quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Papai Noel, Reis, Befana e o Transtorno de Ser Natale no “Natale”

Este texto vai como agradecimento para o meu amigo Giggio, que me mandou um e-mail de Natal, com a Befana, e também para o Saidenberg, que conhece a Befana, a quem reenviei o dito e-mail. Eles são os responsáveis por despertar a esta Memória que envio ao Memórias de Sampa.

Dona Lídia, aos gritos, contou tudo para a minha avó.
Vovó, aos gritos, deu-me uns bofetões e disse-me que iria me dar um “bom remédio” para “curar” a minha boca suja e foi encher uma colher de “zafferano” (açafrão) em pó.
Vovô disse à vovó que ele prepararia o “remédio”. Cortou um pãozinho ao meio, regou com azeite e colocou uma pimenta vermelha bem grande. Veio até a mim e com um sorriso e uma piscadela e me disse:
_ “Coma tudo! Não quero ver nem uma migalha de pão”!
Bendito vovô e pobre vovó que, atribulada com os problemas da casa, da vida, não percebera que vovô sabotara o seu castigo.
Como bom calabrês, o “nonno” adorava pimenta! E, aos poucos foi nos acostumando a comê-la. Alguns netos detestaram, outros adoraram. Eu até hoje gosto!
Peguei o pão com pimenta, enchi uma garrafa de guaraná caçula com água e fui para o portão.
Lá estava eu, lágrimas nos olhos, sentado no degrau do portão de casa quando o Giggio chegou querendo saber o que tinha acontecido.
Contei a ele...
Eu estava brincado com os amigos quando chegou aquele maldito moleque do “Trento” (trentino), o Lorenzo. Veio tentado se divertir à minha custa. Com ares de deboche, perguntou:
- Você é Natale, não é?
- Sou!
- Então, seu pai é Natale!
- Sim!
- Então, você é filho do “Babbo Natale” (Papai Noel, em italiano)!
- E daí?...
- Daí, que eu queria saber se é verdade que seu pai tem o “saco” de pano...
Calou-se e ficou me olhando com aquela cara de bosta que ele tem! Não deixei barato e respondi na lata:
- Se o “saco” dele é de pano, eu não sei. Quem pode te dizer se é de pano ou não é a sua mãe! Pergunta pra ela!
- Você está chamando a minha mãe de “putana”, ta...?
- Não! Estou chamando de “tróia” (porca, prostituta da mais baixa categoria)!
Depois disso, o Lorenzo deu-me uma tremenda bofetada e eu dei-lhe um pé na canela. Rolamos pelo chão aos socos. Ele aproveitou-se de um meu descuido e mordeu meu braço e, enquanto ele mordia, não titubeei: Dei-lhe uma tremenda mordida na orelha! Quase “arranquei ela”. O Seu Tonino, que vinha passando, nos separou e o puto do Trentino correu pra casa dele e foi contar pra mãe. E claro, a “tróia” da Dona Lídia veio aqui fazer escândalo...
Solidário, o Giggio metia o pau no Lorenzo e na “tróia” da mãe dele. De repente, perguntou:
- Cos’ca mang? (O que você está comendo?)
- Pão com pimenta e azeite.
- Delícia! Dá um pedacinho?
Dividi o “sanduíche” com ele. Giggio olhou a garrafinha de guaraná e disse:
- A pimenta é da boa, mas a água está acabando.
- Pega água na torneira do jardim...
Ficamos a comer em silêncio. De repente, o Giggio começou a rir e me cutucando, disse:
-Quem mandou você ser Natale? Todo ano, no mês de dezembro é a mesma coisa. Tem sempre “nu pezz’e merda” (um merdinha) pra fazer as mesmas piadinhas de sempre e arrumar brigas... começou a gargalhar – O ano passado... O ano passado, você mandou a Lucìllia pedir pra mãe dela vir “conferir...” e disse também que seu pai ficaria muito contente se a Lucìllia mesma fosse “conferir”. Não esqueço a cara dela até hoje!
Desatamos a rir.
E a rir fomos lembrando o quanto o Natal era confuso. Nunca entendíamos quando era o Dia de Natal. Sem entender, sem que ninguém nos explicasse, por puro interesse “interesseiro”, vivíamos o Natal em três tempos nessa nossa vidinha de “oriundi”, filho dos imigrantes...
O meu Natal “eram” três: Natal, Reis, Epifania. O Primeiro comemorado a 25 de dezembro, os dois últimos, no dia 6 de janeiro.
Os imigrantes assimilaram o Natal sem deixar que se perdesse a tradição. Mas poucos explicavam aos “oriundi” (filhos) esse exagero de comemorações. E essa tríade natalina sempre causava-nos alegrias e agonias.
As alegrias ficavam por conta dos muitos presentes. As agonias ficavam por conta dos “presenteadores” que, invisíveis, policiavam constantemente os nossos atos. Vai que um veja algo que os outros não viram e conte...
Mamãe e vovó chamavam a minha atenção, com os seus alertas em três tempos.
“Olha essa boca! “Babbo Natale” (Papai Noel) está anotando tudo!... ”
“Malcriado! Este ano os Reis Magos vão deixar terra, em vez de doces para você”!
“A “Befana” está vendo tudo, seu malcriado, boca suja, preguiçoso. Você está fazendo a pobrezinha chorar... Ela vai deixar cinzas no teu sapato”!
Papai Noel e o Reis, ao que parecia, a gente controlava. Mas, a Befana era um caso moral, emocional; um caso de amor. Ninguém propositadamente ousava magoar a velhinha. A “Beffana” (Bêfana, como pronunciam os napolitanos) era “la buona strega” (bruxa boa) velhinha que protegia as crianças e as educava com corretivos morais. Invisível e sempre vigilante, era ela quem cuidava da nossa saúde, protegía-nos contra os males e dava-nos os bons sonhos. Se mau menino, ela nos dava os pesadelos. E, no dia 6 de janeiro, em vez de docinhos e guloseimas, ela deixava cinzas nos sapatos dos maus meninos.
Quando criança, acreditava que a minha avó era a Befana. Depois, passei a acreditar que vovó, possessiva quanto aos filhos e netos, não deixaria a Befana nos fazer essa desfeita. Então, entrava silenciosamente no meu quarto e retirava o “montão” de cinzas, limpava o meu sapato e nele deixava os caramelos e docinhos.
Um “bom” menino como eu, tinha de desconfiar, não é?
Em 1969, “mudaram a agenda” da minha amada Befana. Mudaram a Epifania. Desde então, ela faz as suas visitas nos segundo domingo, após o Natal.
E, eu, o ”bom” menino cresceu e ainda guarda dos seus velhos Natais, os presentes que ganhou: O Amor, que lhe deu o “Babbo Natale (Papai Noel), a espiritualidade, que lhe deu os Reis e a solidariedade humana que lhe deu a Befana.
Felizes Natais a todos!
Por Wilson Natale

