Caiu. Passou raspando. Foi por um triz. O escarro vindo da janela do ônibus passou a um milímetro do espetinho de carne, o famoso churrasquinho de gato, assando na calçada. Fiquei imaginando as vezes que acertam.
O Largo Treze de Maio, um misto de mercado persa às avessas. Na travessa, uma sinfonia de sons de todo tipo. Um canto cadenciado e alto se destaca a cada 10 metros: Compro “orodóleuro”. Difícil traduzir o, “compro ouro, dólar e euro”. São moços e moças, com seus coletes-placas amarelos, escrito em preto e vermelho “compro ouro”, a repetir este mantra zilhões de vezes ao dia. Mais à frente, na Praça Floriano Peixoto, em meio a tantas pernas que vão e vem, enrolados em seus cobertores sujos, moradores de rua acampados na beira da calçada do Paço Cultural Júlio Guerra, a Casa Amarela. Ao lado, seus fieis cachorros. E um monte de filhotinhos. Uma mais assanhada, se pôs a saltar numa altura absurda para o seu tamanhinho. É a Lokinha, a garota visivelmente drogada, me disse. Uma cachorrinha branca e cinza, alegre e saltitante, ainda sem nenhum encardido na pelagem. Quem resiste?
Na Casa Amarela e no CCM é que acontece o curso de Jardinagem. Lugar onde se aprende o cultivo de plantas, de amizades e onde também se põe a mão na massa. A professora é gente fina, os alunos gente sensível, que sabe que gente também é natureza. Natureza a pedir socorro, como no espaço plantado e sujo que espera por manutenção e limpeza.
Importante no curso de jardinagem é criar camaradagem com tudo o que é ser vivo. As alunas cuidam e fotografam suas plantas exibindo-as como quem mostra fotos de filhas muito queridas. O desafio do momento é limpar e podar o espaço plantado em frente ao CCM. Perto do bueiro, um cheiro intenso de urina enquanto os achados surpreendem. Ao final, cordilheiras de sacos pretos lotados de todo tipo de embalagem, bitucas de cigarro, moedinhas de um centavo, uma faca e até cigarro de maconha. Toda sorte de imundície produzida pelas gentes gentis deste solo varonil. Enquanto isso, voava mais lixos vindos de ônibus, de carrão, de pedestres e das gentes com e sem instrução.
Duas horas depois, a força das vassouras, pás e tesoura mostraram a que vieram. Tudo limpo, podado, arrumado e uma cena chama a atenção. O pedinte faminto ganhou um espetinho de carne. Um outro, assalta o petisco e sai correndo. Surpreso, o roubado exclama: nem bem Deus me dá o saco, vem o cão leva a farinha!
Nota:
CCM= Centro de Cidadania da Mulher (em Santo Amaro)
Rua Mário Lopes Leão, nº 240 - Bairro: Santo Amaro.
Paço Cultural Júlio Guerra – Casa Amarela, Praça Floriano Peixoto, 131 –Santo Amaro
Curso de Jardinagem ministrado pela bióloga Adriana Maciel
Por Suely Aparecida Schraner
14 comentários:
Pois é Suely, haja saco. Tem dia que tá mais para urubu que para colibri.
Parabéns pela narrativa.
Olá, Suely!
Mais um os retratos de Sampa...e do Brasil. Ainda sofremos pela nossa falta de cultura, falta de identidade, falta de auto estima,pouco orgulho de nossa história que ainda está se formando.
Um dia, chegaremos lá!
O trabalho do CCM é muito bacana. São propostas como esta que conseguiremos fazer a diferença...Tem tanta coisa boa que podemos copiar, não é mesmo?!
Muito bacana seu texto.
Valeu!
Obrigada.
Muita paz!
Oi Suely, texto digno de uma cidadã paulistana, mostrando as mazelas e as belezas de um região hiper-habitada da zona sul.
Valeu a pena te ler.
Suely!
Após atenta leitura desta bela crônica, nada mais me resta senão parabenizá-la. Pelo texto bem escrito, pelo amor pela terra (em todos os sentidos) e pelas pessoas que escorre das suas palavras, pela forma gentil, embora realista com que enxerga os menos favorecidos e também pelo humor contido e contagiante.
Gostei muito de saber a respeito do CCM - a divulgação desse centro faz parte da cidadania - e confesso ter ficado com um pouquinho de inveja. Das mulheres por ser um projeto tão belo voltado a vocês e da possibilidade de frequentar esses cursos, que não temos por aqui. Vivo num pedaço do Paraíso, mas ainda falta tanta coisa! Coisas que apenas cidades como São Paulo e outras grandes cidades podem oferecer... e esse tipo de projeto é uma delas.
Enfim, a leitura da sua crônica melhorou ainda mais este belo e ensolarado domingo! Obrigado!
Abraço.
Belo retrato, Suely, de uma região conturbada. Da antiga beleza e placidez da Pça. Floriano à miséria e o caos. Mas, quando das últimas vezes passei pelo Lgo. Treze, pareceu-me melhor e mais limpo. Há esperanças? Tomara que sim...
Todos sabem a causa de tudo isso... ninguém quer falar pra não ser tachado de preconceituoso. Nas três "faltas" que a queria Soninha menciona, ela esqueceu as principais: falta de EDUCÇÃO, DE VERGONHA E DE RESPEITO AO PRóXIMO. Não haveria necessidade de CCM se... é melhor parar por aí, senão, eu é que estarei no pelourinho. Parabéns, querida Suely, vc descreve muito bem uma triste e dolorosa REALIDADE. Nosso querido Saidenberg pergunta se há esperança... eu acho, não, tenho certeza de que não. Desculpe, Luiz...
Modesto
Suely: Belíssima cronica!
A tragicomédia da vida retratando as mudanças das paisagens urbana e humana.
Abração,
Natale
Arthur,
ensacando e amontoando urubus sobrevoando. Ainda bem que existem colibris a contrapor. Um abraço e muito obrigada!
Soninha,
a Sampa de todos nós e suas múltiplas faces. E vamos em frente que atrás vem gente. Grata e bons dias com muita educação e paz.
Miguel,
o que tem de melhor na cidade são as pessoas. A nossa diversidade e a loucura desta cidade. Encontrar harmonia e beleza no caos é nosso maior desafio.Abraços e obrigada!
Zeca,
ai que emoção é ler seus escritos!Estou certa que com sua lavra você muito contribui para melhorar seu "pedaço do Paraíso" aí. Muito obrigada pelo carinho e pos ler meu texto. Abraços.
Luiz Saidenberg,
a conturbação da região e o cidadão. Mosaico de cores, dores e ardores. Do lamento até a esperança os desejos de bonança. Mais uma vez o meu muito obrigada! Valeu!
Modesto,
a falta de educação na maior democratização. Cidadão de toda classe a emporcalhar a cidade. Em compensação ainda resta gente de boa educação e muita civilização. É por elas que a chama da crença nas possibilidades humanas não se apaga. Abraço e muito obrigada pela postagem e senso crítico.
Wilson,
a paisagem que oscila na Sampa de muitas histórias. Ora para o bem ora para o mal. A vida pulsante no burburinho da existência consumista.
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