quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Dante, o barbeiro boca suja e o Corinthians de 1929

clique no play para assistir ao primeiro jogo filmado entre Corinthians e Bologna (30/07/1929)

Eu era bem garoto quando aparava minha carapinha na barbearia do Dante na rua Fortaleza no bairro do Bexiga, lá pelos anos de 1947 ou 48.
O Dante, um ítalo-corinthiano, era uma figura que hoje chamaríamos de ‘estranho no ninho’. Fanático pelo alvi-negro do Parque São Jorge, era capaz de arrumar as maiores encrencas com os antigos palestrinos/‘parmeristas’, que não se conformavam com o fato de um paesano ser torcedor do maior inimigo, e, logo, tome catadupas de xingamentos em português, italiano e dialetos diversos, sempre de acordo com os resultados dos jogos entre Corinthians e Palmeiras, numa equação que acho melhor explicar: gozação era igual à resposta pesada, que evoluía para xingamentos onde as mammas eram frequentemente citadas pejorativamente; em seguida a esses prolegômenos orais, o couro roncava solto com eventuais clientes tentando tirar a navalha da mão do Dante enquanto os provocadores ou provocados desembestavam a correr em direção à Maria José, que ninguém é idiota pra ficar esperando ser retalhado pelo italiano furibundíssimo e olha que ele se “furibundava” por quaisquer dois mil réis! Aquela cabeça cheia de cabelos cheirando à Glostora ou à Quina Petróleo Juvênia era extremamente quente; provocar o homem não era uma boa idéia!
O salão do Dante era igualzinho a todas as barbearias da época: duas cadeiras Ferrante lado a lado e em frente à espelhos, uma estufa para aquecer toalhas de rosto que, diga-se de passagem, era mais um enfeite de parede do que um equipamento útil, creio até que nunca fora muito usada, algumas cadeiras comuns para se esperar a vez, uma pilha de revistas velhas: O Riso, O Governador, Noite Ilustrada, o Cruzeiro, Alterosa, Careta... Outrossim (opa!), informo que a barbearia ficava na Fortaleza, uma porta simples de frente a uma das entradas do ‘vilão’ (O ‘vilão’ era um grande cortiço que tinha duas entradas: pela Ruy Barbosa e pela Fortaleza e abrigava mais de 100 famílias. O local ainda existe hoje, mas sofisticou-se; não é mais cortiço, óbvio, é uma espécie de condomínio residencial; tem até nome pomposo: “Travessa dos Arquitetos”, chic, né?). Todo Bexiga sabia que o Dante era o maior ‘boca suja’ que Deus colocara no mundo, mas ninguém ligava, era tudo normal, pelo menos para ele!: - “Ecco! Io parlo palavró mesimo. Nasci ca boca chuja, porca miséria!”, dizia sempre que alguém reclamava de seus destemperos...
Tic, tic, tic...o pente separava os cabelos e a tesoura cortava aqui e ali e a conversa fluía, dizendo melhor, o monólogo comia solto: “ Us pessoar fala qui o Domenico da Guia é o milhó bequeira que ixisti, ma io non credo... inguar ao Grané num teve nem vai tê, Madonna mia... O Curintia era molto buono co Tuffy, co Grané, co Del Debbio...” , e tome histórias, lances, salames, brigas, causos e mais causos do futebol dos anos 20, 30 e 40... O Dante era um corintiano enlouquecido, sejamos sinceros...; morreu velhinho por volta de 1965, 66, numa fase em que o Corinthians não conseguia nada, títulos, vitórias retumbantes, nada, nada... ; deve ter morrido xingando.
O velho Dante veio à minha lembrança quando meu filho Júlio me presenteou com o DVD comemorativo do Centenário do Corinthians. Alguns jogos importantes foram filmados, inclusive um que acordou o velho barbeiro que dormia esquecido nos recônditos de minhas lembranças deslembradas: em 1929 o Corinthians disputou, creio, uma de suas primeiras partidas internacionais contra um time profissional italiano e venceu por 6 x 1 com 2 gols de Grané...
De repente voltei à minha infância no Bexiga num dia de muito calor. Estou sentado sobre uma tábua apoiada nos dois braços da cadeira de barbeiro. Meus pés estão soltos no ar – “num pisa nu istufamento qui e prá num chujá... dispois vem ôtro fregueis i chuja u rabu... num fica bem, né”? - e eu escuto pela milésima vez a descrição daquele longínquo jogo de 1929...
Setembro de 2010. Luzes apagadas na sala. O Júlio está configurando o DVD Player. Começa a reprodução. Estou vendo o Corinthians de 1929 numa TV de LCD de 56 polegadas em pleno século 21, 81 anos depois do fato ocorrido. Nó na garganta. Meu time entra em campo, olha lá o Tuffy, o Grané entra em campo sorrindo, Neco é aquele, será?
Estou vendo a minha São Paulo um ano antes da Revolução de 30.
Centenas de automóveis estacionados numa várzea cortada pela linha dos bondes que se dirigiam para o bairro da Lapa. Ao longe as ondulações da Serra da Cantareira. O Parque Antarctica lotado. Palhetas, bengalas, chapéus coco e gellot, ‘Theda’s Bara’ usando vestidos longos e chapeaux emplumados, sorrisos inocentes para a câmera que filmava... Meu pai, o velho Alcides, teria 17 anos na época. Estaria ele já em São Paulo, vindo da distante Conceição do Monte Alegre? Minha mãe, Dona Zezé, tinha 8 anos e ainda estava em São Manuel, cidade dos Barros e dos Melão, terra da dupla Tonico e Tinoco que ainda não eram ninguém. Eu? Eu nasceria 11 anos depois e mais tarde iria cortar cabelo na barbearia da rua Fortaleza...
A voz do Dante: - Quando o futebór terminô, vim vindo a pé da Pompéia até o largo do Piques, subi a Santantó e fui dormi. Nunca dormi tão gostoso, démo uma surra nus intaliano...
- Mas Dante, você é italiano! Não pode querer mal um time da sua Itália...
- Guarda..., na Itália io era italiano, mas tô no Brasile desde 1914 i no Brasile io sô brasiliano i corintiano, i num me importa os língua de trapo...
O Dante, com suas histórias, me fez admirar aqueles jogadores antigos, com seus longos calções de algodão, seus bonés e gorrinhos, seus bigodões, com suas chancas e com suas bolas de capotão. Jogadores que tinham nomes respeitosos: Imparato, Friedenreich, Amilcar, Grané, Del Debbio..., não havia os “inhos” da vida, os Ronaldinhos, os Marcelinhos, etc...
Grané, só vi você num relance, entrando em campo em 1929, num filmete de 40 segundos quando muito, mas você me fez lembrar um tempo em que um barbeiro do Bexiga contava suas façanhas com suas chancas de biqueiras metálicas... Quando vi o Corinthians de 1929 voltei a ser criança,... “minha mãe me deu dois mil e duzentos réis prá pagar o barbeiro e comprar um sorvete de palito na sorveteria do seu Giuseppe”...
Grané, sou seu fã ardoroso! Grazie, signore Dante, valeu!

