quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Alerta, alerta. Vamos fazer revolução


Que benção pode rtrazer mais um novo amigo, Joaquim Ignácio de Souza Netto, já autor do SPMC, e que nos permitiu colocar seu texto aqui, em nosso querido blog.
Entrego-lhes, com meu carinho de sempre.
Muita paz!

Meu pai, Alcides de Souza Leme, chegou a São Paulo em 1930 ou 31, com seus 18 anos completados e creio ter palmilhado os mesmos caminhos que eu percorreria muitos anos depois. Precisou lutar muito para sobreviver, carregou cestas para as madames nas feiras, foi lixeiro e talvez estivesse se encaminhando para uma vida medíocre, se não fosse a intervenção de um aparentado de meu avô, o maestro Antão, regente da banda da Força Pública:
- Filho do Joaquim Ignácio, lixeiro? De jeito nenhum! Vai entrar pra Força Pública e seguir carreira, 'já se viu’!
Meu pai, então, entrou (ou foi "entrado") para a Força Pública, onde aprendeu a profissão de telegrafista, mas não fez carreira, não era bem seu feitio...
Era 23 de maio de 1932. Ativistas políticos, estudantes, gente do povo, uma pequena multidão se concentra em frente à sede da "Liga Revolucionária" na Rua 24 de Maio, órgão ligado diretamente aos grupos apoiadores do governo de Getúlio Vargas, presidente da República após o golpe da revolução de 1930.
De repente, o "rompe e rasga" intenta invadir o comitê. Tiros, muitos tiros repelem a invasão. Correria, gente ferida agonizando, mortes, as mortes de Martins, Miragaia, Dráusio, Camargo. Alvarenga morre dias depois. MMDC. São Paulo mobiliza-se... O ambiente político está tenso...
Era 9 de julho de 1932. Meu pai está de serviço no quartel da Força Pública da Rua Conselheiro Crispiniano. A soldadesca recebe ordens de se aprontar com petrechos completos, mochila, mosquetões, munição, barraca, ferramentas, num total de 30 e tantos quilos... São informados que farão uma marcha de treinamento... Marcham em passo acelerado até o Brás, até a Estação do Norte. Embarcam em trens que aguardavam na gare. Outras unidades da Força Pública vão chegando...
Ninguém fora avisado, mas São Paulo estava começando uma ensandecida revolução contra o 'status dictatorialis' que havia dois anos imperava no Brasil...
Três meses na Mantiqueira, bloqueio do túnel, as matracas, o frio, as geadas, o canhoneio, os aviões vermelhinhos, a fome (meu pai dizia que chegavam a se alimentar com uma espécie de sopa de raízes, folhas e capim, ou alguma caça ou gado de sítios e fazendas, abatidos a tiros de mosquetão...) e a morte, a morte de companheiros de trincheira, por balaços, por ferimentos infectados, pela pneumonia.
A morte também feriu meu pai da maneira mais violenta possível: na trincheira ele recebeu um telegrama comunicando a morte de minha avó que não suportara saber que seu filho tinha sido enviado para um front de batalha. Morreu com um infarto fulminante.
O telegrama recebido meu pai colou na contracapa de um livro, a "Gramática Expositiva" de Eduardo Carlos Pereira, que ele levava em sua mochila (grande autodidata, estudou sozinho praticamente até seus últimos dias de vida!); até alguns anos atrás, essa gramática esteve comigo, mas, por fim, acabou por se desfazer, infelizmente, tantos anos passados...
No final dos embates, São Paulo estava exaurido, o Estado e a cidade. Meu pai deixa a Força Pública e entra para a polícia civil no cargo de telegrafista.
Os anos passam, casa-se em São Manoel no último dia do ano de 1938. Nasci em Barretos em 1940. Viemos para São Paulo em 1944, quando meu pai iniciou mais uma batalha, agora não só pela sua vida, mas pela de minha mãe e pela minha...
Em 1957, na comemoração dos 25 anos da Revolução Constitucionalista, com lágrimas nos olhos, assisti a meu pai desfilando no Anhangabaú com seus companheiros de trincheira, do túnel, de Cunha, do frio e da fome.
Segui aqueles senhores que marchavam, alguns orgulhosamente (“peito pra fora, barriga paá dentro, seu mocorongo!”); outros, já combalidos, cansados da vida e de viver, andavam apenas, enquanto acenavam fracamente para as pessoas que estavam mais interessadas em recolher as lâminas de papel metalizado que caiam do céu numa chuva de prata...
Na debandada daquele estranho exército de soldados brancaleônicos engravatados, de terno, chapéu e sapatos sociais e que, ao invés de mosquetões, portavam bandeirinhas do Brasil e de São Paulo, encontro meu pai:
- E aí, pai! Como foi? Se emocionou?
- Emoção? Não! Não me emocionei... Só cansei... - Cansou? Como... Cansou?
- É, cansei! Vim em passo marcial da 9 de Julho até quase a São João. Não fazia isso há 25 anos, esqueceu? Resolvi brincar um pouco de soldadinho... Acho que tenho direito...
- Claro, claro...
Em casa, comentou:
- Muita gente que foi homenageada hoje, com medalhas, citações, comendas, passou longe do fogo das armas. Alguns eram escoteiros na época da revolução e estão nas páginas dos jornais posando de heróis, e todos eles, com certeza, recebem uma complementação em seus salários por conta do Artigo 30 que premia ou deveria premiar aqueles que lutaram de verdade... Mas a vida é assim mesmo, qualquer dia desses o país entra nos eixos. Agora vamos dormir, amanhã eu trabalho e você tem o colégio... Vai, vai dormir.
- ‘Tô’ indo pai... ‘Bença’.
- Deus te abençoe. Dorme com Deus...
Meu pai morreu em 7 de julho de 1960, aos 48 anos, dois dias antes de se completar 28 anos daquela madrugada em que ele saiu do quartel para marchar em passo acelerado até a Estação do Norte, naquele 9 de Julho em que São Paulo pegou em armas.
Seus restos estão no Mausoléu do Ibirapuera? Não, não estão, mas deveriam estar.
Gente como meu pai e muitos outros serviram o Estado de São Paulo e a cidade com risco da própria vida. As famílias dos heróis não deveriam procurar o Estado para que lhes fossem prestadas homenagens... Acredito ser obrigação do Estado reconhecer o papel que esses homens e mulheres desempenharam na História e homenageá-los.
Em tempo: minha mãe, D. Zezé, veio a receber um aporte financeiro referente ao "Artigo 30" anos após a morte de meu pai. Atualmente, não sabemos a razão pela qual, não recebe mais...
Palavras de meu pai em 9 de Julho de 1957: “...Qualquer dia desses o país entra nos eixos...”.
Alcides de Souza Leme, um soldado constitucionalista - *19-03-1912

