segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

ANDRAUS - 24/02/1972

Onde você estava?...
Parecia um dia como outro qualquer.
Na rua, o Sol; e um calor que mordia a pele. Dia quente. Muito quente!
O povão, suando em bicas, ia e vinha pelas ruas exibindo camisas com os colarinhos ensopados, costas e sovacos molhados. Lenços saiam dos bolsos para ‘dar adeus’ ao suor de testas.
Eu, no escritório, sentado à minha escrivaninha, olhava pela janela, admirando a cúpula de poluição que dava uma coloração amarronzada ao céu. A coisa estava braba.
No escritório, os aparelhos de ar-condicionado roncavam, funcionando a todo vapor. Fora, devia estar a mais de trinta. Viva o ar-condicionado! Mesmo que afetasse a minha rinite e me fizesse espirrar muito. Mesmo que deixasse os carpetes úmidos e exalando no ambiente um cheiro de cachorro molhado. Era melhor estar lá dentro do que fora.
Voltei a minha atenção para o trabalho e esqueci da vida.
Passou um tempo e o chefe veio até a minha mesa. Entregou-me um cheque em branco e uma folha com três textos breves. Era coisa particular do patrão. Eu deveria ir às “FOLHAS” mandar publicar aqueles textos nos anúncios classificados. Olhei para ele, dei um sorrisinho amarelo e pensei: “Filho da...! Por que não vai você que é o puxa saco do patrão”?
Peguei a pasta, o cheque, os textos e sai. Na porta do prédio senti aquela sensação de estar entrando em uma fornalha. A cidade derretia, eu também. Mais próximo da Rua Direita que da Praça Antonio Prado, optei pela Direita. Sai da Rua Álvares Penteado e rumei para o Viaduto. Ia resmungando comigo mesmo: “Calçadas deveriam ser rolantes e cobertas”.
Parecia um dia como outro qualquer, mas não foi...
Os quase quarenta anos que me distanciaram do dia 24 de fevereiro de 1972, não me fizeram esquecê-lo. Foi o choque que se transformou em trauma. Jamais havia visto um incêndio de grandes proporções, “ao vivo e a cores”.
A caminho, ‘feliz’ da vida, eu resolvi, por pura pirraça fazer hora. Gazetear um pouco
. Resolvi “frugar” no sebo da Livraria Calil, na Barão de Itapetininga. Fiquei pouco tempo, pois o ar estava abafado, quente e o cheiro dos velhos livros brigava com a minha rinite. Fui embora. Quase onze e meia! Circulei um pouco pela Ipiranga, comi um sanduíche de pernil no Jeca, tomei o resto da Coca-Cola e fui para a São João onde, passando, prestei atenção aos cartazes do Metro. Entrei nas Casas Pirani para confirmar o preço de oferta da vitrola portátil da Phillips. Preço ótimo! Comecei a fazer plano...
Para gastar é preciso ter dinheiro. Então bello, vamos trabalhar! E caminhei em direção da Rua Barão de Limeira.
A sessão de anúncios da Folha parecia a casa da mãe Joana. Muito abafado, muita gente e muito falatório. Espera e espera. De repente, um cheiro – como dizíamos à época – de corno queimado - começou a impregnar o ambiente. O negócio era esperar. Não sairia dali sem ser atendido...
Guardava os comprovantes na minha pasta quando, de repente, um Boy enlouquecido entrou correndo, gritando para todos:
- “Gente! O Andraus está indo prás picas! Está pegando fogo”!
Rimos dele. Só podia ser piada. E a gente não ia cair nessa! Mas o Boy insistia: “Né brincadeira não, cacete”!
Enquanto ele falava, ouvimos o estardalhaço de sirenes e o barulho das inconfundíveis sirenes do Corpo de Bombeiros.
Saí da Folha e vi uma multidão andando apressada pela rua e carros fazendo manobras de retorno. Segui pela Barão de Limeira, esgueirando-me entre as pessoas, em direção à Praça Julio de Mesquita. Olhei para o alto e vi o negrume da fumaça no céu. Sentia um cheiro forte e sufocante de materiais incinerados.
Consegui chegar até a Praça, mas a Barão estava fechada com uma corda de isolamento. Dali eu vi o Andraus sendo consumido pelas chamas. Estalava, enquanto as línguas de fogo que pareciam ter vida própria avançavam para o topo. Ferragens, vidros, reboco despencavam em meio a Av. São João. Uma fumaça densa e negra brigava com as chamas e as duas envolviam o edifício. Uma garoa fina, provocada pelas mangueiras de alta pressão chegava até mim, assim como o bafo quente daquele fogo que devorava o monólito.
Olhando para o alto, vi no topo do edifício um grupo de pessoas. Cai na realidade. Havia vida naquele prédio! Tinha gente dentro dele! Entrei em pânico. Fui tomado por uma vertigem que quase me fez cair. Respirei fundo e tentei sair daquele estado de ansiedade, impotência e desespero. Minha mente desviou o meu olhar fixado no alto e o direcionou para o t
érreo. Vi então que a Pirani não mais existia. Pensei: “Adeus oferta especial da vitrola Phillips”...
Um simples pensamento tão fútil, banal, fez com que eu me recompusesse. Não podia fazer nada para aliviar aquela situação terrível, a não ser rezar.
Fiquei lá, olhando o trabalho magnífico dos bombeiros que, com toda aquela estratégia de salvamento que me parecera nova até para eles mesmos, trabalhavam alheios ao barulho ensurdecedor do helicóptero, que tentava pousar no teto do prédio.
Quanto tempo eu fiquei por lá, vagando, olhando? Quantas horas? Não sei. Sei que foi uma eternidade.
Cheirando a fumaça, coberto de partículas de cinza, voltei ao escritório e de lá fui para a minha casa. Fui pensando na fragilidade da vida humana e nos por quês existenciais... Por que o Andraus, um prédio tão novo?
Os jornais, a TV e o rádio explicaram todos esses por quês. Não fosse o incêndio do Andraus teríamos hoje muitos casos de “morte anunciada”. Mas não foi bem assim. Outra tragédia estava por vir...