23 comentários:

Miguel S. G. Chammas disse...

Natale, quantas estrrepolias fez esse menino traquinas, no Natal e em outras festas dosanos atrás.
Apoiado por um tio também pilantra quem não haveria de fazer tais peripécias?
É muito bom te ler e curtir essas estórias. Aliás reitero o que já disse diversas vezes, "vai escrever bem assim lá em casa...."

Miguel S. G. Chammas disse...

Ah esqueci do mmais importante: "Bom Natale...."

Soninha disse...

Olá, Wilson!

Poxa...que saudade ods tempos em que acreditávamos piamente em tudo o que nossos pais e avós falavam...suas tradições, suas lendas, suas crendices...
Hoje sei que eram verdadeiros referenciais para construirem o caráter de seus filhos e netos, dando-lhes os moldes do que era certo ou errado.
Era uma força psicol[ógica tão grande que as crianças jamais ousavam desobedecer, não é mesmo?!
Quantas vezes minha avó nos contou sobre estes seres mágicos, que castigavam ou que ajudavam as crianças, de acordo com o procedimentos das crianças!!!
Tempo bom, lá distante, mas que nunca esquecemos, né?!
Obrigada, Wilson.
Buon Natale e Felice Anno Nuovo!
Buone Feste!
Tanta pace!

Arthur Miranda disse...

