quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Arrogância

Em 1954, ano do IV Centenário, dentre todas as festividades, houve um desfile de várias escolas de São Paulo, de outros estados e algumas convidadas do exterior. Todas mostrando suas fanfarras estridentes, coloridas e bem ensaiadas. Esse desfile passou pela Avenida Mercúrio, em frente ao Palácio das Indústrias e eu assisti com forte emoção, pois adorava (e ainda gosto muito) do som dos tímpanos, caixas e cornetas e o malabarismo da baliza à frente, com a batuta. Mas, bastante influenciado pelo cinema, leituras, músicas e tudo que se relacionava aos americanos, eu era um sonhador inveterado, vidrado em poder um dia ir pra lá. Como tinha (e tenho) parentes norte-americanos, esperava concretizar meu sonho. Aí, minha emoção chegou ao auge: no desfile, iria passar a fanfarra do Miami Jackson High School, famosa escola da Flórida, nos USA. Menino, que show aquelas meninas deram; uma verdadeira aula de como se faz esse tipo de desfile. Duas ou três balizas, o conjunto de caixas ritmando, os pistões, flautas e flautins, as matracas, tubas e chocalhos, tudo num conjunto formidável e um sincronismo exuberante. Lembro que as músicas eram populares, no ritmo ligeiro e estonteante de Nova Orleans.
Falando em bandas e fanfarras, lembro da que abrilhantava as procissões da igreja de São Vito, que percorriam as ruas da redondeza, Álvares de Azevedo (hoje Polignano a Mare), Assumpção, do Lucas, Fernandes Silva, Benjamim de Oliveira, da Alfândega, Cantareira etc. Nas da Semana Santa, quando o andor era de Cristo morto, eu sabia até o repertório: Marcha Fúnebre de Beethoven e a de Chopim. Nas de São Vito e Santo Expedito, em junho, o repertório era O Cisne Branco e as já c
onsagradas marchas de John Philip Souza. Na dos Santos Cosmo e Damião, em setembro, o repertório era variado, até Aquarela do Brasil saía.
Um pequeno detalhe acontecia na procissão do São Vito e Santo Expedito, era a disputa pra carregar o andor desses santos; desde os primórdios do século passado, já se usava o critério de uma espécie de leilão, os quatro que queriam carregar o andor de São Vito, pagavam um determinado valor que o leilão alcançava. Nos anos 40, apesar da guerra e a proibição de se falar em público, alemão, japonês e italiano (quanta bobagem, meu Deus) a procissão e os leilões seguiam como se nada houvesse. Nesta época, garoto, quando não estava atrás da banda e bem perto do tambor (por isso que até hoje não canso de ouvir o Bolero de Ravel), eu era um dos que carregavam um dos quatro lampiões que guarneciam o andor e
ouvia todos os leilões que se fazia nas periódicas paradas. O mestre-sala começava, sempre em polignanês, dialeto que é uma mistura de latim, árabe, grego e uma pitada de sarraceno, resultando daí um idioma que nem o próprio italiano entende. Quem entendia? Só nós, da terra ou descendentes. Traduzido, dava nisso: “Pili devot ca stane sote, quane mi a dê?” (Para os devotos que estão em baixo, quanto vocês me dão?” ). Os interessados se reuniam, sempre em quatro e os quartetos davam seus lances num valor, sempre acima do valor pago pelos que estavam carregando até então (uma nota preta, meu pai nunca quis entrar nessa), e o que vencia pegava o andor até o próximo quarteirão. Por que era no dialeto? Pra que ninguém que não fosse barês viesse a carregar o andor. Exclusivo da colônia, não era pra “frastiere” (forasteiro). Quem quisesse carregar um andor que fosse para o santo Expedito, que naquela época não gozava de tanto prestígio, como hoje.
Agora, impagável era ver a pose dos que venciam o leilão, comerciantes bem sucedidos na zona cerealista da Rua Santa Rosa, peixeiros do mercado central e outros. Mantinham o nariz empinado, pose típica de “capo mafioso”, mostrando a todos seus conterrâneos que eles conseguiram “fazer a América”.
Depois de várias queixas, o leilão passou a ser feito em português. Hoje, carrega quem quiser e sem a obrigação de pagar coisa alguma; e a imagem do santo é a mesma de mais de 100 anos e com apenas meio metro de altura. Relíquia de Polignano a Mare, província de Bari, sul da Itália.

