Este texto vai como agradecimento para o
meu amigo Giggio, que me mandou um e-mail de Natal, com a Befana, e também para o
Saidenberg, que conhece a Befana, a quem reenviei o dito e-mail. Eles são os
responsáveis por despertar a esta Memória que envio ao Memórias de Sampa.
Dona Lídia, aos gritos, contou
tudo para a minha avó.
Vovó, aos gritos, deu-me uns
bofetões e disse-me que iria me dar um “bom remédio” para “curar” a minha boca suja
e foi encher uma colher de “zafferano” (açafrão) em pó.
Vovô disse à vovó que ele
prepararia o “remédio”. Cortou um pãozinho ao meio, regou com azeite e colocou
uma pimenta vermelha bem grande. Veio até a mim e com um sorriso e uma
piscadela e me disse:
_ “Coma tudo! Não quero ver nem
uma migalha de pão”!
Bendito vovô e pobre vovó que,
atribulada com os problemas da casa, da vida, não percebera que vovô sabotara o
seu castigo.
Como bom calabrês, o “nonno”
adorava pimenta! E, aos poucos foi nos acostumando a comê-la. Alguns netos
detestaram, outros adoraram. Eu até hoje gosto!
Peguei o pão com pimenta, enchi
uma garrafa de guaraná caçula com água e fui para o portão.
Lá estava eu, lágrimas nos olhos,
sentado no degrau do portão de casa quando o Giggio chegou querendo saber o que
tinha acontecido.
Contei a ele...
Eu estava brincado com os amigos
quando chegou aquele maldito moleque do “Trento” (trentino), o Lorenzo. Veio
tentado se divertir à minha custa. Com ares de deboche, perguntou:
- Você é Natale, não é?
- Sou!
- Então, seu pai é Natale!
- Sim!
- Então, você é filho do “Babbo
Natale” (Papai Noel, em italiano)!
- E daí?...
- Daí, que eu queria saber se é
verdade que seu pai tem o “saco” de pano...
Calou-se e ficou me olhando com
aquela cara de bosta que ele tem! Não deixei barato e respondi na lata:
- Se o “saco” dele é de pano, eu
não sei. Quem pode te dizer se é de pano ou não é a sua mãe! Pergunta pra ela!
- Você está chamando a minha mãe
de “putana”, ta...?
- Não! Estou chamando de “tróia”
(porca, prostituta da mais baixa categoria)!
Depois disso, o Lorenzo deu-me
uma tremenda bofetada e eu dei-lhe um pé na canela. Rolamos pelo chão aos
socos. Ele aproveitou-se de um meu descuido e mordeu meu braço e, enquanto ele
mordia, não titubeei: Dei-lhe uma tremenda mordida na orelha! Quase “arranquei
ela”. O Seu Tonino, que vinha passando, nos separou e o puto do Trentino correu
pra casa dele e foi contar pra mãe. E claro, a “tróia” da Dona Lídia veio aqui
fazer escândalo...
Solidário, o Giggio metia o pau
no Lorenzo e na “tróia” da mãe dele. De repente, perguntou:
- Cos’ca mang? (O que você está
comendo?)
- Pão com pimenta e azeite.
- Delícia! Dá um pedacinho?
Dividi o “sanduíche” com ele.
Giggio olhou a garrafinha de guaraná e disse:
- A pimenta é da boa, mas a água
está acabando.
- Pega água na torneira do
jardim...
Ficamos a comer em silêncio. De
repente, o Giggio começou a rir e me cutucando, disse:
-Quem mandou você ser Natale?
Todo ano, no mês de dezembro é a mesma coisa. Tem sempre “nu pezz’e merda” (um
merdinha) pra fazer as mesmas piadinhas de sempre e arrumar brigas... começou a
gargalhar – O ano passado... O ano passado, você mandou a Lucìllia pedir pra mãe
dela vir “conferir...” e disse também que seu pai ficaria muito contente se a
Lucìllia mesma fosse “conferir”. Não esqueço a cara dela até hoje!
Desatamos a rir.
