A Avenida São João, vista da Praça Antonio Prado - antiga do Rosário – desaparece em meio à neblina que anuncia o anoitecer na Paulicéia Desvairada.
Neblina.
Frio.
Do monumento a Giuseppe Verdi até a porta do Conservatório Dramático e Musical são 15, 20 passos. Espero um bonde passar, atravesso a avenida e me abrigo da garoa e do vento frio sob a soleira de uma das enormes portas do prédio dos Correios e Telégrafos.
De repente Mario de Andrade
“... No Páteo do Colégio afundem o meu coração paulistano:
um coração vivo e um defunto
Bem juntos
Escondam no Correio o ouvido direito,
o esquerdo nos Telégrafos,
quero saber da vida alheia
Sereia!...”
A situação, o lugar onde me encontro, fez-me lembrar dos versos de Mário em Poemas da Amiga. Não sei dizer se ele já os escreveu ou ainda estão por escrever porque é bastante comum em minhas viagens ao passado da nossa cidade de São Paulo, que aconteça algo como o esvair-se da noção do tempo percorrido ou vivido; portanto peço desculpas por eventuais falhas em minhas relembranças ou deslembranças.
Sineta, campainha estridente. Término do horário das aulas do Conservatório. Alunos saem rindo, conversando e dirigem-se para os pontos de bonde, alguns enveredam pela Rua Formosa em direção ao Largo do Piques.
Espero e espero Mario de Andrade.
Mario desce os degraus e sai para a calçada. Sobretudo, luvas e chapéu. Alguns alunos ainda o acompanham até o início da ladeira de São João. Não podem me ver, faço parte da neblina. Caminham e param, caminham e param, sempre sob a luz dos postes da Light. Em cada parada, um aluno lhe apresenta uma partitura, um texto, comenta um acorde... Mário lê, ouve, explica. Despedem-se na esquina da Líbero Badaró:
- Até amanhã, professor...
-Até...
Mais alguns passos e Mário entra no Franciscano. Senta-se junto ao alto balcão de madeira envernizada, um verniz bem escuro já sem brilho. Coloca o chapéu sobre o mármore, tira as luvas. Limpa os óculos redondos do tipo ‘olho de coruja’:
- Hoje está frio, né? Por favor, me faz uma sanduiche de queijo com salame e uma guaraná gasosa gelada!...Dá prá espetar essa conta até amanhã?
- Claro, professor... O senhor manda... Vai uma manteguinha?
Quase 9:ooh da noite, Mário começa a caminhar para o Theatro Municipal. O frio continua. Enrola o cachecol em torno do pescoço. Aperta o passo...
Na escadaria do Municipal o encontro com amigos, músicos, literatos, jornalistas. Abraços, tapinhas carinhosos nas costas. Cumprimentos protocolares, beijos nas faces.
A escandalosa voz de Oswald de Andrade. Cumprimentos aos berros, gargalhadas.
O Clube da Antropofagia, capitaneado por Oswald, Tarsila e comitiva, vem confirmar seu apoio à candidatura de Júlio Prestes para Presidente da República e , para isso, organiza uma noite de cultura brasileira no palco do Theatro Municipal. Claro que a grita da ‘elite quatrocentona’ composta por descendentes de assassinos, ladrões, desertores e degredados que compunham a tripulação de Martim Afonso de Souza e foram abandonados à própria sorte em S. Vicente, repito, a grita foi geral: “Templo da música e da ópera conspurcado por políticos e politiquices”, foram os ditos menos agressivos publicados nos dias seguintes. É evidente que Cornélio Pires, Genésio Arruda e, entre outros mais, Sinhô, o auto denominado, ‘Rei do Samba’, faziam parte da tal malta de medíocres artistas circenses que se atreveram a pisar no palco do tal templo. Tudo do jeitinho que Mário e Oswald gostavam, cutucar os miolos da paulistanada conservadora, com o beneplácito dos Mesquita do “O Estado de São Paulo”, interessadíssimos, claro, na vitória de Júlio Prestes...
Permitam-me o direito de abrir um parêntese nessa viagem pelo passado político e cultural de São Paulo para falar de um dos pais do samba, José Barbosa da Silva, o Sinhô:
Infelizmente, a temporada de Sinhô em São Paulo acabou por agravar o estado de saúde do sambista...
-“Jura
Jura,
Jura pelo Sinhô,
Jura
Pela imagem
Da Santa Cruz do Redentor
Prá ter valor a tua jura”...
Uma hemoptise incontrolável, incoercível, levou Sinhô para o céu dos sambistas em 1930. Manuel Bandeira escreve uma crônica histórica – O Enterro de Sinhô - sobre seu velório e enterro, com os pobres, os negros, as prostitutas do Mangue, a malandragem, a cidade do Rio de Janeiro ‘underground’, da Pequena África dos iniciados, rendendo-lhe homenagem...
Voltando à vaca fria:
Discursos, fotos, espoucar de flashes de magnésio. “Rumo à vitória nas urnas” é o leit-motif dos políticos e politiqueiros.
Acabou.
Os participantes do meeting se dispersam. Sinhô percorre a cidade no meio da madrugada garoenta e descobre que São Paulo não é o Rio, que o centro de São Paulo não é a Lapa carioca. Vai dormir em um hotel da r. Mauá. Tosse. Escarro com laivos de sangue todo o tempo. Não consegue dormir... A Parca vai segui-lo até o embarque no ferry-boat da Cantareira que de Paquetá deveria leva-lo à Praça XV. Sinhô morreu no mar, afogado em seu próprio sangue...
Tarsila, Pagu e outros amigos do grupo vão terminar a madrugada na garçonerie da Líbero Badaró, mantida por Oswald de Andrade, um abatedouro de luxo.
Absinto, champanhe, whisky, cocaína, cigarros do Pai João...
Mário segue à pé pela Barão de Itapetininga até a Pça da República. Muito frio. Conta os níqueis. O dinheiro é suficiente para um taxi. Nada de andar até a Barra Funda:
- ‘Tá frio, né doutor? Prá onde vamos?
- Rua Lopes Chaves... Chegando lá eu mostro a casa...
Durante alguns minutos escuto uma valsa ao piano.
Silêncio.
Tiquetaquear de uma máquina de escrever.
Talvez um artigo para um jornal, talvez anotações para um livro, talvez fichas para seu arquivo particular... As luzes das ruas se apagam. Os carroceiros começam sua fâina de entregas de pão e leite. Barulhos das latas de lixo sendo jogadas nas calçadas. Mario dorme profundamente enquanto a cidade começa a acordar. Em menos de um ano o país vai sofrer uma virada, política e cultural. Governos serão derrubados, eleições fraudadas bilaterlmente levarão o Brasil a um novo regime. Crack da bolsa de Nova York. Oswald de Andrade vai à falência...
Suicidios quatrocentões...
Mario de Andrade dorme um sonho profundo. Talvez sonhe com uma São Paulo perfeita, a São Paulo de seus sonhos, a comoção de nossas vidas...
Não sei se o que narrei, aconteceu verdadeiramente, foi um sonho muito doido... Mas bem que poderia ter acontecido, porque não, heim?
Por Joaquim Ignacio de Souza Netto