Por Joaquim Ignacio de Souza Netto

16 comentários:

Wilson Natale disse...

Beleza, Joca! Texto saboroso.
A paisagem do "Bixiga" vista e revisitada por você; "u barbiére", como tantos outros, com a navalha rabiscando o ar, gritando "parolaci"(palavrões),
incendiado pelo mal resultado do futebór."Curintiana" ou "parmerense", a "taianada" era fogo!(risos)
Em casa, rádio na janela,meu nonno, pai e tios sentados no quintal, ouvindo o desenrolar da partida... Ouvindo?! Xingavam mais do que ouviam. Nessa época eu disse a minha primeira frase, frase chula, mas saborosa de se dizer: Affancullo! (vai tomar...)(Risos)
Você me deu o Bexiga, o barbeiro e a aventura do foot-ball do início do século passado. E também despertou as minhas lembranças. Valeu!
Natale (Palestrino-Parmerense, graças a Dio... (Risos)).

marcia ovando disse...

Momentos e tantos, grandes recordações!
abraço

Miguel S. G. Chammas disse...

Joaquim, a fluência do seu texto quase me fez aceitar a corintianice dele. Porém como verdadeiro "arviverde do parqui antartica" resisti bravamente.
Não conheci o Dante profissionalmente, soube de sua existência por vários comentáriosno bairro e cheguei a vê-lo, velhinho, caminhando pelas ruas do Bixiga.
Casei-me em 1967, e exigi que minha exposa rasgasse a carteirinha de sócia do Curinthia que ela havia ganho do tio Euri quando nasceu e o destino fatídico, depois de alguns anos, para onde me levou?
Fui aplicar meus conhecimentos tecnicos de contabilidade
no clube arqui-inimigo, e lá fiquei por uns bons 16 anos sem me infectar com a torcida fanática.
Coisas do destino!

Soninha disse...

Olá, Ignácio!

Que texto bom!
Com todos estes detalhes do modo de falar dos italianos-paulistanos,fez lembrar da família de minha mãe, uma italianada das boas, com suas conversas e dizeres que mal compreendíamos,pois misturavam tudo e a criançada ficava "boiando".
Coisa boa quano se reuniam para assistirem aos jogos e futebol.
Engraçado que, meu avô materno, filho de italiano,porém torcia para o São Paulo, fervorosamente...meu pai era corintiano, igualmente fervoroso...assistiam aos jogosjuntos e,embora muito chingos por conta do jogo, nunca se ofenderam e dava gosto de ver os dois se darem tão bem, até nas partias de futebol.
Bons tempos.
Valeu,Ignácio!
Obrigada.
Muita paz!

