Quando
toco no assunto 'Enfermagem', o texto acaba sendo meio que autobiográfico, não
tem jeito. Sinceramente não quero que alguém pense que sou um sujeito
pernóstico, egocêntrico, metido a besta; a verdade é que eu me conheço, eu sei
quem sou e sabendo como costumo ser, não vou envolver meus antigos colegas
vivos ou mortos, por ordenações éticas da profissão, nas narrativas que costumo
escrever sobre meus tempos em hospitais e empresas. Que fique bem claro: não
sou herói e nem pretendo ser protagonista em nada; apenas eu estava lá quando
dos acontecimentos, só isso! e eu estou aqui para contar um pouco de minha
experiência e minha atuação profissional.
Domingo,
muito sol, quase 14:00h, plantão terminando. Peço para meu colega esperar que
eu lhe daria uma carona até a Miguel Stefano, ou pelo menos até o relógio de
ponto mas ele agradece:
-"Não
precisa não, Juca! Vou subindo à pé ou pego carona em algum caminhão... fico
esperando no relógio... Domingão?... Domingão é dia de mandar umas 'espumosas
pa dentro' com uns tira-gosto de torresmo... vou ficar um pouco no botequim do
japonês..."
-
'Tá muito quente, muito calor e você ainda vai passar pela aciaria e pela
laminação...mas você que sabe!
Trabalhar
em uma siderúrgica é trabalhar no inferno. Fogo prá tudo quanto é lado, ferro
fundido passando sobre as cabeças, fornos a carvão, fornos a gás, altos fornos,
silos, locomotivas, carvão, fumaça, pó de refratários, queimaduras horríveis,
óbitos, Enfermagem do Trabalho atuando sem parar... É trabalho prá macho, no
dizer da mineirada (90% dos tabalhadores em siderúrgicas vêm de Minas Gerais).
Acabei
de escrever o relatório do plantão e fechei o grande cadernão de capa dura ao
mesmo tempo que o telefone tocava:
-
Corre aqui, seu Joaquim, tem acidente na aciaria...
-
O que aconteceu? fala sem gritar, calma... respira fundo...
-
...Tem um eletricista pendurado no trilho da ponte rolante... a cabine está em
cima da perna dele...
-
'Tou indo aí! O engenheiro já está aí?
-
Engenheiro?
-
É...! O engenheiro de segurança... bipa ele, pede prá ele chamar o médico,
cazzo!...
A
situação estava mais feia do que espancar a mãe por causa de 'mistura' na hora
do almoço.
A
ambulância não poderia entrar dentro da aciaria, um galpão enormíssimo e cheio
de máquinas, pistas para a 'corrida' do aço, pórticos, trilhos ferroviários,
fornos, lingoteiras, calor extremo; a 40 metros de altura, a cabine da ponte
rolante parada numa posição estranha; o gancho da ponte segurando uma caçamba
suspensa no ar com aço derretido a 1200ºC e assando, praticamente, o
acidentado, quase que totalmente exposto à radiação. O que fazer? Simples: a)
baixar a caçamba imediatamente até o chão . b) isolar o acidentado com mantas
refratárias. c) prendê-lo ao trilho com cordas. d) preparar um balancim para
baixar o acidentado quando tudo estiver resolvido. e) com o acidentado em
choque, tomar o máximo cuidado ao manipulá-lo durante curativos e medicações
para analgesia. f) afastar a cabine da ponte que, praticamente estava segurando
o acidentado no espaço...
Como
dá para se depreender, tudo muito simples, corriqueiro... O problema era chegar
até lá! Pelas escadas em caracol eu não conseguiria pois a cabine estava a meio
caminho sobre os trilhos; a saída foi fazer uma espécie de ponte feita com
escadas de pintura, amarradas umas as outras e colocadas entre a plataforma de
um alto forno e os trilhos da ponte rolante, num vão solto no espaço de uns 20,
25 metros.
Foi
por essa ponte improvisada que eu consegui chegar até o acidentado me
arrastando pelos degraus, com cinto de segurança, ganchos, mosquetões, mochilas
com material para primeiros socorros, muita vontade de fazer alguma coisa mas
morrendo de pavor. Em determinado momento de minha tormentosa travessia senti o
bafo do Satanás queimando meu peito, estavam colocando a caçamba sobre o
vagonete na ferrovia e o balanço fazia o aço derretido lançar baforadas que
subiam até onde estavamos; olhar prá baixo? Nem pensar...
-
Seu Joaquim, me mate... não vou aguentar muito tempo... pede pro guindasteiro
passar com a ponte por cima de mim 'duma' vez... por favor...
-
Para de falar merda, cala essa boca, meu... já-já a gente tira você desse
sufoco...