Por Modesto Laruccia

8 comentários:

Miguel S. G. Chammas disse...

Modé, eu assisti a apresentação da Miami Jackson School Band, nas festas do IV Centenário, foi, realmente, um grnde show.
Elas ocuparam toda a largura da Avenida 9 de Julho enquanto eu. ao lado babava abobado.
Que maravilha!

Wilson Natale disse...

Larù caro mio, em 54, dois dias depois do dia 25 eu fiz seis anos e tenho uma lebrança geral dos desfiles no Anhangabau.Das festas na Sé e no Parque D. Pedro.
Mas acabei por lembrar dos Concursos de Fanfarra dos anos 60, que enchiam a Av.Paes de Barros, aqui na Mooca.
E o teu texto me trouxe caras lembranças. Como o leilão de San Vito,em San Gennaro era feito o sorteio dos carregadores entre as personalidades napolitanas mais evidentes. E a missa do Santo era em Latim, toda cantada. Mas quando "u prete" (o padre) se dirigia aos fiéis, o Letim ia prá cucuias e ele falava no dialetto Napuletano.
Fui mais longe, quando você falou sobre essa fé e reverência a San Vito. Homens que não se importavam em despender grandes quantias.
Eu me emocionei ao relembrar com ternura, dos calabreses - homens duros, vezes briguentos, vezes beerrões desbocados, que ao ver passar a imagem da Addoloratta (N.S.das Dores) nas procissões, retiravam seus chapéus ou bonés e humildes se ajoelhava na sarjeta, sem se importar em sujar a roupa.
Outros tempos, outra sensibilidade...
Ti ringrazio per questo bel testo da fare uno ricordare tante belle cose.
Natale

Jose Carlos Navarro disse...

Lembro-me das procissões, menos da igreja de São Vito, e mais as da igreja do Bras. Lembro-me da Verônica ( que eu tinha medo) e das velas acesas serpenteando pela Rangel Pestana. Não sabia dos leilões nem das regras impostas, mas sabia da religiosidade de cada um e a devoção com que todos cumpriam seu papel.
Grazie por me fazer relembrar algumas noites do Bras. Quem sabe este ano nós não daremos uma passadinha por lá. Sem leilão é claro, pois afinal nao sou Bares.

suely schraner disse...

Procissões,quermesses, prendas. Belas reminiscências....

Luiz Saidenberg disse...

Questi mafiosi avvevano fatto la America...caro Modesto, pouco sei de polignanês, mas algo é certo: a Puglia ha vini veramente deliciosi, comme Primitivo di Puglia e Sud- Malvasia Nera!
Bons e baratos ! Belo relato. Auguri.

Arthur Miranda disse...

Mia cara, come io non capisco niente italiano, mi piace, di te di tradurre testi in portoghese che si scrive in italiano, perché purtroppo la mia discesa è il portoghese e ho gioiello brasiliano, perché mia madre era minerario cablocla. Grazie. Modesto Ho amato la storia di bande di ottoni e la processione di San Vittore. ma anche in Quartop Cantenário assistito alla sfilata delle fanfare bella americana. congratulazioni.
Como vocês podem notar me refiro aos comentários, que eu os leio todos.

Soninha disse...

Olá,Modesto!

Mina família toda era muito religiosa...na maioria,católicos.
Participávamos, mesmo crianças,das procissões em datas especiais,na paróquia de nosso bairro,a igreja de Santo Emídio, no largo da Vila Prudente.
Na escola, fui baliza da fanfarrado ginásio...foi muuito legal!
Boas lembranças, Modesto.
Valeu!
Obrigada.
Muita paz!

MLopomo disse...

Essa crônica me fez lembrar das procissões da igreja da Vila Olímpia tinha uma disputa para ajudar a carregar o andor