quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Das doenças de infância, das 16 avós, do verdadeiro Bixiga

Das doenças de infância, lembro de algumas.
Da doença que nos trouxe, a mim e a meus pais, definitivamente, do interiorzão para São Paulo, um problema renal bastante complicado que rendeu internação na Santa Casa, verdadeiramente não lembro, 'cayó en el olvido'; eu era muito pequeno, mas sei que foi coisa séria, quase que bati os sapatinhos de tricot, conforme rezam as lendas que são contadas e recontadas no seio da família Souza Leme...
Tive coqueluche, acho que em 1944, período da guerra, do racionamento de tudo, da fome mal disfarçada. Do cheiro de gás, das náuseas, dos vômitos, da tosse que não cessava e me deixava extenuado, com um cansaço infinito, disso me lembro bem:
- Esse menino está com 'tosse comprida'; precisa levar ele no gasômetro, lá no Parque D. Pedro prá respirar gás. Lá tem 'que nem' um parque infantil, tem balancê, escorregador, tem um jardim e tem um coreto coberto que é prá não tomar chuva se 'tiver' chovendo ou se 'tiver' muito sol... quando tem sol é melhor porque as crianças podem andar um pouco, brincar... leva marmita porque passar o dia lá dá fome...
-... Mas cheirar gás?! Não é perigoso? Toda hora a gente vê desgraças, pessoas morrendo quando tem escapamento de gás... Sai na A Hora, no O Dia, no Correio Paulistano, na A Gazeta, no Diário da Noite, se ouve no rádio...
-... Faz não! Bobagem... Agora, se você tem medo de levar o menino no gasômetro, faz promessa pro Santo Antoninho da Rocha Marmo... Ele morreu tuberculoso, escarrando sangue e com tosse comprida em 1918, no tempo da 'gripe espanhola'; sempre ajuda...
Minha mãe, por via das dúvidas, fez as duas coisas: gás seguido de rezas e promessas pro menino azarado e canonizado pelo povo; prá garantir e arrematar, D. Luzia, uma siciliana de vastos bigodes e uma verruga de bruxa na face esquerda, vinha todo dia fazer uma benzedura, falando orações num italiano ininteligível e bocejando o tempo todo, enquanto aspergia uma aguinha com um galho de arruda sobre minha cabeça e pescoço. A coisa toda funcionou, pois acabei me curando da tal de coqueluche, mas me senti bastante enfraquecido por algumas semanas.
Passados dois ou três anos, acordei com um gosto horrível na boca. Naqueles meses gelados de inverno, anos 1940, meus pais calafetavam todas as frestas da porta e janela com jornais para que o ar frio não entrasse quarto a dentro. Eu dormia numa cama Patente, colocada ao lado da cama do casal, após anos dormindo no chão em um colchão de crina: a cama fora comprada de 2ª (3ª?) mão em uma loja de móveis usados da Conselheiro Ramalho... Fazia muito frio. Nossa cidade de São Paulo, 60, 70 anos atrás, era muito fria, garoenta.
- Mãe, eu acho que 'tô cum febre!
- 'xovê... (as costas da mão em minha testa por alguns segundos. Procura a "pera" para acender a luz...) Meu Deus, como você está quente, como você está vermelho... (chama a vizinha do quarto ao lado) D. Maria Capuano, vem aqui ver meu filho, por favor...
Minha mãe não sabia nada de como cuidar de uma criança, casara-se com 17 para 18 anos e vivera até então em uma pequena cidade no interior, portal do sertão. Aos poucos ia aprendendo a viver; dependia muito das vizinhas...
- Zezé, é sarampo, rosolia, capito?
- Sarampão? Sarampo brabo?
- Ecco!
- Quequeu faço, D. Maria?
-Chama il SAMDU
-"Mas sarampo mata, doutor? Eu sei que o sarampo pode deixar o doente surdo...”.
-"Surdo e mortinho da silveira se não fizer o resguardo direito...
O médico do SAMDU disse que não haveria muito a fazer: baixar a temperatura, banhos mornos; deixou uma caixinha de comprimidos de 'veramon'. "O sarampo, se veio, vai embora, minha senhora e se a criança não quiser comer, empurra a comida... tem de beber muita água"...