A
verdade é que não havia nada que eu pudesse fazer a não ser medicá-lo para dor
e fazer o possível para que ele não perdesse os sentidos, mexendo com seus
brios, fazendo-o reagir à provocações...
O
rapaz acabou sendo retirado pelos bombeiros que trouxeram um super macaco para
levantar a cabine e, em seguida, levado para o hospital que atendia Acidentes
do Trabalho. Seu femur direito foi reconstruido pois fora esmagado e partido em
quase uma dezena de pedaços... De alta no hospital voltou para Minas Gerais
para se recuperar junto à família, e assim a vida continuou por algumas
semanas.
Um
dia ficamos sabendo que ele estava de volta e fazendo tratamento contra
gangrena gasosa na câmara barisférica do metrô no Parque D. Pedro II.
Foi-nos
transmitido pela Assistência Social que na sua cidadezinha, lá em Minas,
estavam lavando a incisão no que restara de sua perna com urina de mulher
grávida. Depois não tivemos mais notícias dele, apenas tomamos conhecimento que
estava aposentado por invalidez e que perdera mais alguns pedaços da perna...conseguiram
salvar alguma coisa...
**************
Cheguei
em casa quase meia noite. A empresa me trouxe em um carro e outro motorista
trouxe minha intimorata Brasilia. Fui recebido pela Odete:
-Ué,
pensei que você fosse morar no emprego!... E ainda me aparece todo sujo, mais
preto do que você já é!... Essa roupa que você está usando já pode jogar fora,
não tem jeito dela ficar branca de novo... a empresa vai ter que te fornecer
outra... cobra deles...
-
'Tá bom, tá bom, Dé... 'tô indo tomar banho... você não quer esfregar as minhas
costas?
-
Não! Suas intenções me parecem ser as piores possíveis!
-
Eu? Com más intenções?
-
É!! Eu te conheço...é assim que os rolos começam!
**************
E
foi assim que eu 'peguei'essa cabreiragem de andar nas alturas, pisando (ou me
arrastando) em superfícies de 30cm de largura...
Ia
esquecendo: a empresa não me deu outro uniforme. Precisei comprar outro, se não
não poderia trabalhar!
Mas
tudo rotina no desempenho da profissão... nada de novo no front ocidental. Como
eu já disse, não sou heroi nem nada, sou até meio medroso (precavido?); as
coisas aconteceram em meu plantão mas poderiam ter acontecido com outro colega.
Sorte dele...
Por
Joaquim Ignacio
6 comentários:
Olá, Ignácio!
Poxa, quanta aventura, heim?!
Mas, mesmo você não querendo ser herói, nem protagonista de nada, acabou sendo o nosso heróis desta história incrivel, juntamente com os bombeiros.
Coitado do eletricista. Tomara esteja bem, até hoje.
E, que tal você esfregar as costas da Odete agora? rsss
Valeu.
Muita paz!
Puxa, Ignácio!
Uma aventura e tanto! Talvez uma espécie de Indiana Jones tupiniquim... risos. É, meu amigo! Cada um protagoniza uma história com o que tem mais à mão! Li sua história com o coração na boca, suspense total, como o são todos os bons contos de aventura. Você poderia escrever um livro. Tenho certeza que faria sucesso!
Abraço.
Amigos, agradeço as palavras elogiosas mas, como já disse, poderia ter acontecido com qualquer um que estivesse de plantão. Para que os colegas imaginem, atuei diversas vezes em situaç~es piores e cheguei a ser intoxicado por monóxido de carbono indo parar no hospital junto com peão que eu resgatei, quase dancei com a mais feia!Sem
trocadilho, trabalhar em siderúrgica é fogo na roupa! No Leite Paulista, por exemplo, os peões vinham ao ambulatório queixando-se: "seu" Joaquim, caiu um pacote de leite no meu pé; não dá mais prá mim trabalhar, vou me queixar no Sindicato, vou por a empresa no pau!(risos)
Procês verem... cada empresa, um tipo de acidente, um tip e peão....
Abraço abrangente do Ignacio
Ignacio, eita profissãozinha porreta sô!
Eu não iria aguentar um dia de trabalho, ou melhor, chegaria no meu primero dia com a carta de demissão no bolso.
Falando sério, já fui Gerente de uma Laminadora de Ferro, ví muita perna perfurada por barras de 3/16"
e autorizei muitos litros de cachaça em substituição ao leite que os forneiros deveriam ingerir.
Mas isso é uma outra historia, a tua já basta paa assustar a todos.
Parabéns
Ignacio, que homem corajoso você foi e ainda é.Sua profissão lhe trouxe grandes experiencias e crescimento. Parabéns! Um abraço.
Partículas de uma profissão tão intensa como emocionante, esbarrando em perigos constantes. Parabéns, Ignácio.
Modesto
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