E a rir fomos lembrando o quanto
o Natal era confuso. Nunca entendíamos quando era o Dia de Natal. Sem entender,
sem que ninguém nos explicasse, por puro interesse “interesseiro”, vivíamos o
Natal em três tempos nessa nossa vidinha de “oriundi”, filho dos imigrantes...
O meu Natal “eram” três: Natal,
Reis, Epifania. O Primeiro comemorado a 25 de dezembro, os dois últimos, no dia
6 de janeiro.
Os imigrantes assimilaram o Natal
sem deixar que se perdesse a tradição. Mas poucos explicavam aos “oriundi”
(filhos) esse exagero de comemorações. E essa tríade natalina sempre
causava-nos alegrias e agonias.
As alegrias ficavam por conta dos
muitos presentes. As agonias ficavam por conta dos “presenteadores” que,
invisíveis, policiavam constantemente os nossos atos. Vai que um veja algo que
os outros não viram e conte...
Mamãe e vovó chamavam a minha
atenção, com os seus alertas em três tempos.
“Olha essa boca! “Babbo Natale”
(Papai Noel) está anotando tudo!... ”
“Malcriado! Este ano os Reis
Magos vão deixar terra, em vez de doces para você”!
“A “Befana” está vendo tudo, seu
malcriado, boca suja, preguiçoso. Você está fazendo a pobrezinha chorar... Ela
vai deixar cinzas no teu sapato”!
Papai Noel e o Reis, ao que
parecia, a gente controlava. Mas, a Befana era um caso moral, emocional; um
caso de amor. Ninguém propositadamente ousava magoar a velhinha. A “Beffana”
(Bêfana, como pronunciam os napolitanos) era “la buona strega” (bruxa boa)
velhinha que protegia as crianças e as educava com corretivos morais. Invisível
e sempre vigilante, era ela quem cuidava da nossa saúde, protegía-nos contra os
males e dava-nos os bons sonhos. Se mau menino, ela nos dava os pesadelos. E,
no dia 6 de janeiro, em vez de docinhos e guloseimas, ela deixava cinzas nos
sapatos dos maus meninos.
Quando criança, acreditava que a
minha avó era a Befana. Depois, passei a acreditar que vovó, possessiva quanto
aos filhos e netos, não deixaria a Befana nos fazer essa desfeita. Então, entrava
silenciosamente no meu quarto e retirava o “montão” de cinzas, limpava o meu
sapato e nele deixava os caramelos e docinhos.
Um “bom” menino como eu, tinha de
desconfiar, não é?
Em 1969, “mudaram a agenda” da
minha amada Befana. Mudaram a Epifania. Desde então, ela faz as suas visitas
nos segundo domingo, após o Natal.
E, eu, o ”bom” menino cresceu e
ainda guarda dos seus velhos Natais, os presentes que ganhou: O Amor, que lhe
deu o “Babbo Natale (Papai Noel), a espiritualidade, que lhe deu os Reis e a
solidariedade humana que lhe deu a Befana.
Felizes Natais a todos!
Por Wilson Natale
23 comentários:
Natale, quantas estrrepolias fez esse menino traquinas, no Natal e em outras festas dosanos atrás.
Apoiado por um tio também pilantra quem não haveria de fazer tais peripécias?
É muito bom te ler e curtir essas estórias. Aliás reitero o que já disse diversas vezes, "vai escrever bem assim lá em casa...."
Ah esqueci do mmais importante: "Bom Natale...."
Olá, Wilson!
Poxa...que saudade ods tempos em que acreditávamos piamente em tudo o que nossos pais e avós falavam...suas tradições, suas lendas, suas crendices...
Hoje sei que eram verdadeiros referenciais para construirem o caráter de seus filhos e netos, dando-lhes os moldes do que era certo ou errado.
Era uma força psicol[ógica tão grande que as crianças jamais ousavam desobedecer, não é mesmo?!
Quantas vezes minha avó nos contou sobre estes seres mágicos, que castigavam ou que ajudavam as crianças, de acordo com o procedimentos das crianças!!!
Tempo bom, lá distante, mas que nunca esquecemos, né?!
Obrigada, Wilson.
