Nem dos sonhos que eu sonhava
Senti apenas que a mala de couro que eu carregava
Embora estando forrada /Fedia, cheirava mal
Afora isto ia indo, atravessando, seguindo
Nem chorando nem sorrindo /Sozinho pra Capital
Nem chorando nem sorrindo /Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital ...
Por Suely Schraner
15 comentários:
Muito bonito, Suely. De quantos sofrimentos, sacrifícios, traumas, espantos se faz uma grande cidade?
Quase todo mundo que veio para cá foi, diria o sertanejo, "por percisão". E quantos virão ainda, pois São Paulo é infindável, desmesurada, inconcebível, e continua a engolir seus filhos como o Moloch mecânico de
"Metrópolis", de Fritz Lang.
Abraços.
Suely:
Texto lindo! Em cada depoimento feito no linguajar simples, os dramas e tragédias dos que migram, emigram para essa cidade.
Nos depoimentos, nota-se a força, a tenacidade dessas pessoas vencendo medos.
Foram - e são tantos como eles, que fizeram a grandeza desta cidade à custa da sua saudade.
Saudade sim!
Um amigo meu, que veio para cá, ao tempo do ataque ao Líbano pelos israelenses, disse-me uma vez:
"Ouvindo você falar do seu amor por esta cidade que jamais poderá ser substituída por outra, posso me abrir com você. Aqui, no Brasil, nesta cidade tenho tudo. Tenho posição, dinheiro, saúde. Nada me falta. Estaria inteiro se não fosse esse buraco no meu coração"! Da saudade ninguém escapa!
Por isso admiro essas pessoas que deixam os seus ninhos e vão para outros lugares refazer suas vidas.
Admiro porque sei que todos eles têm esse buraco no coração.
Não é fácil deixar parentes, os amigos, a paisagem tão conhecida e se jogar nesse mundão de Deus...
Abração,
Natale
Nessa coleta de retalhos, a autora nos mostra esboços de brasileiros que se aventuraram na procura de melhores condições de vida. Notem que a Suely teve o cuidado de expor situações de diferentes dificuldades pessoais, familiares e imposições e exposições correlatas a pessoas que queriam e não queriam sair de sua terra natal. Porém, todas elas satisfeitas com o sacrifício, São Paulo as recebeu de braços abertos. Seu testo, Suely, tem a textura de terra seca com seus losângulos formados e, ao mesmo tempo, a doçura de uma paixão inserida em todo ser humano que precisa passar por esta experiência. Parabéns, Suely.
Laruccia
Olá, Suely!
São Paulo também registraa dor de todos os que a ajudaram a crescer.
Tão bela e, às vezes, cruel, Sampa tem muitas histórias, realmente.
Mas, não conseguimos deixar de amá-la.
Que magia é esta, desta cidade varonil, que consegue receber a todos os que aqui vem, cheios de esperança e de sonhos, alguns esperando que milagres aconteçam, se deparam com a dura realidade do desemprego, da falta de moradia, muitas até de pão.
Mas, muito bacana seu texto. Adorei!
Obrigada.
Muita paz!
Nesse seu lindo texto Suely, eu vi uma enorme caatinga de juremas já meio seca, tendo na beira da estrada chique-chique e mandacaru por onde sobrevoa um carcará destemido dando acenos de despedidas ao saudoso retirante, que deixa para trás os açudes, e os seus velhos costumes, como também seus pertences e parte para o futuro mais triste do que contente em busca de nova vida. Beleza de texto, é a historia da maioria do nordestino que chega a São Paulo, parabéns. Tudo isso acompanhado ao Som de uma sanfona do mestre Luiz Gonzaga o rei de todo o Sertão.
Suely, texto poético e bruto, melodioso e barulhento, tipicamnte brasileiro.
Parafraseando o poéta que disse : O nordestino é, antes de tudo um forte, eu diria:O brasileiro´é, antes de tudo um forte.....
Sueli,
quero parabenizá-la pelo belíssimo texto em forma de retalhos que vai tecendo, pouco a pouco, esta colcha infindável que é nossa cidade. São tantas as experiências, as esperanças, os sofrimentos e as alegrias, que só poderia dar nisso mesmo: uma cidade múltipla, com todos os sotaques e todos os idiomas, cuidadosamente bordada com todas as cores da paleta do Criador, o artista maior.
Abraço.
Luiz Saidenberg
A cidade nos abraça e engole. Uma fábrica de loucos, dizia meu pai.
Abraços e muito obrigada pela companhia. Suely
Wilsonnatale
Grata por compartilhar a história do seu amigo e pelo carinho. Carinho que se expande em textos maravilhosos neste espaço. Abraço. Suely
Wilsonnatale
Grata por compartilhar a história do seu amigo e pelo carinho. Carinho que se expande em textos maravilhosos neste espaço. Abraço. Suely
Laruccia
Você captou bem. São pessoas que independente das dificuldades, adotaram São Paulo e acreditam que acima de tudo é muito melhor ter vindo parar aqui do que em qualquer outro lugar. Abs e obrigada! Suely
Soninha,
Você está certa. É uma cidade mágica com pessoas incríveis. Uma vez perguntei a um amigo estrangeiro do que ele mais gostava em São Paulo e ele me respondeu: das pessoas. Eu é que agradeço a você pelo carinho e dedicação a este espaço valorizando minhas “mal traçadas linhas”. Beijo, Suely
Arthur Miranda,
Seu comentário é um poema e me encheu de ternura. Muito obrigada! Abraço, Suely
Miguel S. G. Chammas,
O brasileiro é mesmo um forte. Forte são seus textos e temas neste espaço. Sou sua fã. Obrigada, Suely
Zeca,
Nesta multiplicidade a oportunidade de comunicar e estar, ser e viver, cria este mosaico de fatos e cores, sensações , sotaques e criatividade. Grata pelo carinho, abraços, Suely
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