Meu pai não gostava de mim e eu muito menos dele.
Da parte dele foi uma bronca pelo fato de minha mãe morrer do meu parto. Por causa disso, apenhei até aos 17 anos. Para apanhar não precisava fazer nada, ou, por pouca coisa. Até então eu não entendia, mas, lá por perto dos meus 11 anos, percebi o motivo. Numa de suas broncas ele disse: Em vez dela, deveria morrer você, filho d...! Minha mãe de criação (ele casou depois de 6 meses) me disse que minha mãe tinha morrido, como já citei acima, e eu ouvi, mas foi como se ela não dissesse nada; entrou por um ouvido e saiu por outro.
Ela ficou ressabiada que tinha perdido minha amizade, pelo fato dela não ser minha mãe biológica, mas, aos poucos percebeu que eu era um relapso e não levava as coisas mais a frente. Para mim, ela era minha mãe e pronto.
Isso ela ficou sabendo mais tarde quando uma mulher perguntou: Como vai sua madrasta? A resposta foi forte. Madrasta é a p...q...p...! Coitada da mulher! Pelo jeito, nunca mais na vida chamou alguém de madrasta.
Via os meus amigos se darem bem com seus pais e eu tinha a maior inveja por não ter a mesma chance.
Esse ranço vinha da parte dele e eu deixava o barco correr. Apanhava por nada, qualquer coisinha era motivo para boas bordoadas em qualquer parte do corpo. Tapas na nuca foram muitos e eu batia a boca na mesa, abalava os dentes da frente que ficavam moles dois ou três dias, depois voltavam ao normal.
Adorava ouvir o jogo pelo rádio. Nas últimas rodadas do ano de 1950, o Palmeiras ficou com um ponto de vantagem, com direito a ser campeão pelo empate. Justamente naquele domingo, minha mãe cismou de ir ao cinema e eu não ia ouvir o melhor jogo, o último do campeonato. Na verdade, nem sei que filme era, pois meu pensamento estava no Pacaembu. Ficava pensando quem estaria ganhando? Fui ao banheiro e lá tinha um são paulino satisfeito, dizendo que estava um a zero com gol de Teixeirinha, e o juiz tinha anulado outro.
Saí do cinema, ainda com aquele 1 x 0 para o São Paulo, mas, quando chegamos à Rua do Porto, dona Laura estava me esperando e, sabendo que eu era fanático, veio me abraçar dizendo que o Palmeiras era campeão. Quando cheguei em casa, meu pai que tinha visto a cena e falou: Tá contente? E uma bofetada de mão em concha pegou em cheio no nariz. Estava sangrando e fui ao tanque, tentar estancar o vermelhinho, Aproveitava para ouvir o Narciso Vernizzi, no programa Palhinha filmando a Rodada, que mostra a gravação da transmissão do Pedro Luiz, o sangue já estava no fim e eu fingi que tinha mais só para ouvir o Narciso. Até que foi boa aquela bordoada, pois assim, pude ficar a par do que tinha acontecido no Pacaembu.
Meus piores dias eram os sábados e domingos quando ele estava em casa. Ai, eu não podia ir pra rua jogar bola e ainda tinha que estudar. Tanto à noite como nos fins de semana. Às vezes, ia até as 22 horas. Um dia ele foi dormir e esse idiota continuou lendo para as moscas ouvirem. Minha mãe levantou e disse: O que está fazendo ai menino? Vai dormir!
Pra ver que tipo de pai que eu tinha... Para ele, estudar era ler o livro da escola. Não era um Pai Burro? Quando chegava o meio do ano, eu já sabia o livro de cor e salteado. Daí para frente, eu tinha que ler alto, fazia um jogo de futebol. Palmeiras x Corinthians.
As primeiras letras maiúsculas com a letra C era gol do Corinthians e P gol do Palmeiras. Eram os anos 1950 e até ai o Corinthians ganhava.
Só parei de ler o livro a noite, quando mudamos para o Brooklin e não tinha energia elétrica; foi durante abril de 1951 até maio de 1953.