+07-07-1960 Requiescat in pacem. '...bença, pai...

 
Por Joaquim Ignácio de Souza Netto

9 comentários:

Miguel S. G. Chammas disse...

Ignácio, por acaso nos encontramos nas leituras do SPMC. Por acaso fiquei sabendo que muitos anos antes haviamos sido amigos de amigos em comum e que haviamos brincado muito nas terras de Vila Clementino.
Por acaso, não, por acaso não, por merecimento seu, me tornei fã de seus textos e hoje, por satisfação, leio seu primeiro texto editado em nosso blog.
A qualidade do relato é fantástica e nos remete aos tempos de outróra, cutuca nossos sentimentos pátrios e nos revela a indiferença de nossos dirigentes.
Como já tive oportunidade de dizer, seu pai foi um Herói Paulista e você é um Herói também em escrever e sentir no coração as emoções deste texto.
Obrigado amigo!
Volte sempre.

MLopomo disse...

Joaquim Ignácio, me lembro bem de 1957, na comemoração dos 25 anos da Revolução Constitucionalista, foi uma festa incrível, a TV mostrou uma festa cívica jamais visto posteriormente. Parece que não se da mais valor as epopéias do passado. Uma pena que não se reverencia as grandes datas.

Modesto disse...

O soldado constitucionalista, estigma essencialmente paulista, temos, por mérito, o direito de exigir RESPEITO,não só do governo estadual mas, também do federal pois, se temos, hoje a constituição foi graças a herois como seu pai Joaquim. Parbéns, Joaquim.
Modesto

Zeca disse...

Joaquim!

Parabéns pelo texto onde, através da história do seu pai, nos conta, de uma forma emocionada, um pouco da história de São Paulo e do Brasil.
Enquanto não houver uma "revolução" na educação do nosso povo, continuaremos com essa classe política que não valoriza os verdadeiros heróis, pois está preocupada em valorizar apenas seus ganhos financeiros e os dos seus apaniguados.
Mas, por outro lado, enquanto tivermos bons escritores - como você - continuaremos a conhecer e a honrar, esses heróis que, eles sim, ajudaram a construir nossa Pátria!

Parabéns!

Abraço.

Arthur Miranda - Tutu disse...
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Luiz Saidenberg disse...

Justa homenagem, Joaquim.
Seu pai foi um Pai Herói, e deveria ao menos, estar repousando no Obelisco.
Em Campinas, às portas do cemitério da Saudade, há um belo monumento ao soldado constitucionalista, com versos de Guilherme de Almeida. Que começam assim:- Não é túmulo, é berço...é sementeira de um ideal. Vale a pena conhecer. Abraços.

Soninha disse...

Olá, Ignácio!

Seja bem vindo entre nós!
Que alegria poder ter este seu texto aqui no blog... Veio enriquecer ainda mais este pequeno espaço virtual, que é tão bem quisto por todos nós...
Para mim é muito gratificante ler todosos textos que chegam, editá-los, buscar imagens e postar...enche meu coração de coisas boas, conhecendo as belas histórias sobre Sampa.
Lendo seu texto, veio à minha lembranças as histórias quemeu avô maternos nos contava sobre a revolução...os apertos, os perigos, enfim...muitas histórias.
Seu pai foi um herói, antes só para você, mas, agora para todos nós, que estamos orgulhosos igualmente.
Obrigada.
Muita paz!

Arthur Miranda - Tutu disse...

Prezado Ignácio, o aporte financeiro referente ao "artigo 30" deve estar aplicado no Bolsa família, na bolsa do presidiário, ou na Bolsa da esposa,filhas ou filhos de alguém muito "importante" para o nosso País.
Quanto reconhecimento, a muito que em nosso país, só existe heróis e títulos de Rei no futebol, e na musica popular.
Se o seu pai no lugar de defender a Legalidade tivesse gravado um disco
a coisa seria bem diferente,
Parabéns pela bela e comovente narrativa. E que bom te-lo por aqui no Blog, espero que também o tenhamos no Encontro das redondas.

Wilson Natale disse...

Joaquim, nestes tempos em que os hérois vão, paulatinamente sendo esquecidos é muito bom ler sua narrativa.
Ela vai ficando aqui, na Web, para que algum dia, quando os heróis forem valorizados como merecem.
Valeu!
Abração,
Natale