Que belo texto Natale, que me leva de volta, aos meus tempos de criança, parabéns. E eu quero fazer a inscrição minha e de outra pessoa para aquela palestra no dia
04 de Março lá na Avenida Nova Cantareira, já te enviei um e-mail e até o presente momento continuo sem a resposta.???

margarida disse...

Natale, antigamente os castigos eram severos e duros, por isso eu ficava sempre muito boazinha para não receber nenhum...rsrsr. briga de moleque tudo bem, mas não fala da mãe, se não o bicho pega não se mesmo!Muito bom conhecer você moleque e apesar de tudo veja o que ficou: amor, solidariedade e espiritualidade. Um grande beijo para todos vocês e um Feliz natal.

margarida disse...

Nesta escrita tive alguns errinhos, mas acho que dá para entender.

Wilson Natale disse...

Miguel,
Um "raça ruim" como eu tem muitas histórias boas e histórias porcas para contar... Risos
Ainda hoje, nessa época fazem bricadeira comigo.
Abração,
um Felissíssimo Natal!!!
Natale

Wilson Natale disse...

SONINHA:
Estas personalidades invisíveis serviam a nos educar.
Mesmo, passado o tempo, não mais acreditando, elas ficaram no meu imaginário. Mesmo fictícias elas deixaram em mim a lição de que somos causa e consequência dos nossos próprios atos. De que a punição ou recompensa está em nós mesmos.
Um Natal de paz!
E muito obrigado por ser a pessoa que você é, recolhendo com carinho as nossas memórias e lembranças.
Deus te abençoe mais e sempre, pela sua paciência de dedicação.
E abençoe ao Miguel, por toda a sua força e dedicação nesse maravilhoso execício de fraternidade e amor.
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

ARTHUR:
Obrigado pelo comentário.
Eu confiro todos os dias os meus e-mails e, confesso, não recebi esse a que você se refere.
Manda de novo!
Um Natal de muita paz!
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

MARGARIDA:
Como toda "boa" criança, eu deixava a boca suja, os palavrões para a rua. Em casa eu representava o bom menino educadinho.
Mas, na rua... Sái debaixo! Risos.
Tudo isso foi um grande aprendizado. Hoje o moleque controla muito bem a boca, embora ainda diga cobras e lagartos em pensamento... Ahahahaaaaa!
Tudo foi aprendizado, decantação para uma vida de certeza do que é bom ou ruim.
Muita Paz neste Natal. Muita alegria!
Abração,
Natale

Luiz Saidenberg disse...

Wilson,que inveja tenho por não pertencer a uma família italiana, e assim poder fazer três comemorações natalinas.
E todas muito boas, sem dúvida.
O Babbo Natale, I Tre Re, e last but not least, La Beffana.
Que só poderia mesmo ser coisa de Nonna.
Ma che importa, ho, proprio cosí, un vero cuore roano.
Bela narrativa, e feliz Tri NatalE!

Luiz Saidenberg disse...

Scuzzi! Voleva dire un vero cuore roMano!

Laruccia disse...

Buon Natalle, quero que vc saiba que a Epifânia, 6 de janeiro, quando nasceu meu 4ºfilho, Marcello, em 1968, nesse dia, coloquei no sobrenome dele, "Reis", além do Laruccia, evidentemante, (e ele até hoje não se conforma, não tenho nenhum parente com este sobrenome. Conto a ele que os presentes de Natal, eu ganhava só no dia 6 de janeiro. Dizia que ele era, pra mim um presente de Deus e até hoje ele tem se mostrado a altura dessa espectativa, graças a Deus.
Seu cativante texto, Natale me trouxe estas lembranças. Quando via os outros gsrotos, que não eram bareses, "frastieri" (forasteiro) com brinquedos natalinos, eu não me conformava. Pedia aos meus pais o por que dessa diferença de datas. E eles esplicavam que Jesus ganhou os presentes dos Reis Magos no dia 6 de janeiro. E quando fazia os presépios (eu era bom nisso) aproximava as imagens dos trio real na mangedoura.
Gostei da resposta que vc deu a respeito do "saco" do Babbo Natale, formidável. Sua escrita é um doce nas amarguras enfrentadas nos dias que correm. Vc colaborou com essa dóse de bons momentos, Wilson, muito obrigado. Bom Natal a todos de sua casa e um fim e princípio de Novo Ano de 2012, preenchendo todas as lacunas de sua espectativas. Um forte abraço.
Laru

Wilson Natale disse...