Quando nos mudamos para o Brooklin, tinha um córrego bem em frente de casa. Meu pai chamou meu irmão e eu e disse: Não quero nenhum de vocês brincando no córrego. Foi a mesma coisa que dizer pra mim: Brinque a vontade.
Um dia 26 de Abril, daquele mesmo ano de 1951, 25 dias depois de mudar para lá, fui à venda pra minha mãe, mas, como tinha uns guarus à beira da água, lá fui eu pegar. O barranco desabou e fui pra baixo. Desloquei o ombro e quebrei o braço. Eu, que já apanhava por nada, imagine o que não aconteceu ai: lá mesmo, no leito do hospital São Luiz, levei uns sopapos, mesmo ainda não tendo sido atendido. Com o braço esquerdo 10 centímetros mais que o outro. Pelo fato de ter deslocado o ombro, não podia engessar. Tinha que ficar com um aparelho, com o braço na frente e o braço virado a esquerda, formando um L. Fiquei com aquele aparelho mais de dois meses. Me lembro que, além do serviço de colocar o ombro no lugar e imobilizar o braço, o Hospital São Luiz cobrou 120 cruzeiros do aluguel do aparelho. Do quarto ouvi e vi o banzé que meu pai formou, além de gritar, falou todo tipo de palavrão.
Deu certo a explosão dele. Só sei que se eles não deixaram de graça... Diminuíram bem o preço. Fiquei todo aquele tempo sem ir à escola. Quando voltei, em Julho, o diretor da escola disse que eu tinha que voltar para o segundo anos por causa dos meses que fiquei sem ir à escola.
Meu Pai, com certeza, teve outra atuação daquelas. Pelo jeito deve ter falado um monte de palavrão e até ameaçado meter a mão na cara de todos. Só sei que continuei no terceiro ano e ainda passei para o quarto e último anos.
O tempo passava e eu continuei a apanhar. Eu não tinha reação alguma, nem chorava, já estava acostumado. Meu apelido na rua era “Armazém de pancadas”. Dona Laura, aquela que me abraçou dizendo que o Palmeiras tinha sido campeão, conversando com dona Elvira, me viu na rua num domingo, aproveitando a propaganda da Toddy: “Já tomou seu Toddy hoje?”, perguntou: Já apanhou no dia de hoje? Mas, quando cheguei aos 17 anos, apanhei pela última vez. Por nada, levei um tapa na cara... Foi muito grande a humilhação. Pela primeira vez, mostrei uma forte reação. Levantei uma cadeira e ia dar na cabeça dele. Sua reação foi de espanto. Ele, que estava com um litro de leite na mão para mandar na minha cabeça, disse: Ah, quer dizer que já é homem? Daí pra frente ficou esperto. Nunca mais se atreveu a querer me bater. Em 1962 ele morreu, não senti muito a morte dele. Que coisa estranha, não?
Por Mário Lopomo
11 comentários:
Mário, que experiência triste amigo. Sem comentários...
Lopomo quanta dor , quanta tristeza. Acho mais do que compreensível você não ter sentido muito a morte do seu pai.Acredito que muitos filhos viveram o que você viveu.
abraço
Olá, Mário!
Que triste sua história. Um terrível conflito familiar acentuado pela própria rudeza de coração diante da dor da perda de um ente querido.
Seu pai, naquela época, talvez não tenha conseguido suportar a morte de sua mãe e fechou seu coração para o amor que teria de dedicar ao bebê recém nascido.
Compreensível ele ter se casado novamente tão breve, pois tinha um bebê para ser criado e havia necessidade da figura feminina nesta criação.
Muito difícil mesmo. Conflitos entre pais e filhos acontecem em todas as épocas... Imagine naquela,quando não se tinha a chance de obter conhecimentos e ajuda para enfrentar um problema tão complexo.
Mas, nos emociona... Sua mãe morreu para que você vivesse. Ela cumpriu sua missão e os que ficaram teriam de cumprir as suas.
Hoje você também é pai, Mário e, com certeza, não cometeu os mesmos erros de seu pai,nãoé mesmo?!
Valeu!
Obrigada.
Feliz dia dos pais.
Muita paz!