Buon Natale e Felice Anno Nuovo!
Buone Feste!
Tanta pace!
Que belo texto Natale, que me leva de volta, aos meus tempos de criança, parabéns. E eu quero fazer a inscrição minha e de outra pessoa para aquela palestra no dia
04 de Março lá na Avenida Nova Cantareira, já te enviei um e-mail e até o presente momento continuo sem a resposta.???
Natale, antigamente os castigos eram severos e duros, por isso eu ficava sempre muito boazinha para não receber nenhum...rsrsr. briga de moleque tudo bem, mas não fala da mãe, se não o bicho pega não se mesmo!Muito bom conhecer você moleque e apesar de tudo veja o que ficou: amor, solidariedade e espiritualidade. Um grande beijo para todos vocês e um Feliz natal.
Nesta escrita tive alguns errinhos, mas acho que dá para entender.
Miguel,
Um "raça ruim" como eu tem muitas histórias boas e histórias porcas para contar... Risos
Ainda hoje, nessa época fazem bricadeira comigo.
Abração,
um Felissíssimo Natal!!!
Natale
SONINHA:
Estas personalidades invisíveis serviam a nos educar.
Mesmo, passado o tempo, não mais acreditando, elas ficaram no meu imaginário. Mesmo fictícias elas deixaram em mim a lição de que somos causa e consequência dos nossos próprios atos. De que a punição ou recompensa está em nós mesmos.
Um Natal de paz!
E muito obrigado por ser a pessoa que você é, recolhendo com carinho as nossas memórias e lembranças.
Deus te abençoe mais e sempre, pela sua paciência de dedicação.
E abençoe ao Miguel, por toda a sua força e dedicação nesse maravilhoso execício de fraternidade e amor.
Abração,
Natale
ARTHUR:
Obrigado pelo comentário.
Eu confiro todos os dias os meus e-mails e, confesso, não recebi esse a que você se refere.
Manda de novo!
Um Natal de muita paz!
Abração,
Natale
MARGARIDA:
Como toda "boa" criança, eu deixava a boca suja, os palavrões para a rua. Em casa eu representava o bom menino educadinho.
Mas, na rua... Sái debaixo! Risos.
Tudo isso foi um grande aprendizado. Hoje o moleque controla muito bem a boca, embora ainda diga cobras e lagartos em pensamento... Ahahahaaaaa!
Tudo foi aprendizado, decantação para uma vida de certeza do que é bom ou ruim.
Muita Paz neste Natal. Muita alegria!
Abração,
Natale
Wilson,que inveja tenho por não pertencer a uma família italiana, e assim poder fazer três comemorações natalinas.
E todas muito boas, sem dúvida.
O Babbo Natale, I Tre Re, e last but not least, La Beffana.
Que só poderia mesmo ser coisa de Nonna.
Ma che importa, ho, proprio cosí, un vero cuore roano.
Bela narrativa, e feliz Tri NatalE!
Scuzzi! Voleva dire un vero cuore roMano!
Buon Natalle, quero que vc saiba que a Epifânia, 6 de janeiro, quando nasceu meu 4ºfilho, Marcello, em 1968, nesse dia, coloquei no sobrenome dele, "Reis", além do Laruccia, evidentemante, (e ele até hoje não se conforma, não tenho nenhum parente com este sobrenome. Conto a ele que os presentes de Natal, eu ganhava só no dia 6 de janeiro. Dizia que ele era, pra mim um presente de Deus e até hoje ele tem se mostrado a altura dessa espectativa, graças a Deus.
Seu cativante texto, Natale me trouxe estas lembranças. Quando via os outros gsrotos, que não eram bareses, "frastieri" (forasteiro) com brinquedos natalinos, eu não me conformava. Pedia aos meus pais o por que dessa diferença de datas. E eles esplicavam que Jesus ganhou os presentes dos Reis Magos no dia 6 de janeiro. E quando fazia os presépios (eu era bom nisso) aproximava as imagens dos trio real na mangedoura.
