sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

A "maledetta" gripe asiática


imagem: vacinação contra gripe asiática em 1957

(Fim dos anos 50)
Noite. Adormeci na poltrona, assistindo a um episódio de “LASSIE”. Fui acordado por minha mãe que me dizia: “Vá dormir na cama”! No televisor, Lassie corria e latia. Sem me interessar pelo fim do episódio, levantei-me e fui para o meu quarto ouvindo a minha “nonna” dizer à minha mãe: “Com sono, a essa hora? Tem coisa errada com esse menino!”
Minha mãe respondeu. Achava que eu estivesse resfriado...
Manhãzinha de frio. Levantei-me mais a contragosto do que costume para ir à escola. Eu, normalmente um devorador, consegui comer apenas uma fatia de pão com manteiga e beber meia “tazza” (xícara) de café com leite.
O caminho da escola parecia alongar-se. Mais eu caminhava, mais a escola parecia distante. O corpo doía, a garganta ardia e a respiração ofegante dava-me um cansaço fora do comum. E que calor! Tirei o pulôver. Suava.
A primeira parte da aula foi uma agonia. Não conseguia prestar atenção ao que a professora dizia. A minha miopia acentuou-se mais e as letras no quadro negro pareciam dançar. Nos meus ouvidos um zumbido enlouquecedor. O meu corpo parecia estar pegando fogo... E que cansaço, meu Deus! De repente o calor que sentia começou a alternar-se com um frio excessivo.
Soa a campainha. Hora do recreio. Levantei-me da carteira e fui para o pátio, andando como se carregasse o mundo nas costas. Sentei na mureta para recuperar o fôlego. Pensei em comprar um refrigerante para matar a forte sede que eu sentia, mas a cantina parecia tão longe e o cheiro da sopa que era servida aos alunos e que sempre abria o meu apetite desta vez embrulhou-me o estômago. É. O melhor é ficar sentado e não fazer nada. Meu “nonno” sempre dizia que para certas situações, a inércia era o melhor remédio.
Fim do recreio. E lá vou eu de volta à classe a passos lentos. No corredor uma professora olha para mim e fica assustada. Aproxima-se e põe a mão na minha testa e diz: “Meu Deus, você está ardendo em febre!” Leva-me pela mão até a diretoria. Ouvido o “diagnóstico” da professora, a diretora avalia a minha situação.
Conclusão: Acompanhado de uma servente da escola cheguei à minha casa. A servente entregou o bilhete da diretora e foi embora. Entrei, fui direto para o meu quarto e desabei na minha cama, sem tirar o uniforme. Minha “mamma” e minha “nonna” foram até mim muito apreensivas. Despiram-me e me enfiaram num pijama de flanela.
Minha mãe, boa conhecedora do filho que tinha, começou a me metralhar no dialeto napolitano: “Que porcaria você andou comendo dessa vez? Não disse para você não abusar dos sorvetes? Mas não! Você nunca me ouve. É nisso que dá quando você me desobedece. Fica doente...” Minha “nonna” pediu que minha mãe se calasse: “Calada, Annamaria! De moleques eu entendo”. Matriarca cansada de guerra, mãe de vinte filhos (dois pares de gêmeos) valendo-se de sua autoridade e experiência, disfarçando a apreensão com um otimismo forçado, aproximou-se de mim. Disse-me com um sorriso nos lábios: “A vedé cos’accade cu té.” (Vejamos o que está acontecendo contigo). Examina que examina. Nada! Vovó “diagnosticou” apenas o óbvio: febre alta. Desistiu e pediu à minha mãe para ir buscar o farmacêutico, lá na Rua Bresser.
O farmacêutico entrou no quarto e começou o exame. Meteu a espátula na minha boca e examinou as minhas amídalas e garganta. Ficou um tanto apreensivo. Começaram as perguntas sobre os sintomas. Eu respondi. Ele, então, enfiou o termômetro debaixo do meu braço.