Por Wilson Natale

20 comentários:

Arthur Miranda disse...

Historia muito bem contada Natale, nesse dia e horário eu gravava no estúdio Cruzeiro do Sul na Rua Conselheiro Nebias esquina com a Rua Vitoria um Áudio para um comercial do Baú da felicidade, juntamente com o falecido Lombardi o Jorge Elau e o Ferreira Martins, Acabei assistindo de "camarote" esse triste acontecimento que jurei para mim mesmo jamais assistir novamente como curioso, pois passei alguns anos com receio de subir de elevador alem do quarto andar, principalmente depois do incêndio do Andraus, que aconteceu, pouco tempo depois.
Lendo seu texto, todo aquele horror voltou a me envolver, Parabéns pela historia e a ótima narrativa.

Miguel S. G. Chammas disse...

Pois é Natale, as cenas macabrasdo do fogaréu do Andraus eu não vi ao vivo. Estava trabalhando e não pude assisti-las, mas a outra tragédia a que vc se refere no texto, o Incendo do Joelma, eu assisti por completo, foi no meu bairro, eu, incusive, ajudei a transportar leite para as vítimas.
Infelizmente, nada mais se pode fazer, ainda tenho o cheiro da fuligem em minhas narinas. Que horror.
Parabéns pelo trágico relato.

Soninha disse...

Olá,Wilson!

Eu era adolescente, nesta ocasição da tragédia...Eu havia iniciado um trabalho em uma pequena empresa e lembro-me da notícia chegando pelo office boy da firma. Todos ouvíamos consternados e logo fomos ligando o rádio para obter mais informações sobre o incêndio.
À noite, o telejornal mostrava cenas da tragédia e os jornais enchiam suas páginas com fotos aterrorizantes das pessoas se atirando pelas janelas do edifício em chamas...foi horrivel.
Mais uma lembrança valiosa sobre Sampa...sobre tudo o que nossa cidade é capaz de suportar e superar.
Valeu, Natale.
Obrigada.
Muita paz!

suely schraner disse...

Do 17° andar,da janela do escritório em que trabalhava,eu e meus colegas,assistíamos hipnotizados o desenrolar desta tragédia.Uma hora muito dura. Sensação de total impotência a marcar nossa existência.Belo texto, parabéns.

marcia ovando disse...