Gostei da resposta que vc deu a respeito do "saco" do Babbo Natale, formidável. Sua escrita é um doce nas amarguras enfrentadas nos dias que correm. Vc colaborou com essa dóse de bons momentos, Wilson, muito obrigado. Bom Natal a todos de sua casa e um fim e princípio de Novo Ano de 2012, preenchendo todas as lacunas de sua espectativas. Um forte abraço.
Laru
SAIDENBERG: Os presentes mesmo - os briquedos, recebíamos no Natal. Reis e Epifania recebíamos as guloseimas: Os Reis deixavam-na em um sapato e a Befana no outro. E te digo: nunca dava certo deixar dois pares de sapatos... Ahahahaaaaa!
A te, tré volte Buone e Felice Natività
Abração,
Natale
LARÙ, carissimo:
Que bom que meu texto serviu a alegrá-lo!
Hoje é só Natal. Antes nós, os "oriundi" ficávamos confusos com tantas comemorações.
Em casa, ganhávamos os brinquedos no Natal, mas a data mais importante era o Dia de Reis e a Epifania.
E eu só lamento que os REIS não tenham deixado ouro no meu sapato...Ahahahaaaa!
E diga ao seu filho para se conformar. Poderia ter sido pior. Você poderia ter-lhe dado o nome de Epifânio dos Reis Larùccia...Já pensou?! Ahahahaaaaaa!
Um Natal de muitas alegrias, saúde e paz a você, Signora Myrtes e a todos os seus!
Abração natalino,
Natale
Que beleza de textos que prende a gente e nos leva junto nessa viagem e assim começa rolar um filme em nossa cabeça.
Apesar de descendente da velha bota, desconhecia toda essa lição que vc nos deu.
Depois de ler seu texto aprendi tanta coisa nova nos seus relatos.
Buono Natale
Luigy
LUIGY: A Mooca foi, até meado dos anos 60, mais que um bairro, um feudo italiano. Dai a forte ligação com as tradições do velho mundo e da Itália. Daí também essa mistura de comemorações.
Aqui, ainda hoje, por exemplo é comum desejar-se um eliz dia dos pais em março, no dia de São José.
Abração,
Natale
Adorei a sua crônica. É tão bom ler e reler além de aprender. Abração.
Valeu, SUELY!
Na crônica vai um pouco do moleque e seus transtornos pelo sobrenome Natalino e as festas que o alegravam nos fins de ano.
Vivência, memória e história a homenagear também as gerações dessa Mooca ítalo-brasileira.
Abração,
Natale
Não nega o sangue latino heheheehehe,"menino esquentado". Texto adorável,muito bem escrito. Feliz 2012.
Abraços
CIDA: O sangue calabrês misturado ao napolitado, só podia dar num moleque mal-criado, desbocado e esquentado... Ou então, com tendência a ser membro da MAFIA... Ahahahahaaaaaa!
Abração,
Um 2012 cheio de alegrias!
Natale
Natale!
Como sempre, um belíssimo texto, cheio de referências e de ensinamentos para aqueles que, como eu, não são descendentes de italianos e não conhecem suas tradições!
Acabo de lê-lo, pois voltei para casa apenas ontem.
Hoje é véspera de Dia de Reis e há quem comemore o NatalE neste dia. Portanto, que a Beffana nos visite, a todos e, com os três Reis Magos, nos presenteie, pois as malcriações infantís já estão bem longe de nós, não é mesmo? Afinal, aos "velhos" tudo é perdoado... Ho, Ho, Ho!!!
FELIZ 2012!
Abraço.
ZECA:
O problema não somos nós os velhos, mas - graças a Deus - a criança que existe em cada um de nós. Ahahahahaaaa!
No meu caso, tenho a impressão que os Reis, em vez de guloseimas, vão deixar um fardo de alfafa no meu sapato... E a Befana, em vez de doces e docinhos, nem cinzas deixará no meu sapato. Vai deixar sim carvões em brasa. Ahahahahaaaa!
Um Feliz Dia de Reis, uma Feliz Epifania à moda antiga (agora é comemorada no segundo domingo de janeiro) E UM 2012 CHEIO DE PAZ, SAÚDE E PROSPERIDADE.
Natale
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