Na Ruy Barbosa, 468, coração do Bexiga, moravam 17 famílias de trabalhadores, um cortiço que fazia juz a seu outro nome sinônimo: colméia, um núcleo de abelhas operárias, e eu, como única criança, tinha 16 avós e conselheiras, portanto uma infância maravilhosa, era quase que sufocado de tanto carinho. Tive avós italianas, avós negras, avós mulatas. Na doença, a cada meia hora, uma dessas avós vinha até a porta de nosso quarto: - Zezé, o Inácio tá melhor?
- Não, D. Nazareth... A febre não vai embora e ele não está conseguindo engolir nem água...
- É assim mesmo, mas vai passar.
Ah, D. Nazareth! Mulher do século XIX, com suas 4 ou 5 saias que roçavam o chão, pano cheio de cores amarrado africanamente na cabeça e cobrindo seu pixaim branco como a neve, obrigado!
Ah, D. Maria Capuano, minha avó italiana, de fala enroladíssima, quase que incompreensível, vizinha parede e meia, conselheira e que filava os programas de rádio que nós ouvíamos..., obrigado!
D. Maria Galvão, viúva de um negrão, italiana mãe de filhos mulatos, o Roberto, o Othelo, D. Lidia, D. Celina, D. Ida (que um milhão de anos depois eu cuidei na Neurologia do HC), e do estranhamente loiro de olhos azuis, o Zezinho, também conhecido como Ratinho... Obrigado!
D. Luzia, que benzia em italiano, obrigado!
D. Sebastiana, D. Rosa, obrigado!... Agradeço a todas as minhas avós do cortiço que ajudaram minha mãe, ensinaram receitas de mezinhas, que rezaram por mim, que a minha situação era grave, eu estava morrendo...
Lembro de meu pai chorando, me carregando no colo, me levando para uma área ensolarada. Lembro até hoje do gosto de cabo de guarda-chuva na boca; lembro dos fogos na noite fria, era o mês de junho...
Mas, como disse D. Nazareth, tudo passou e eu comecei a melhorar, bem aos pouquinhos. Num domingo de sol meu pai me carregou até o belvedere do morro dos Ingleses e, lá do alto, vi nossa cidade até Santana e a Cantareira: - Pai, lá o que que é? São aviões, né?
- É, são aviões... Lá é o Campo de Marte...
- O senhor me leva lá um dia? Eu nunca vi um avião de perto...
- Levo sim, levo! Mas você tem de melhorar, ficar bom, com força para andar...
- O senhor está chorando de novo?
- Não, quem disse que eu estou chorando? Olha lá, tá vendo a igreja do Carmo? Você consegue ver as horas daqui?
- Consigo...
Sobrevivi ao sarampo por sorte e por amor de toda uma corte de vizinhos amigos com seus carinhos e orações e não há como esquecer das lágrimas de meu pai e do desespero de minha mãe... Naquele ano morreram muitas crianças vítimas da doença quase epidêmica. Tive sorte.
Não era minha intenção desenvolver esse tipo de narrativa, peço desculpas pelo aspecto quase mórbido do texto, mas as lembranças e as emoções foram muito fortes, não deu para fugir.
O texto não é meu, é de um menino do Bexiga, com seus 6 ou 7 anos, que tinha certeza que iria morrer no dia de São João e cujo estado febril, o levava a delirar:
- Alá um balão, pimpão!... Cai aqui, te dou um tostão!
- Batizei!
- Crismei!
Aos bons tempos do Bexiga solidário. Obrigado!...Mas, estou sozinho, rodeado por todas as minhas lembranças.
De todas as pessoas que citei e nomeei, mais ninguém! Foram-se todos.
Ontem levei minha mãe, com seus 92 anos, para um passeio pelo Bexiga, meu filho Marco Túlio dirigindo:
- Inácio, onde nós estamos?
- No Bexiga, mãe. Olha ali, tá vendo? Nós morávamos lá onde está aquele prédião...
- "Não, esse não é o nosso bairro, não tou conhecendo nada aqui... Marco, leva a gente prá casa... Não quero ver mais nada...'tou cansada, 'tou chateada..."
Paro por aqui, não vou conseguir continuar escrevendo.
Estou com frio, muito frio!
Deixo correr minhas lágrimas de saudade!
 
