sábado, 26 de fevereiro de 2011

O relogio de 1924

imagens: estaçao ferroviária Mooca; fabrica Crespi destuida durante a revoluçao de 1924; soldados e trens durante a revoluçao de 1924.
O ano era 1924. O bairro, a Mooca. Os moradores, em sua grande maioria, imigrantes italianos; dentre eles, a minha família, composta de meus avós e seus filhos, todos pequenos.

Naquela manhã fria, em plena Revolução que acontecia em São Paulo, meus "nonos" foram acordados com barulho de bombas e correria pelas ruas do bairro.

A proximidade com a estação de trens piorava a situação, pois por ela também desembarcavam soldados que se misturavam à multidão aflita que tentava sair dali.

No desespero, recolheram o que podiam, juntaram as crianças e também foram à estação, de onde partiriam rumo a Campinas, para casa de parentes, até que a situação na cidade de acalmasse.

O tumulto na plataforma era grande e, ao conseguir embarcar todos no trem, que partiria em instantes, deram falta de um dos filhos, minha tia, então com quatro anos. Não conseguiram sair do trem para procurá-la e o trem partiu, com os gritos da "nona" e desespero de todos a bordo.

Parece coisa de filme, mas aconteceu... Algum tempo depois, um funcionário da companhia de trens apareceu naquele vagão, trazendo a menina pela
mão, dizendo que uma pessoa na plataforma a reconheceu e deduziu que meu avô estivesse naquele trem com a família; sem pestanejar atirou-a pela janela para dentro de um dos vagões.

Uma família desesperada num vagão, uma criança chorando em outro... o funcionário os juntou e a viagem acabou bem.

Passado um mês, finda a revolução, o "nono" voltou para ver a situação da casa. Lá chegando, encontrou apenas uma parede de pé, pois a casa tinha sido bombardeada.

O desespero inicial se transformou em esperança ao perceber que nessa parede estava intacto o relógio da família, daqueles com ponteiros em algarismos romanos e badalo, como a dizer que era tempo de recomeçar, algo ainda estava inteiro. Seus ponteiros indicavam que ele havia parado por volta das 4h00, provavelmente quando a granada, que estava no chão, ao lado dessa parede, tinha sido ali detonada.


O reinício de suas vidas se deu no Ipiranga, e o relógio voltou a funcionar, sempre merecendo destaque na nova parede que lhe foi destinada.

Os personagens dessa história faleceram todos, mas o relógio, este está comigo, é destaque na parede de nossa casa, agora na zona leste da capital, funciona muito bem e, dependendo do dia, parece que nos conta essa história em cada badalada.

Por Márcia Sargueiro Calixto

8 comentários:

Miguel S. G. Chammas disse...

Lindahistoria Marcia, parece até que faltava degustar algumas redondas para se lembrar de passagem tão bonita e importante.
Valeu a lembrança. Volte sempre

suely schraner disse...

Que bom encontrar você por aqui. Adorei seu relato.

Wilson Natale disse...

Marcia: É muito bom a gente ter e conservar um objeto que nos remete à história da nossa família.
Nele, o drama dos seus antepassados durante a revolução de 1924 e acima de tudo a força deles em superar tudo.
Um velho relógio a nos dizer que sempre há Esperança!
Bem-vinda!
Abração,
Natale

Arthur Miranda (tutu) disse...

Márcia que belo e “pontual” relato, que chega na hora certa. Minha infância também foi marcada por um velho relógio que foi de meus bisavós paternos, seus números eram em algarismo romano e graças a eles eu já entrei no primário sabendo ler até 12 em algarismo romano, o mesmo também batia as horas, Quando me casei levei-o comigo, mas aí ele começou a atrasar pelo menos uns dois minutos diariamente, e mesmo mandando para o conserto ele continuou atrasando. Eu então percebendo que relógio que atrasa não adianta, aposentei o idoso objeto.

Soninha disse...

Olá, Marcia!

Muito bacana sua história de família!
O tempo é inexorável para tudo e para todos... Mas, o relógio ficou de seu avô ficou para para posteridade..um símbolo maravilhoso expressando o sofrimento dos brasileiros no período de guerra.
Sabe...eu gosto muito dos objetos que tem conotação com o tempo...
Adorei saber de sua história.
Obrigada.
Muita paz!

Modesto disse...

Marcia, essa mesma revolução,
1924,no instante que seus avós com as crianças partiam pra Campinas, minha tia Carmela, 22 anos, morria, no Braz, vítima desse maldito e inexplicável bombardeio que São Paulo sofreu, por ordem do monstruoso e xenófobo, arthur bernardes (é com minúsculas, mesmo, não merece outra coisa...),presidente da república, na época. Patricios nossos, de outros estados, corroidos pela inveja que sentiam pelo progresso do nosso estado, engrossaram fileiras do déspota. Diziam que as colônias italianas e espanholas inflavam as greves nas indústrias e que a grande maioria deles estavam localisados no Braz, Moóca, Cambucí e Belém. E até hoje, não me conformo pela afronta do governo federal contra São Paulo em IMPINGIR o nome desse assassino na refinária de Cubatão. Tenho um texto aqui, no "Memórias..." que conto essa história, com mais detalhes, incluxive com citações do livro do jornalista Domingos Meirelles, "As noites das grandes fogueiras".
Meu pai, que era irmão da tia Carmela, também tinha um relógio igual ao que vc citou e lembro dele, toda manhã, subir numa cadeira e dar corda no relógio. Belo texto, Marcia, parabéns.
Modesto Carmela

Luiz Saidenberg disse...

Ótima historia, Márcia. Se não tivessem fugido, seus antepassados já eram. Sobraria o relógio para contar a história, marcando a hora da explosão. E, traumatisado de guerra, jamais voltaria a ser o mesmo.
Mais uma vítima da irracionalidade dos humanos...

Zeca disse...

Que belo texto, Márcia!

Eu não sabia desse bombardeio em São Paulo, nessa época! E a gente sempre pensa que sabe tudo, né? Para mim, o ano de 1924 marca o ano de nascimento de minha mãe. Mas como toda a família morava na "distante" Guarulhos, estava longe da revolução e do bombardeio contados por você.
Um relógio semelhante, com algarismos romanos e, para meu encanto, um cuco, existia na casa dos meus avós paternos. E eu sempre me maravilhava quando o passarinho saia da casinha para anunciar, sem erro, a hora certa! Quanto mistério para a cabecinha infantil!
Então, além de agradecer o acréscimo de conhecimento que seu texto me trouxe, só posso dizer que quero mais.

Abraço.