quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Desliga isso


Início da tarde. Resolvo andar; deixo de lado ônibus ou metro, caminho. Estabeleço, como marco inicial, a Praça da Sé, vou à Catedral, falo com meus Pais, o que está no céu e o que para lá foi, há poucos anos atrás. Peço fervorosa ajuda, ouço o silêncio como resposta. Saio, desço à Rua Boa Vista, pessoas se acotovelam e me empurram pelas calçadas. Elas têm pressa; eu, definitivamente não tenho mais.
Estou decidido e resolvido ao que me propus. Caminho calmo, sereno, ao ritmo da natureza. Chego à Rua Boa Vista. À minha frente se descortina a General Carneiro, à esquerda uma sequência tresloucada de números assinalando o nada para ninguém. Chamam-no de impostômetro, que presumivelmente marcaria o quanto pagamos de imposto a cada período da nossa vida. O deste ano já vai alto, inútil, para quem se apercebe ou se aproveita de qualquer informação. No entanto, ele continua lá, no avassalador suceder de números. Eu, de minha parte, desdenho aquilo, junta-se aquele mundaréu de inutilidades à minha estéril vontade de não pensar em nada. Alias, pensei numa coisa sim.
Nesta hora gostaria de encontrar com o responsável por aquele painel e, sossegadamente, solicitar: “Desliga isso”.
Passo ao largo da vontade, deixo tudo para trás e me vou. Passo pela São Bento, cruzo o Anhangabau, passo pelo centro velho, na velha Conselheiro Crispiniano, viro na 24 de maio, onde os vendedores ambulantes tomam espaço nas ruas, restam-nos estreita passagem. Chovera e as poças d’água são armadilhas que nos são impostas a cada passo. Vejo o eterno tapume onde era a Mesbla e onde era a Caverna Americana, lembro meu pai ensaiando suas palavras em inglês ou alemão para atender os fregueses que ao restaurante iam. Foram embora as lojas sofisticadas, ficam os arremedos de comércio, os ambulantes, os tristes e os mal aquinhoados.
Ando um pouco mais, chego à Augusta. Desvio o olhar do 423 para não lembrar do colégio; o Bolonha continua vazio, talvez seja a hora, talvez seja o mercado, não sei, nem me importo. A tarde cinzenta avança e eu preciso caminhar. Relembro os cinemas que não existem mais. Hotéis e pequeno comércio proliferam. Chego quase ao topo da Paulista. Não encontro mais o Paes Leme, que virou um edifício, e quase não vejo o São Luiz, espremido entre lojas e prédios.
O relógio do Itau, no Conjunto Nacional, está apagado. Sei que ora está funcionando, ora não. A cidade progrediu e seus dirigentes querem o melhor para ela, não importando se o melhor que eles estabelecem é realmente o melhor. Lastimo a pendenga com o relógio do Itau. Cidade limpa só nos arranha céus porque na calçada a gente tropeça em pessoas jogadas e nas pedras portuguesas que deveriam estar firmes no chão e não estão. Faróis abrem e pessoas correm; a cidade limpa, limpa não está. Mas, o relógio do Itau, marco da cidade por mais de 30 anos, às vezes está funcionando, às vezes não.
Nesta hora gostaria de encontra alguém, não sei se da família Setubal ou da família Moreira Sales e enfaticamente solicitar : “Desliga isso”.
Mas, não encontro ninguém e desço a Augusta. Nem olhei pro lado onde era o Astor que, graças a Deus, virou livraria Cultura, nem olhei por onde andaria o cine Paulista. A Augusta já foi, estou na Colômbia e passo pela Igreja Nossa Senhora do Brasil. Chego ao meu destino.
Na Groenlândia estou em frente ao prédio onde era a mercearia dos meus pais, fonte inesgotável de renda que me proporcionou escola e faculdade. O prédio está fechado, menos por causa da hora, já que a noite chega, e mais pela insensibilidade dos governantes que ceifaram a vida produtiva de um casal que lá lutara por exatos 21 anos. As portas estão fechadas e sabe-se que, lá dentro, há atividade profissional. Nos avessos dos avessos, uma atividade, de portas abertas, foi barrada para que outra, de portas fechadas, fosse exercida.
Encosto no muro da casa em frente. À minha volta só vejo muros altos e câmeras de segurança. E por falar em segurança, noto que logo à minha volta, figuras avantajadas se aproximam. Suspeitam de minha presença. Chegam. Questionam sobre ela. Tal como há 33 anos, meus pais tiveram que sair do seu local de trabalho, quase que expulsos pelas autoridades, era eu, naquele momento, suspeito de não sei o que na cabecinha subdesenvolvida ao extremo daqueles senhores.
À primeira pergunta desandei a falar: Aqui eu vivi e cresci. Naquela casa morava a família Cintra Godinho, naquel’outra, a família Yazig, o deputado naquela, pulei muitas vezes este muro que estou encostado agora para brincar de mocinho e bandido. Não sou nada aqui, mas já fui dono e senhor deste espaço. Nada me apetece mais agora do que saborear estes velhos tempos, nada mais. Não sei se voltarei mais aqui, mas, quase sempre passo por aqui. Para nada. Só pra fazer o que estou fazendo agora. Desculpas daqui, murmúrios dali, o grupo se dispersa e eu fico novamente só.
Revejo outra vez o mesmo filme.
A Silvinha brincando de esconde esconde, em 1958; a Silvia Regina em 1975, grávida do Alexandre; meu pai cerrando as portas pela última vez; rosto virado para que eu não visse nada do que não quisesse ver, os muros das casas, relembro que se via as salas das pessoas, o entra e sai das crianças e adultos. Vejo tudo isso e me torno muito mais triste do que estava. Há um processo célere em andamento, eu sei disso. Nem me incomodo mais.
Caminhei muito hoje. Refleti. Deixei meus entes queridos e fui me encontrar com o desalento que nesses dias me acompanha. As ruas estão no mesmo lugar, mas diferentes; as casas estão no mesmo lugar; mas irreconhecíveis; os sonhos ressurgem com a mesma velocidade, mas desesperançados; meu coração insiste em me manter vivo, mas a realidade não deixa. As pessoas mudam, trocam o absoluto pelo relativo. O que foi essencial, hoje é supérfluo. O gesto irrefletido ficou maior que o amor. Estou cansado. Andei muito, não só hoje, mas a vida toda. A cabeça, senhora da razão, aponta tudo, aceita tudo, quer consertar, não conserta. O velho e cansado coração, timoneiro, guia e, mestre de tantas jornadas, soluça triste, tenta se equilibrar no ritmo que cada vez mais se mostra mais lento, ao contrário de tudo à sua volta.
Vou embora, parodiando um amigo meu que sempre brincava trocando as palavras de lugar e digo que preciso ir embora “porque é longe e eu moro tarde”. Continuo a caminhada, infinitamente quieta, incondicionalmente serena.
Deixo a Groenlândia e me vou. Meus passos soam secos na calçada úmida e meu coração triste soluça baixinho no seu tum tum tum costumeiro.
Nesta hora, gostaria rezar ao nosso Papai do Céu e humildemente pedir a Ele, “Desliga isso”.