Foram momentos de desespero que o mundo todo viu pela TV. Inúmeras pessoas perderam parentes, amigos, colegas.´Tragédia. O seu texto muito bem escrito diz tudo.

Modesto disse...

Natale, eu estava na rua, vendedor do Matarazzo mas, longe do local. O noticiário dos jornais, rádios e TV, ficaram, a semana toda e quase todos os dias, dando notícias a respeito.
Um funcionário do Matarazzo estava no edifício e conseguiu se salvar; não foi nas escadas e nem pro elevador, sabia que morreria se optasse qualquer um dos dois. Muito esperto e com sangue frio, entrou no banheiro,se envolveu numa toalha molhada, arrebentou as vidraças da pequena janela, agarrou-se numa tubulação externa, comessou a descer até encontrar um andar que o fogo, ainda não havia chegado. Com os pés, arrebentou a janela, se cortou, se arranhou, se machucou todo mas, se salvou. Estava no prédio a serviço do Matarazzo, ia aos escritórios da Petrobras, o governo revolucionário havia proibido empresas particulares de trabalharem na distribuição de petróleo e o Matarazzo tinha uma, a IME. O pai dele era um antigo e bastante conhecido juiz de futebol, agora, não lembro o nome.
O Lopomo deve saber.
Seu tétrico texto, Natale, é um rastejar pra um local que um verdadeiro inferno te espera. Muito bem direcionado, vai palmilhando preguiçosamente seu trageto, alimentando a espectativa de um final que todos conhecem, mas, sentem um arrepio ao aproximar-se das Casas Pirani, última olhadasua e de todo mundo, na popular loja. Parabéns, Wilson...é bom! (lembra desse gingle?)

Luiz Saidenberg disse...

Era dia de meu aniversário. Eu trabalhava na Vieira de Carvalho, bem atrás do Andraus. Ouvi falar em incêndio, e, com uma moça da firma, abrimos uma das salas de trás. Entre as explosões dos bujões de gás, vimos um homem cruzando o espaço, rumo ao chão. Ela desmaiou e tive de sustê-la. Em seguida evacuamos o prédio, e fui assistir da rua aquele horror de chamas e rolos de fumaça, que sopravam em direção à Pça. Julio
de Mesquita. Depois de mil voltas, e várias horas consegui chegar em casa. Não havia porque comemorar aniversário nenhum.

Wilson Natale disse...

MIGUEL: Ate hoje eu sinto o cheiro da fumaça do Andraus. Quando eu fiz as fotos que estão no texto, o cheiro me acompanhou. Foi algo traumatizante. Sobre o Joelma, seguido a esste, enviei outro texto.
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

SONINHA: A tragédia do Andraus foi uma advertência para a cidade sobre o quanto era precária a estrutura de prevenção e combate ao fogo. Pena que foi preciso uma tragédia para que se notasse a precariedade da situação.
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

ARTHUR: É difícil para quem viu todo aquele fogaréu esquecer. Foi traumatizante. E mais trauatizante foi descobrir que, na época, aquilo poderia acontecer em qualquer edifício. Foi descobrir o quanto estávamos indefesos.
A fiscalizaçãos dos prédios era quase nula.
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

SUELY: Eis ai o grande trauma. No principio senti o espanto de estar diante de um grande incêndio. Depois a horrível constatação de que havia VIDA naquele edifício em chamas. Gente acuada, buscando desesperadamente salvar sua vida. E o horror de estar nas rua sentindo o forte calor daquele fogaréu e saber que as pessoas dentro do Andraus sofriam um calor mais intenso. Horror e impotência. E a angústia de não se poder fazer nada, a não ser esperar.
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

MARCIA: Realmente foi uma tragédia que São Paulo jamais vira... E que se repetiria mais vezes, infelizmente.
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

LARÙCCIA: Conhecí muita gente que estava o que tinha parentes e amigos que estavam lá. E o depoimento daquele que anos depois viria a ser meu primo (casou-se com minha prima-irmã) deixou-me mais traumatizado ainda.
Quanto as Casas Pirani, muito tempo depois é que "caiu a ficha". Eu estive la, pouco tempo antes de começar o incêndio. Senti um terror enorme, quase pirei de vez! Tanto que quando comprei a tal vitrolinha portátil, optei pela marca "Delta". Olhava para a Phillips e lembrava do Andraus.
O mais estranho, Larù é que a princípio era como se eu estivesse sonhando. Era irreal demais. Virou realidadequando eu ví as pessoas em meio àquele fogaréu.
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