Nesse tempo de espera, minha “nonna” começou a palpitar sobre a medicação: Quem sabe, uma Cibalena, um Melhoral para baixar a febre. Talvez, um supositório... Eu então, levantei a cabeça, arregalei os olhos, e gritei a todo pulmão: “Nu cullo mio, nissu’mmetterà niente!” (No meu traseiro ninguém vai enfiar nada!) Rindo, o farmacêutico retirou e consultou o termômetro: quase 40 graus! Olhou para minha avó e disse: Pode chamar “u dottore” (o médico) para confirmar. O menino está com a Gripe Asiática!
O médico que atendia as famílias do quarteirão veio e confirmou o diagnóstico. E avisou que “a Gripe Asiática era uma epidemia. Portanto, contagiosa”. Enquanto falava, virou-me, abaixou a minha calça e aplicou a mais dolorosa injeção que jamais tomei na vida. Enquanto o líquido penetrava, eu fazia a “trilha sonora”: Gritos, choro e uma enxurrada de palavrões... O médico escreveu a receita, avaliou o tempo de repouso e foi embora.
Depois de quatro dias, eu já estava em pé. Fraco, “um bagaço” , mas em pé! Porém, como o médico me havia prescrito uma semana em repouso eu tive que ficar em meu quarto para evitar a recaída, ou contaminar os outros.
E a Gripe Asiática derrubou muita gente. As ruas ficaram praticamente desertas de crianças. Saia-se apenas, por necessidade. Em todo o mundo milhões de pessoas morreram por causa dessa gripe, ou porque ela agravou outros problemas de saúde.
Na minha casa a Asiática fez um estrago. Meu irmão foi o caso mais grave: durante dois dias delirou presa de uma febre de 40 graus, que não cedia. Ele era vigiado dia e noite, temendo-se uma convulsão. O terceiro a cair foi o “nonno”. Sentiu-se mal na rua e foi parar no Pronto-Socorro. Diagnosticado e medicado, voltou para casa para curtir a Gripe. Papai e mamãe, sem maiores problemas, passaram pelos incômodos e desconfortos da Gripe Asiática.
Tio Amedeo sentiu-se mal no trabalho. Seu corpo doía tanto que ele ficou travado. Chegou em casa carregado pelos colegas de trabalho. Assim que entrou e me viu, começou a me xingar e amaldiçoar por eu ter trazido a peste para dentro de casa. Prometeu-me, logo que se curasse, iria chutar o meu “rabo” até o fim do mundo.
Vovó foi a última a cair. Mesmo febril, com dores no corpo, insistia em arrastar-se pela casa a fazer o serviço. Foi preciso ameaçar amarrá-la na cama, interná-la na quarentena Santa Casa, se não se cuidasse. Rendeu-se.
Antes não tivesse se rendido! Vingava-se por estar presa ao leito impedida de cuidar dos afazeres da casa e de nós. E de seu leito de convalescente, não permitia que o dia-dia da casa fosse interrompido. Aos gritos, em dialeto napolitano, dava ordens. Exigia que lhe prestassem contas sobre tudo. Até a chegada da Asiática, nunca vira a “nonna” de cama. E, entre seus mandos e exigências nós íamos resistindo bravamente. Afinal era a “nonna”! Era a mulher que dirigia a nossa casa – nossas vidas - com experiência e sabedoria. E nós, nos sentíamos perdidos sem ela.
Assim como veio, a “maledetta” Gripe Asiática se foi, sem deixar marcas ou sequelas importantes. Não deixou saudades, mas deixou lembranças. Pelo menos para mim.
Zio Amedeu não chutou o meu traseiro até o fim do mundo. Assim que melhorou foi até a edícula, onde eu estava engraxando os sapatos. Agarrou-me por trás, levantou-me do chão e enfiou-me no tanque cheio de água, onde as roupas estavam de molho...


Por Wilson Natale

14 comentários:

Soninha disse...