Carmela disse...

Santo Dio! La mia famiglia è italiana. Manca la mia nonna ei miei genitori che parlavano esattamente come...
Lembra-se, Sonia, de minha nona e das nossas brincadeiras de rua?
Sou a Carmela, sua amiga de infância. Gostei de vir aqui. Achei sem querer. Adorei.
Saudade.

joaquim ignacio disse...

Miguel, sinceramente eu não sei onde voce viu algum favorecimento para o Glorioso e nunca por demais louvado poderoso timão do SC Corinthans Paulista no texto sobre o Dante. Aliás, a ilustraçao do barbeiro trabalhando faz lembrar o velho Dante com a única diferença é que ele tinha os cabelos pretos e glostorados e um bigodinho do tipo Amigo da Onça...
O Dante foi uma das figuras icônicas do velho Bexiga.
Ah, sim!... Agradeço suas palavras elogiosas.
Sr. Natale, grazie também!
D. Sonia, meus respeitos!
Ignacio

Wilson Natale disse...

Joaquim, os amigos me chamam pelo nome ou sobrenome. Não há necessidade do "senhor" (risos).
Você é meu novo amigo, então, vai de Natale, ou de Wilson.
"si non, io num ti xamo maise di Joca! Ahahahahahaaaaaaa!
Abração e,mais uma vez, parabém pelo texto!
Natale

Wilson Natale disse...

Io de vorta! Era prá iscreve parabéns pelo texto i cabei iscrivinhando errado.
Abração,
Natale

Arthur Miranda - Tutu disse...

Prezado Ignácio, Se até esse monte de (parmeirenses), gostaram dessa sua história imagine eu que sou corintiano de berço ou de barriga de mãe. Porca miséria, comecei a ler ainda triste com a derrota do Corinthians contro o Palmeiras, nosso maior Rival. Mas a medida que lia sobre Grané, Teleco, Del Debbio, que como você eu só ouvi falar,
Levantei minha cabeça
Botei a mesma no lugar
renovei meu otimismo
no meu timão Alvi-Negro
que segue em primeiro lugar. kkkk
Brigaduuuuuuu Ignácio,
Diferente do seu Chara.
você só traz alegrias
para todos os seus leitores
Sejam eles, São Paulinos, Palmeirenses ou Corintianos.

Modesto disse...

Ignácio, mais um palmeirense pra te cumprimentar pelo escelente texto, muito intressante, au não conhecia esse filme do jogo contra o Bologna. Vou dar um puxão de orelhs no meu sobrinho que é corinthiano roxo, e ele é, tambem diretos da Nike, sempre em contato com a diretoria do coringão.
Mas, vc sabe que o Corinthian foi fundado por italianos, não é? Estão como árabes e judeus, no fim são todos BRIMOS. Parabéns, Joca.
Modesto

joaquim ignacio disse...

Sr. Wilson Natale, prometo que a partir de agora passo a considerá-lo como amigo e, com sua permissão vou chamá-lo de maneira mais íntima e amigável... Wilson, está bom?... ou prefere Natale?
De qualquer maneira, muito obrigado por suas palavras.
PS: Endereço eletrônico de meu blog "Vida, Vidas Vivas": caxindencia.blogspot.com. Estamos esperando seus textos através do e-mail joaquim.ignacio@bol.com.br
Meu abraço agradecido
Ignacio

Zeca disse...

Joaquim,

parabéns pela excelente crônica mostrando os modos e falares de pessoas que moldaram nossa amada cidade e também o nosso país!
Afinal, quem ainda não encontrou pela frente um italiano irritado, estourado, ameaçador? Faz parte da nossa cultura. E você, com seu texto deu vida ao barbeiro.

Excelente texto! Aguardo novos.

Abraço.

Miguel S. G. Chammas disse...

Joaquim, Ignacio ou Joca, saiba que neste espaço somos, todos, livres, das finuras de tratamento.
Aqui senhor, senhora, dona, e outras coisas que o valham, só são usados para pessoas maiores de 100 anos.
Você vai ver, na proxima rodada de redondas, que os membros desta família, se querem bem demais para perder tempo com rococós.
Faça como todos e sinta-se em casa.

joaquim ignacio disse...

Migué, intão tá! Adispois num arrecrama.
Ignacio

MLopomo disse...

Joaquim Ignacio. Um dia passando pelo Bixiga. Vi um Corintiano dizer para um bixiguento barrigudo sentado na calçada da Rua Santo Antonio perto da casa do Agostinho. "Ih Cumo Mi Chiamu, Ciccilo? Bela Merda foi a resposta!"

suely aparecida schraner disse...

Ótima crônica e belo retrato de uma época. Parabéns!