SAIDENBERG: Eu e você no mesmo lugar, quem diria!
Nas duas fotos eu revivi o meu ponto de vista no dia do incêndio.
A primeira, a fonte atrapalhava um pouco a visão (e algumas árvores) e a segunda, onde fiquei por pouco tempo, antes que fechasse a Praça completamente. Felizmente eu não vi quem se atirou do prédio. Tivesse visto, teria um "troço".
Foi um dia triste de aniversário o seu. E que "vela" indesejada você teve...
Mesmo assim, estamos aqui, quase 40 anos depois a relembrar esse dia triste.
Abração,
Natale

MLopomo disse...

O incêndio do Andraus teve algo de bom apesar daquele horror. O heliporto no topo do prédio que evitou que o numero de vitimas fossem maior, o que não aconteceu com o Joelma que tinha o telhado de amianto. Assim mesmo pessoas precipitadas se atiraram do prédio.

Wilson Natale disse...

LOPOMO: Felizmente eu não ví os que pularam e nem os mortose feridos. Só de ver e saber que tinha gente no prédio eu fiquei mal.
O incêndio do Andraus serviu para que melhor aparelhassem contra incêndio os prédios que desde os anos 70 ficam cada vez mais altos.
Abração,
Natale

MLopomo disse...

Não me lembro o nome do juiz citado pelo Modesto. Lembro que, quem tinha um escritorio lá era o presidente do Palmeiras, Paschoal Byron Juliano, que pela proximidade com outro predio conseguiu tabuas, que o levou juntamente com seus colegas(um de cada ves) ao predio ao lado.

Zeca disse...

Natale,

seu texto, muito bem escrito, me trouxe à memória uma das mais dramáticas catástrofes que tive a infelicidade de testemunhar. Estava na Eletroradiobras da Barão de Itapetininga, justamente escolhendo um "toca-discos", quando notei um corre-corre dentro da loja e, curioso, fui até a rua ver o que estava acontecendo. Acabei seguindo a multidão que corria em direção à Praça da República, aos gritos de "incêncio", até petrificar-me no lugar quando, na esquina, pude ver as primeiras imagens do prédio em chamas. No alto, pessoas corriam de um lado para o outro enquanto enormes línguas de fogo subiam de janelas que estouravam, em direção ao topo do edifício, onde um helicóptero tentava, sem grande sucesso, salvar pessoas. De repente, um homem, no auge do desespero, agarrou um cabo, talvez um cabo de eletricidade e pendurou-se na lateral do prédio, tentando descer por ele. O cabo não resistiu e o homem foi lançado no vazio. Essa imagem jamais saiu da minha mente. Depois outro e mais outro se atirando, preferindo uma morte imediata do que o terror de sentir-se consumido pelas chamas. Não aguentei mais e, aos prantos, sai de lá, acompanhando depois, o desenrolar dos acontecimentos, pela televisão. Até agora, lembrando-me disso, não consigo controlar lágrimas que me vêm aos olhos. Foi um espetáculo de horror, terrível para mim, o que dirá para as vítimas que lá estavam!

Abraço.

Wilson Natale disse...

ZECA: Veja que interessante. Acabei de lembrar que, na época, quase todas as lojas estavam fazendo liquidação de vitrolas, radio vitrolas, toca discos e vitrolinhas portáteis e que a Pirani oferecia a portatil mais barato que as outras.
Como já disse, graças a Deus, não vi ninguém despencar do prédio. É que o lado doele que dava para a Julio de Mesquita estava todinho tomado pelo fogo e fumaça.
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

LOPOMO: Não lembro o nome do Juiz. No comentário do Larúccia e disse que meu futuro primo estava la, e justamente nesse escritório do Palmeiras que, me parece, tratava , ou entre outros, de assunto referentes aos sócios e sócios remidos. Lembro que se falou muito dessa ponte improvisada. Meu futuro primo foi salvo pelo helicóptero.
Abração,
Natale.
Ps: Talvez no site do Palmeiras você encontre algo a respeito.