Que lamentável, Lopomo. Uma história revoltante, exemplo de como essa idealização de boas relações na família é muitas vezes uma farsa. E de pessoas que não nasceram para ser pais. Mas creio que são muitas vezes comuns, ainda mais no Brasil.
Parabenizo-o pela dura sinceridade.
Mario oque comentar depois de ler teu texto?
Muita brutalidade, muita raiva, muito desapego.
Acredito que tua relaçõa com os filhos nada tenha do ranço de antigamente.
Mário, de uma coisa vc pode ter certeza: se a sra. sua mãe não tivesse morrido no seu parto, o comportamento de seu pai com vc, seria o mesmo. Não é possível uma pessoa guardar por 17 anos, em sã conciência, tanta raiva de alguém tão próximo a ele, como vc. E isso sabendo que VC NÃO TEVE CULPA ALGUMA.
Mas não há de ser nada, Lopomo, não guarde ódio dele, vc deve ter bons pensamentos, não retribua com as mesmas armas quem te feriu, se acreditas ou não em Deus, lembre-se sempre que nada fica sem cobertura, a própria natureza se encarrega de vingar, vc, hoje é um vencedor e merece ser homenageado no dia dos pais. Parabéns pelo dia e pela coragem de abrir seu coração.
Laruccia
Ai, que pai desnaturado!Devia ser um homem muito solitário e ignorante. Enfim é o retrato de tantos pais por aí. Eu adorei o seu texto. Abraço.
Puxa Mario, que historia triste, mas como eu perdi o meu pai muito cedo, com certeza aceitaria até um pai igual ao seu para sentir o sabor que é ter um pai ao seu lado e poder conviver com ele até aos meus 18 anos pelo menos. Não é fácil ter igual ao seu, mas para mim foi muito mais difícil crescer sem um pai.
A maioria dos pais daquela nossa época eram violentos mesmo, me lembro de pais de amigos meus. Meu pai assim como alguns outros poucos, foi na realidade uma exceção da regra. Tomara que você possa viver o suficiente para assistir seus filhos e seus genros serem ótimos pais para seus netos.
Feliz dia dos Pais para você.
Puxa Mario, que historia triste, mas como eu perdi o meu pai muito cedo, com certeza aceitaria até um pai igual ao seu para sentir o sabor que é ter um pai ao seu lado e poder conviver com ele até aos meus 18 anos pelo menos. Não é fácil ter de conviver com um pai igual ao seu, mas para mim foi muito mais difícil crescer sem um pai.
A maioria dos pais daquela nossa época eram violentos mesmo, me lembro de pais de amigos meus. Meu pai assim como alguns outros poucos, foram na realidade uma exceção da regra. Tomara que você possa viver o suficiente para assistir seus filhos e seus genros serem ótimos pais para seus netos.
Feliz dia dos Pais para você.
13 de agosto de 2011 17:42
Caro Lopomo!
Que infância triste e cruel! Pena que, naquela época, muitos pais agiam dessa forma, por desinformação, por costume, por repetir, em suas vidas, os processos familiares que conheceram em suas próprias infâncias! Você, que perdeu sua mãe ao nascer, teve o consolo de uma mãe que o criou e o protegeu, tanto que você mesmo a considerava como sendo sua mãe e não admitia nem de longe o uso da palavra "madrasta". E o seu próprio pai, em seus hábitos rudes, não deixava de protegê-lo - a seu modo é claro! - e brigar por você. Mesmo vendo-o como aquele que apenas batia, até sem motivo, é preciso reconhecer que, bem ou mal, ele o criou e ajudou a formar o homem no qual se tornou. E agora você também é pai. E avô! Então, só posso desejar-lhe
FELIZ DIA DOS PAIS!
Abraço.
Mário:
Pena que tenha sido assim.
E pena que, como tantos outros, ele tenha se desequilibrado ao perder a esposa quando ela deu a luz.
Esse tipo de depressão avassaladora, hoje é perfeitamente curável.
Ele sofreu demais e você também sofreu demais.
Mas, como todo o túnel escuro há uma luz no final. E essa luz foi sua mãe, que bem ou mal foi pai e mãe.
E ela esteve com você até o fim.
E isso ele fez de bom casando-se com ela.
Abração,
Natale
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