Por José Carlos Munhoz Navarro

12 comentários:

Miguel S. G. Chammas disse...

Zé, depois desse extenso tour por Sampa, acho melhor esperar você descansar e, então, lhe dar um forte e caloroso abraço por ter elaboradoesta linda e singular jóia.
Acredite, fiquei como diria um velho político criado por Dias Gomes, "deverasmente" emocionado.

Fátima Cardoso disse...

Maravilhoso! estava junto a ele em cada frase, em cada canto desta cidade tao linda e tambem tao desumana...

Eliane Navarro disse...

Ao ler o texto, lembrei e reviví a histórias que você e o Vovô Zé contavam para nós... As brincadeiras na Groelândia, o Xan falando dos carros...
Conheço apenas a Sampa de hoje, cheia de prédios, impostos e tropeços... Mas, por 15 minutinhos, consigo viajar pela sua Sampa... e isso faz o meu dia mais feliz...
Espero um dia poder mostrar isso ao Gabriel...
Pai, obrigada por tudo!!!

Zeca disse...

Navarro,

parabéns pela linda crônica! Fui capaz de rever todos os caminhos e até sentir um pouco da triste melancolia que acompanhou teus passos.
E não é que hoje, num dos jornais da TV, quando anunciaram que já pagamos mais de 900 bilhões, ou trilhões, sei lá!, mostrando o tal mostrador que nem sei pra que serve, pensei um pouco como você: questionei a necessidade da existência dele e pensei que seria muito melhor se ele não existisse. Afinal, a manutenção daquele monstrengo consome boa parte dos recursos que poderiam ser melhor empregados em outras coisas...

