sexta-feira, 3 de junho de 2011

Quase outono


Lá na minha rua tinha um bosque, canta a velha musiquinha. Não é verdade, não é na minha rua, mas, a duas quadras de distância. É um belo parque, pequeno e muito arborizado, com pistas para caminhada.
Entremos. Olhando, e mais, sentindo o verde profundo da vegetação na manhã cinzenta, assaltou-me uma sensação de outro dia assim, úmido e fresco, de muitos anos atrás.
Talvez o ar, sutil, de quase garoa, quase neblina, onipresente, ainda que invisível. Mas, e o cheiro de gasogênio, elemento imprescindível na sensação? Os carros que passavam, do lado de fora das grades talvez evocassem, de algum modo, tal lembrança, mesmo neste tempo de etanóis. Alguma coisa restara, para fazer a ligação com aquele ano de 1946.
São Paulo então era, dizem, mais fria e garoenta. E nesta manhã de parque sentia-se o contraste com os sufocantes dias anteriores.
1946... Colocamos os pés na rua, a tranquila Vitorino Carmilo, aspirando o arzinho frio e caminhamos rumo à casa de Tia Zilda, diante do então Cine São Pedro.
Subindo a Albuquerque Lins, depois de minha tia, passava-se por uma Ortopédica Alemã, com uma cruz vermelha no letreiro e estranhos aparelhos na vitrina. A seguir, a Padaria Palmeiras, com suas famosas empadinhas e pizzas de balcão.
Cruza-se a Praça Marechal, dobra-se à esquerda e pronto, estamos na Rua das Palmeiras, muito interessante. Mas, Rua das Palmeiras? Que poderia haver de interesse lá, dirão alguns. Para um garoto acostumado à pasmaceira do interior, tudo era fascinante.
Ali o trânsito, quase inexistente para os padrões de hoje, era para mim movimentado.
Os carros, estranhas geringonças movidas a gasogênio, carregando nas costas a complicada e escura caldeira, como uma corcunda.
O cheiro era novo, estranho, mas leve e por que não, até agradável.
Bem, eu gosto de cheiro de piche sendo aplicado no asfalto e talvez lembrasse um pouco. Nada disto tem a ver com esses ufanistas que dizem não poder ficar longe dos maus odores de São Paulo: gasolina, diesel, poluição, lixo, isto para não falar nas Marginais.
Na Rua das Palmeiras, lojas de ferragens, de carros, de móveis, até uma bela doceira em frente do Largo Santa Cecília. A igreja, pequena e toda branca, com pinturas de Benedicto Calixto, conhecido de minhas tias, quando morara em Brotas, terra delas. E a impressionante e lúgubre imagem da Santa, sob o altar.
Por fim, maravilha das maravilhas, subíamos as escadas rolantes da Clipper, para contemplar seus elegantes balcões, nos quais não faltavam brinquedos desconhecidos.
Hoje, raramente passo por esses antigos lugares, que continuam quase os mesmos, arquiteturalmente, apenas cobertos de sujeira e pobreza. Paradoxal, mas, como uma Pompéia, as construções foram preservadas pela decadência da região. Quase nada de novo foi erigido.
Nada mais sinto da velha emoção de adentrar, como um explorador do século dezoito, uma nova selva de pedra, palmilhando seus atalhos fumarentos.
No ar fresco e úmido de uma manhã, de quase Outono.

Por Luiz Saidenberg

8 comentários:

Miguel S. G. Chammas disse...

Luiz, dentro desse cenário que você tão fielmente pintou, apenas e tão somente, ao que me lembre, uma coisa foi modificada.
Já não mais existe a velha Clipper e suas escadas rolantes tão cativantes, Clipper onde tomei vários chás da tarde com tudo que eles tinham direito.
No seu lugar, pelo menos na ultima vez que por ali pássei, estava uma enorme e fria agência do Bradesco.
Que pena!
]

Soninha disse...

Olá,Luiz!

Destes lugares citados porvocê, lembrei-me da igreja Santa Cecília...Quando eu estudava na Mackenzie,algumasvezes eu ia de Metro, descia no largo Santa Cecília e subia a Dona Veridiana até a faculdade... Antes,porém, eu passava pela igreja,onde depositava minha prece, muito rápido,mas,com muita devoção.
Voltava pelo mesmo caminho até a estação de Metro...por estes caminhos fimarentos,como vc bem descreveu, mas que,para mim,não tiram o encanto e a magia de Sampa.
Sobre o outono...Ah,o outono!
Gosto desta estação,quando a luminosidade do dia é diferente,principalmente o nascer do sol...Também porque os dias são quentinhos e as noites com aquele friozinho ótimo para dormir.
Valeu, Luiz!
Obrigada.
Muita paz!