Olá, Wilson!

Esta e tantas outras pandemias, vinda de longe, fizeram os paulistanos e tantos outros brasileiros sofrerem.
Situações pelas quais passa a humanidade e, mesmo assim, ainda não se valorizam as pesquisas cinetíficas que buscam meios para salvar vidas e dar melhores condições de vida a todos nós, não é mesmo?!
Que situação a sua, neste história, heim?!
Valeu!
Muita paz!

Bernadete disse...


Natale,Eu era criança,mas lembro-me de como essa gripe nos assustava. Muito porque,meus avós maternos,comentavam sobre a gripe Espanhola de 1917,que causou a morte de muitas pessoas.Hoje temos a gripe suina, mas o que me deixa mesmo preocupada é a Dengue. Eu já tive e,caso seja contaminada novamente,será Dengue tipo dois, o que significa... Dengue hemorrágica. Durma com um barulho desse...
Um abraço. Bernadete

Zeca disse...

Natale!

Saudade dos seus textos!

A gripe asiática pegou quase todo mundo lá em casa! Começou comigo, depois meu irmão, minha mãe, meu pai e, por último, minha avó materna. Foi a primeira vez que a vi doente! A segunda, muitos anos depois, foi quando ela resolveu partir para o outro lado da vida.

Não me lembro de mais detalhes, como você, mas lembro bem de todas as histórias das pessoas associando-a à gripe espanhola que, no início do século, causou tantos estragos na Europa.

Como sempre, mais um belo texto que nos transporta para o passado, numa viagem de saudade e de encantamento.

Abraço.

Arthur Miranda disse...

Natale, bom te-lo de volta, gosto de suas historias. Não cheguei a ser contaminado pela Asiática, fui vacinado junto com minha família na campanha de vacinação feita se não me engano na década de 60, mas vi muita gente pelas vizinhanças passando pelos maus momentos como você e seus familiares. Grande abraço.

margarida disse...

Natale, lembro-me de ouvir desta gripe, mas lá em casa ninguém a pegou. Acho que já tinha vacina.Minha filha caçula morou cinco anos no Rio e quando veio para Sampa, pegou Dengue. Que estrago ela faz nas pessoas! Assim vamos caminhando e mesmo que uma "epidemia" vai embora outra logo vem, como é o caso da suína e da dengue. Muitas vezes elas são não assumidas pelo governo e pouco divulgadas na sua real situação, mas causam grandes traumas e danos a população.Olha só as marcas que ficaram em você!Muito bom seu texto e sua historia. Um abraço.

Laruccia disse...

Natale, o gostoso da gripe asiática é ela proporcionar narrativas como esta. Quando vc fala da "mama" da "nona" de toda parentada, envolvida, quer queira ou não, que saudades que me vem sem ser convidada.
Em matéria de gripe, Wil, não é pra mim "gambá" (como diziam os barezinhos do Braz), a última acho que foi quando ia no Romão Puiggari, década de 40. Inflamação na garganta, sim, dessa eu era vítima. Não podia engulir nada. Quando o médico examinava, dizia pro meu pai: Seu Bartolomeu, vamos esperar desinflamar e depois, tirar as amídalas fora. Assim como vc defendeu seu "fiofó", defendi minha garganta. Nunca, e até hoje estou com elas. Parabéns Natale, un bacio in testa.
Laru

Miguel S. G. Chammas disse...

Natale, toda epidemia é maléfica para a população. Essa danada da asiática tambem visitou o mimovel da Rua Augusta, 291 e infectou eu, meu irmão, meu primo, minha prima, minhas tias e até meu pai, só não teve força com minha mamma. Ela num si dexô derrubá, tinha di cuidá de nois tudo.

Wilson Natale disse...