Por Joaquim Ignácio de Souza Netto

8 comentários:

Soninha disse...

Olá, Ignácio!

Nossa... lembro de algumas situações parecidas como esta.
Pessoas lá de nossa rua, ou mesmo alguns parentes que iam ao gasômetro, rrespirar o gás...
Lembro também das ladainhas e rezas proferidas pelas benzedeiras, em favor dos enfermos.
Valeu, Ignácio! Por sorte você ficou bom naquela época, para nos contar esta história hoje.
Muita paz!

Miguel S. G. Chammas disse...

Ignácio, solidarizo-me com sua mãe.
O Bixiga que nós conhecemos, já não existe.
Outro dia fui almoçar numa Cantina tradicional do Bixiga, cantina essa, dirigida pelo nosso amigo Walter Taverna.
Lembrei que na esquina de cima da rua em que a Cantina da Concheta está instalada, tinha um bar que emprestava a sua parede externa para que o cambista anotasse, alí, as apostas clandestinas feitas nas patas dos cavalinhos do Jockey Club Paulista, a cada páreo que corria.
Hoje com agencias do Jockey espalhas por toda a São Paulo, esses profissionais do jogo não têm mais serventia, e as paredes de mármore voltaram a ficar limpinhas.
É a a vida que prossegue!

margarida disse...

Ignacio, uma historia triste, mas que você conta com muita sensibilidade.A vida seguiu e tudo ficou bem, apesar das mudanças. São Paulo é assim , quando nos damos conta, seus cantos renascem, mas não são mais reconhecidos pelos nossos olhos. Um abraço.

Zeca disse...

Ignácio!

Você já havia publicado este texto aqui? Ou em outro lugar? Tive a sensação de tê-lo lido... e sei que era seu mesmo! Mas não tenho certeza.
Entretanto, mesmo assim, comove e traz muitas lembranças. O Bixiga, realmente, já não é mais o mesmo! Até as famosas cantinas, no auge duas ou três décadas atrás, estão meio decadentes... é uma pena!
Gosto bastante de ler os seus textos e sempre que vejo um, fico contente pelo prazer que sei que me espera. Escreva mais!

Abraço.

Teresa disse...

Também sou do Bixiga, só que da Conselheiro Ramalho, em frente ao Café do Centro. Minha avó também benzia em italiano; era a D. Seraphina e deixou herdeiras nessa missão, pois minha tia Rosa e minha mãe também aprenderam a benzer e as crianças sempre passavam por lá para benzer "as bichas" que, naquele tempo, eram apenas os vermes que quase toda criança tinha.

Modesto disse...

Um panorama do Bixiga com seus personagens bixiguentos ou não, dos anos 40\50\60, época bem diferente da de hoje. Minuciosamente detalhado numa escrita que esbarra na poesia pura. Vc tem um eatilo de abordar ocorrências e eventos com preciosa agilidade, rendendo uma prosa atraente e bem explícita. Parabéns, Ignácio.
Modesto

Bernadete disse...

Cheio de lembranças o seu texto
Tive uma tia com tuberculose. Ela também foi levada ao gasometro,mas não resistiu. Ainda bem que você superou tudo e está aqui relatando essas recordações, que são um retrato das nossas.
Um abraço / Bernadete

suely aparecida schraner disse...

Um belo relato com tanta nostalgia.Parabéns!