Wilson Natale disse...

Saidenberg: Linda visão da Cidade de São Paulo antes que caísse no vórtice que a devoraria. Não ficou pedra sobre pedra, mas sim, uma pedra ou outra a reavivar nossas memórias e contar histórias.
Penso que o Outono tem essa capacidade de nos tormar mais intospectivos e "lispectorianos". E o friozinho de suas noites leva-nos a buscar o calor das lembranças antigas.
A velha Chácara das Palmeiras, rasgada por ruas virou o Bairro de Santa Cecília que, por sua vez
conheceu o auge e a decadência.Mas sobrevive aqui e alí, conservando traços do que foi. Ainda vale a pena passear por lá.
Agora, lá, tem o Metro. Não há mais os carros a gasogênio (que o meu pai e outros diziam ser carros de bêbados, pois levava um "alambique" na traseira),nem mesmo aquele "ar" caseiro e, nem mesmo, aquelas residências nobres misturadas às simples.
Mas o bairro continua lá. A Igreja de Santa Cecília continua lá.
E, dentro da Igreja, Santa Donata ainda repousa no seu túmulo de cristal, desafiando os séculos, como a nos dizer que o Bairro sobrevive - mudado, mas sobrevive.
E continuará sobrevivendo nos muitos outonos que virão, despertando em alguém velhas e novas lembranças.
Abração,
Natale

Laruccia disse...

O bairro de Sta. Cecília, tão delicado quanto seu nome, era referência de endereços nobres. A praça com suas lojas bem localisadas, era atração forçosa pra quem queria divergir, um pouco da Barão de Itapetininga. Com o passar dos anos a mudança visual sofreu bastante, não sei a razão mas, foi pra pior. Frequência, "minhocão", viciados enfim, foi uma queda vertiginosa, sem esperança de voltar aos aureos tempos tão bem focalizados por vc, Luiz. Seu impecável texto merece, no mínimo, meus parabéns.
Laruccia

Miguel S. G. Chammas disse...

Ljiz, eu na minha infância, cheguei a ver alguns carros movidos a gasogênio, eram monstruosamente bonitos com aqaueles alambiques nas suas trazeiras.

Arthur Miranda-TUTU disse...

Luiz, trabalhei na Rua Fortunato quando tinha 15 anos, realmente da muita saudades da antiga rua das Palmeiras,da velha Clipper, e de todo esse local descrito por você antes do Minhocão, parabéns pela saudosa e excelente narrativa.

Zeca disse...

Luiz,

sei que tenho andado meio sumido, mas continuo lendo, religiosamente, tudo o que nossos amigos escrevem neste blog. Apenas, por diversos motivos, não tenho deixado meus comentários.

Aproveito este seu belíssimo texto para tentar retornar também aos comentários que me dão tanto prazer quanto a leitura dos textos.

Eu não lembro de ter visto algum carro movido a gasogênio, embora saiba da existência deles. Mas conheci a região de Santa Cecília logo cedo, pois o pediatra que me atendia tinha consultório lá, não lembro o nome da rua, lembro apenas da Rua das Palmeiras (o nome me encantava mas não lembro de nenhuma palmeira por lá) e da velha Clipper, um paraíso para olhinhos infantís.

E como na década de 50 e nas seguintes, não havia metrô, o caminho natural, tanto para o bairro, quanto para a Avenida Angélica, era seguir pela Rua das Palmeiras. Pena que um bairro tão bonito, com um nome tão doce, tenha se transformado tanto, mostrando o que há de pior na modernização da cidade!

Gostei muito deste texto! Parabéns! E obrigado pelas lembranças que ele me provocou!

Abraço.

Luiz Saidenberg disse...

Velhos tempos, em que o Centro era pujante e charmoso, então sobrava para suas beiradas...o progresso subia a S. João e imediações. Acho que agora é o contário. A cracolândia expandiu-se para a região central, por isto meu artigo A Fronteira- no fim de semana não dá mais para passar por lá. No, no pasarán! Abraços.