Parbéns! Gostei muito! E me identifiquei com teus questionamentos.

Abraço.

Soninha disse...

Olá,José Carlos!

O texto é maravilhoso, como tudo o que vocês escreve.
Andei por esta Sampa junto com você, embora esta Sampa era diferente em minha juventude.
Mas,tem algo neste texto...que mostra um José Carlos meio deprimido e triste e não só saudoso.
A vida é linda e curta demais para nos determos em tristezas.
Façamos como Pessoa...as pedras do caminho? recolho todas...com elas construirei um castelo.
Valeu!
Obrigada.
Muita paz!

marcia ovando disse...

Navarro

Neste tempos tão mudados mais do que nunca fica mais evidente a cada momento que " o que foi essencial hoje é superflúo,"o gesto irrefletido ficou maior que o amor" e, principalmente que tudo anda meio invertido, inclusive os valores.Que pena!
Essa sua viagem pelas ruas e momentos de sua vida preeenche o coração da gente de muito prazer e admiração ao ler um texto tão bem escrito e sensível como êste!
Um grande abraço

Luiz Saidenberg disse...

Caro José, caramba, como vc caminhou. Vc fez o Tour da Pauliceia. E tudo isto porquê? Talvez, na sua inquietação, fazer, ao vivo, um balanço de sua trajetória de vida. Há um ditado que diz- não se deve jamais voltar aonde se foi feliz. A Pauliceia, cada vez mais desvairada, não é nem de longe aquilo que foi, e nem vc também. Acontece com todos nós...Ânimo, amigo, e ao invés de desligar a máquina, tranquilize-se e repita, como na música de Elba Ramalho:- Tum, tum, tum, bate, coração...

Arthur Miranda - Tutu disse...

Querido e grande Navarro,lendo esse texto tão bonito e comovente, caminhei com você por essa nova São Paulo e também pela antiga, a da Garoa!
E ao final da gostosa leitura cheguei a conclusão que no lugar de desligar isso. eu quero ficar é muito ligado, ligado no Blog,ligado aos amigos, ligado ao encontro das Redondas, onde adoro te ver, e então eu sugiro aos gritos e suspiros a todo Pulmão.
Continue ligado,
prossiga plugado
Tu és Az de Ouro, no meu coração.

suely aparecida schraner disse...

Comovente caminhada bordada de lirismo. Profundo! Parabéns.

Laruccia disse...

Munhoz, sua extrordinária narrativa tem sabor de depedida... despedida do quê... da vida? não... da escrita?... nunca. Se vc está pensando em deixar de escrever, tira o cavalinho da chuva, está proibido de parar. Isto posto, vamos ao seu tarabalho. Poucas vezes li um roteiro tão intrigante e belo como o seu. Meus colegas quase esgotaram os conceitos emitidos, sem deixarem nada pra mim. Será? ledo engano. Eles não disseram da alma que vc colocou na narrativa, a sinceridade, a poesia bels e lírica, arrancando do fndo de seu ser o mais candente dos sentimentos dispensados nesta narrativa: o amor por São Paulo. Parabéns, Navarro e pare de pensar em parar, hein? Laruccia

Luiz Saidenberg disse...

Caro José, desculpe-me por voltar à seção Comentários, justamente quando vc não é de mandar comentários.
Mas, relendo sua comovente e triste narrativa, não pude deixar de notar a profunda mágoa pela perda do negócio de seus pais, e na verdade ali está o Umbelicus da narrativa, e perdõe-me novamente por voltar ao latim, mas a Origo Malis. Como se ali estivesse o início de tudo de ruim que pode ter-lhe sucedido.
Caro amigo, perdõe e esqueça, mesmo porquê não há volta, a vida sempre vai em frente.
Assim, seu coração baterá mais aliviado, sem essa absurda pretensão de desligá-lo prematuramente.
Um abraço.

Wilson Natale disse...

Navarro, texto lindo!
É preciso às vezes e é bom visitar os lugares antigos para exorcizarmos o nosso passado.
Tudo muda, na vida e na cidade. Nós mudamos!
E o que importa é manter viva na lembrança a nossa paisagem, agora antiga.
Abração,
Natale