SAIDENBERG: Os presentes mesmo - os briquedos, recebíamos no Natal. Reis e Epifania recebíamos as guloseimas: Os Reis deixavam-na em um sapato e a Befana no outro. E te digo: nunca dava certo deixar dois pares de sapatos... Ahahahaaaaa!
A te, tré volte Buone e Felice Natività
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

LARÙ, carissimo:
Que bom que meu texto serviu a alegrá-lo!
Hoje é só Natal. Antes nós, os "oriundi" ficávamos confusos com tantas comemorações.
Em casa, ganhávamos os brinquedos no Natal, mas a data mais importante era o Dia de Reis e a Epifania.
E eu só lamento que os REIS não tenham deixado ouro no meu sapato...Ahahahaaaa!
E diga ao seu filho para se conformar. Poderia ter sido pior. Você poderia ter-lhe dado o nome de Epifânio dos Reis Larùccia...Já pensou?! Ahahahaaaaaa!
Um Natal de muitas alegrias, saúde e paz a você, Signora Myrtes e a todos os seus!
Abração natalino,
Natale

Luigy disse...

Que beleza de textos que prende a gente e nos leva junto nessa viagem e assim começa rolar um filme em nossa cabeça.
Apesar de descendente da velha bota, desconhecia toda essa lição que vc nos deu.
Depois de ler seu texto aprendi tanta coisa nova nos seus relatos.
Buono Natale
Luigy

Wilson Natale disse...

LUIGY: A Mooca foi, até meado dos anos 60, mais que um bairro, um feudo italiano. Dai a forte ligação com as tradições do velho mundo e da Itália. Daí também essa mistura de comemorações.
Aqui, ainda hoje, por exemplo é comum desejar-se um eliz dia dos pais em março, no dia de São José.
Abração,
Natale

suely aparecida schraner disse...

Adorei a sua crônica. É tão bom ler e reler além de aprender. Abração.

Wilson Natale disse...

Valeu, SUELY!
Na crônica vai um pouco do moleque e seus transtornos pelo sobrenome Natalino e as festas que o alegravam nos fins de ano.
Vivência, memória e história a homenagear também as gerações dessa Mooca ítalo-brasileira.
Abração,
Natale

Cida disse...

Não nega o sangue latino heheheehehe,"menino esquentado". Texto adorável,muito bem escrito. Feliz 2012.
Abraços

Wilson Natale disse...

CIDA: O sangue calabrês misturado ao napolitado, só podia dar num moleque mal-criado, desbocado e esquentado... Ou então, com tendência a ser membro da MAFIA... Ahahahahaaaaaa!
Abração,
Um 2012 cheio de alegrias!
Natale

Zeca disse...

Natale!

Como sempre, um belíssimo texto, cheio de referências e de ensinamentos para aqueles que, como eu, não são descendentes de italianos e não conhecem suas tradições!
Acabo de lê-lo, pois voltei para casa apenas ontem.
Hoje é véspera de Dia de Reis e há quem comemore o NatalE neste dia. Portanto, que a Beffana nos visite, a todos e, com os três Reis Magos, nos presenteie, pois as malcriações infantís já estão bem longe de nós, não é mesmo? Afinal, aos "velhos" tudo é perdoado... Ho, Ho, Ho!!!

FELIZ 2012!


Abraço.

Wilson Natale disse...

ZECA:
O problema não somos nós os velhos, mas - graças a Deus - a criança que existe em cada um de nós. Ahahahahaaaa!
No meu caso, tenho a impressão que os Reis, em vez de guloseimas, vão deixar um fardo de alfafa no meu sapato... E a Befana, em vez de doces e docinhos, nem cinzas deixará no meu sapato. Vai deixar sim carvões em brasa. Ahahahahaaaa!
Um Feliz Dia de Reis, uma Feliz Epifania à moda antiga (agora é comemorada no segundo domingo de janeiro) E UM 2012 CHEIO DE PAZ, SAÚDE E PROSPERIDADE.
Natale