quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O Itaim e seus personagens


O Itaim tinha pessoas de vários tipos. Gente de certo nível intelectual, como seu Alfredo Cunha que era professor e sua esposa, dona Palmira, também professora, ambos do grupo escolar Aristides de Castro. Seus filhos também se encaminhavam para um nível de cultura bom.
Geraldo Cunha era radialista trabalhava na rádio São Paulo. Era Rádio Ator. O outro estava prestes a se ordenar padre, mas abandonou a batina para ser um advogado e a Rosinha que seria uma professora. No mais, o bairro era composto de gente simples, todos trabalhadores e cada um com seu ofício.
Naquele tempo quem tinha ofício tinha tudo. Estava apto para casar. Quando era torneiro mecânico, marceneiro, então, era aprovação na hora. Mas, tinha que ter uma profissão. Era a primeira coisa que o pai perguntava. Depois, perguntava se tinha vícios.
Tinha gente folclórica também. O poeta, um senhor negro que vivia fazendo poesias e as expunha na rua quando se encontrava com alguém, de preferência mulher, ou mesmo quando era um casal. Tinha artista, o nosso grande Mazzaropi, que morava na Rua Paes de Araújo. O Anastácio, de um metro e vinte de altura que não tinha os dois braços. Nos ombros dois tocos de, quando muito, dez centímetros com alguns dedos. Ele fazia jogo de bicho. Escrevia maravilhosamente com os pés. Era de uma grande admiração por parte das pessoas. Viajava de ônibus normalmente subia no coletivo sozinho, mas não rejeitava a ajuda de ninguém que se propunha a ajudá-lo.
Certa ocasião, ele desceu no vale do Anhangabaú, do ônibus 52 Itaim, ali próximo ao cine Dom Pedro; ia andando, sossegadamente, quando várias pessoas vieram dar-lhe esmolas. Ele não aceitou e disse: eu não peço esmolas, eu trabalho no Chalé de jogos, no bairro do Itaim. O jogo ainda era permitido.
Por outro lado, tinha pessoas depressivas e que estavam sempre causando alguma preocupação à parentes ou amigos. Era o caso de Mario Brisa, membro de uma família de classe média. Certa ocasião, ficou amuado e não falava com ninguém, por mais que familiares ou amigos quisessem saber o que estava acontecendo. Era difícil arrancar uma só palavra dele. Mario foi se definhando fisicamente. Um homem que se vestia bem, já estava com roupas rotas. Andava sujo e muitas moças se condoíam, pois se lembravam dele com uma fisionomia bonita e agora, barbudo e sujo, era outra pessoa - já um indigente que estava a caminho de morrer na sarjeta.
Um dia, ele roubou uma calça do seu cunhado, o Dondoca, filho de dona Izolina. Quando ele achou falta da roupa e flagrou o cunhado com ela, tirou a roupa na marra, no córrego do sapateiro, debaixo da pinguela da Rua João Cachoeira. Até a polícia foi chamada para resolver o caso.
Um dia, Mario sucumbiu na calçada da kopenhagen, Rua Joaquim Floriano. Estava bichado. Suas feridas mostravam vermes. Chamado a ambulância do Samdú, os enfermeiros se recusaram a pegá-lo, tal era o estado lastimável que estava Mario Brisa. Foi quando passava pelo local Vicente Batateiro e ficou sabendo do que se passava. Muita gente já estava no local, como curiosos. Vicente Batateiro fez um autêntico discurso: “Eis aqui um brasileiro que até na sua morte é rejeitado pela sociedade hipócrita. Por acaso alguém de coragem me ajuda a colocá-lo na ambulância?” Um motorista de táxi e duas outras pessoas colocaram Mario Brisa na ambulância do Samdú.
O Itaim tinha também personagens valentões. Os mais conhecidos eram Lito, Colo e Armandão, assíduos frequentadores do bar Central, na Rua Joaquim Floriano, esquina com a Rua Arnaldo. Colo e Lito eram violentos. Colo sempre procurava encrenca. Era considerado o rei da pernada. Era difícil pegá-lo. Quando colocava as duas mãos no chão era certeza que um dos pés ia à cara do outro. E olhe que pegou sempre pedreira pela frente. As chamadas brigas de cachorro grande.
Uma vez, menosprezou um nordestino baixinho. Na discussão o chamou de baiano otário e outras coisas. Tomou uma peixeirada na barriga. Mesmo ferido correu mais de cem metros pela Avenida Imperial (Horácio Lafer). Não resistindo ao ferimento, caiu. Socorrido, ficou vários dias entre a vida e a morte. Mas, as línguas diziam que ele se salvaria. Bicho ruim não morre, diziam várias pessoas. E, realmente não morreu.
Já Lito tinha outra característica, era mulherengo. Achava que as mulheres tinham que ser dele quando cismava, mesmo sendo casado. Um dia, estava na calçada da Kopenhagen e viu uma mulata fora de série passando por ele, dirigiu-lhe gracejos. A mulher nem deu bola. Isso se repetiu por várias vezes. Lito não se conformava. Sempre conseguia seu intento mesmo que tivesse que ameaçar a mulher. Com aquela mulata não. Ela passava garbosa e ainda se mostrava esnobe. Um sábado à noite, ela saía do cine Star com seu noivo, um cobrador de ônibus da CMTC, e tinha uma perna mais curta, usava uma bota pesada e mancava. Lito estava no bar ao lado. Ela, sem cerimônia parou e na cara dura disse: Porque você não mexe comigo agora, seu trouxa?
“Você é muito gostosa e metida a besta, sabia?”
Foi quando entrou em ação o noivo.
- Olha rapaz eu quero que pare de mexer com minha noiva.
- Sua noiva? Que mau gosto, hein gostosa? Justo com um cocho foi se arrumar.
- Olha aqui, seu trouxa, vou te mostrar quem é cocho.
- Quem, você? Pára com isso, palhaço!
Quando Lito viu, tomou um toco por baixo e foi ao chão. Ninguém ali conseguiu acreditar que aquele valentão tinha rodado que nem um bêbado. Lito levantou e foi com tudo pra cima dele. Outro toco e outro tombo. Era insistir e cair. Para finalizar, o baixinho jogou as mãos ao chão e com o pé que tinha aquela bota acertou o queixo do Lito, que já sangrava. Aí, entrou o Chicanu e segurou Lito enquanto o casal foi embora. Lito, enfurecido, passou a agredir Chicanú. Este franzino não podia encará-lo e, como ninguém se atrevia em tirar o Lito, vários ponta pés foram dados no fígado e abdômen. Chicanuzinho, como era chamado pelos amigos, morreu ali mesmo de hemorragia interna. Lito foi preso julgado e condenado a bons anos de cadeia.