Pois é, Soninha.
Hoje valoriza-se as estrêlas globais,os jogadores de futebol, as mulheres fruta, etc..
Aqueles que lutam, às vezes por toda a vida, pensando na saúde do próximo, nunca são lembrados. Daí, nuca serem esquecidos. Eis a grnde ironia de um mundo consumista e materialista.
A Asiática fez um belo estrago.Mas também lembranças que, no momento não eram, mas tornaram-se divertidas. Como o meu irmão, variando na febre alta, passava o tempo todo irradiando jogos de futebol, como sempre fazia, quando jogava botões.E, claro, o meu tio, birrento como Deus gostava, colocou-me "de molho" junto com as reoupas, no tanque. (risos)

Natale

Wilson Natale disse...

BERNARDETE:
As amigas de minha avó,quando vinham visitá-la no seu leito de convalescente, contávam muitas histórias sobre a gripe espanhola. Eu ficava assustadíssimo!
A Dengue é um caso sério! Pena que o povo não entende que a sua participação é importante para erradicar os tais AEDIS AEGIPTE (EDIS EGIPTE - pronúncia certa).

Natale

Wilson Natale disse...

ZECA:
Saudade dos teu textos também! Vê se cria ânimo e coragem e escreve, homem!
Realmente a Asiática assustou muito, pois tinha sintomas semelhantes a Espanhola, só que mais amenos.
E o fato de eu lembrar da "maledetta" foi mais pela vingança do meu tio, que "testardo" (cabeça dura) culpáva-me pela "peste". (risos)

Escreve, homem! Mande-nos alguns textos.

Abração,

Natale

Wilson Natale disse...

ARTHUR:
Você foi um dos sortudos. Eu peguei a dita-cuja no meio de 1957 e a vacina apareceu no fim do mesmo ano.E, pasme! Era uma vacina experimental que deu certo!
Valeu!
E, repito aqui, o que escrevi ao ZECA:
Mande-nos textos, homem! Também estou com saudade dos teus textos.

Natale

Wilson Natale disse...

PERAMEZZA:
As epidemias são muitas e quase não se ouve falar delas.De repente elas viram uma bela pandemia e todos, contaminados, tomam conhecimento delas.
O caso da DENGUE é um caso à parte. Todos sabem que ela existe, sabem dos procedimentos para evitá-la e, no entanto, poucos agem para preservar a saúde e a saúde dos seus vizinhos. Pena.
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

LARÙ, carissimo:
Você mi tava cum GRUPE! Epidemia que matou muitas crianças nos anos 40 e 50. Só perdia para a POLIOMIELITE (Paralisia infantil).
Você fez bem em fincar o pé e não deixar tirar as suas bolas... Ahahahahahaaaaaa! As Amídalas, claro!... Se bem que no nosso tempo eram AMIGDALAS.
Tenho as minhas até hoje! Duas a três vezes por ano elas inflamavam. Mas, a conselho do próprio médico, não tirei "as bolas". Ele disse ao meu pai que elas eram importantes detetores de qualquer infecção,pois eram atacadas primeiro. E, olha que nos anos 50 era uma "epidemia" de operação de amídalas!
Que bom que você não pegou a maledetta! Você foi um sortudo, como o meu tio-avô Isaìa que beirando os oitenta visitou a todos nós e não pegou a Asiática.
Repito o que disse ao ZECA e ao ARTHUR: Quero ler os teus textos!!!
Scrivi, bello. Scrivi almeno uno!
UN bacione in testa
Natale

Wilson Natale disse...

MIGUEL:
A gripe Asiática era estranhíssima. Uns, de um dia para o outro caíam de cama, com cara de quem ia morrer a qualquer momento. Outros, como meu pai e minha mãe, pareciam estar com uma gripe forte.Meu tio Amedeu, na cama, gritava de tanta dor nos músculos e nos ossos... Vai se entender essa gripe!
Ela era um pouco como a dengue que, ora se manifesta como um simples resfriado, ora como uma gripe forte.
Valeu, Miguel!
Dia 20 tá chegando. E eu volto a SAMPA!
Abração,
Natale