Por Mário Lopomo

9 comentários:

joaquim ignacio disse...

Mario, todo bairro tem características particulares. Ora é o clima, ora são os nomes das ruas, ora é algum monumento, mas normalmente são os moradores que determinam como o bairro é ou deva ser. O Itaim, por exemplo, é um exemplo típico de bairro com características próprias devido a alguns moradores icônicos. Vc mesmo é uma dessas pessoas: - Itaim? Sei...sei... é o bairro do Lopomo, sabe o Mario Lopomo, aquele?...

Abraço do Ignacio

Miguel S. G. Chammas disse...

Pois é...esse era o Itaim!

Modesto disse...

Trágico final de um pastiche que, aparentemente se mostrava corriqueiro mas, depois mostrou o que leva certas atitudes de pseudo valentões que, na realidade não são mais do que covardões. Mário, vc expôs "flash" de um bairro com personagens normais dentro de contexto de famílias de classe média. Bem redigido, roteiro com atrações e emoções seguras. Parabéns, Lopomo.
Modesto

Zeca disse...

Lopomo!

Então, assim era o Itaim! Quem diria? Hoje, um centro comercial, completamente diferente desse mostrado por você, nesta bela crônica que nos mostra mais um dos muitos bairros dessa cidade que amamos.
E com esta bela crônica você me trouxe a lembrança de um tio, já falecido, que trabalhou no Samdu! Não tinha nada a ver com o Itaim, mas através dos personagens aqui retratados, acabei fazendo a ligação e, como uma coisa leva à outra... bem... estou começando a transformar este comentário num outro texto!

Parabéns pela crônica!

Abraço.

Wilson Natale disse...

Lopomo: Coisa boa reviver vidas e personagens que transitaram pelo nosso bairro.
A cidade e o bairro quase sempre é visto como em uma velha fotografia. Velhas ruas de terra, outras estreitas, que se transformaram em grandes vias o avenidas; casario simples dando lugar a casas melhores que, por sua vez dão lugar aos edifícios. E a paisagem humana. Homens e mulheres plasmados na película, sem nomes, sem identidades, apenas gente, passante, moradores, trabalhadores...
Neste seu texto, com habilidade você deu vida, cor e movimento ao Itaim. Fez mais, deu vida, voz e movimento às essoas que moravam no bairro e deu-nos a história de cada um.
Gostei à beça! Parabéns!
Abração,
Natale

Soninha disse...

Olá, Mário!

Cada bairro com seus personagem marcantes, né!
É assim que vão colaborando para construir a história de cada região de Sampa.
Bacana.
Valeu!
Muita paz!

Arthur Miranda - Tutu disse...

Belo texto Lopomo, já andava saudoso deles aqui no Blog, esses tipos valentões sempre existiram e sempre existirão em todo o canto,
Infelizmente hoje em dia, eles estão infiltrados nas torcida uniformizadas dos nossos grandes times de futebol, matando e morrendo também. Parabéns.

joaquim ignacio disse...

Em uma das ilustrações de seu texto uma foto da Kopenhagen, suas chaminés soltando fumaça. Lembranças do quarteirão perfumado com os cheiros dos chocolates; esquina perigosíssima para os obesos e diabéticos...

Ignacio

suely aparecida schraner disse...

Uma ótima reminiscência. Gostei muito e também aprendi um pouco. Valeu!