segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O crioléu paulistano

Lá, pela metade dos anos 60, meu tio Mário contou-me o significado da palavra. Eu morri de rir. E ri, não pela palavra, mas, pelo efeito catastrófico que ela iria causar nas pessoas, principalmente nas preconceituosas, quando eu começasse a falar... E falei. Uns não acreditaram, outros diziam que era invenção minha. Outros, então, acharam que eu delirava. E eu lhes disse: Está lá no Dicionário! Leiam.
Dezembro de 1969. Depois do cinema, joguei conversa fora com os amigos e mandei ver umas cervejas, lá no Jeca. Olhei o relógio e o mundo desabou. Quinze para a meia-noite. Eu havia bebido todo o dinheiro para o táxi. O jeito era correr e tentar pegar o último ônibus para a Mooca. Dei um “bye-bye” geral e segui apressado pela Avenida Ipiranga, entrei na Rua Barão de Itapetinga e comecei
a correr, em direção à Praça Clovis Bevilácqua, rumo ao ponto do ônibus. Dei sorte! O “busão” estava estacionado. E, como era o último, o motorista sempre dava um desconto de uns dez minutos, esperando pelos passageiros retardatários que trabalhavam no Mappin, Mesbla e Light.
Lá estava o motorista sentado à direção, lendo o “Notícias Populares”. Esbaforido, entro no ônibus, pago, passo a roleta e vou para frente, me sentar. Naquele tempo entrava-se pela porta de trás do coletivo e descia-se pela porta da frente.
Entra um homem negro. Paga, passa roleta e esquece de pegar o troco.


O cobrador grita: “Olha aí o teu troco, crioulo”!
O homem volta, pega o troco e diz ao cobrador: “Crioulo é a P... q... o p... Seu ignorante”!
Senta-se ao meu lado e indignado fala alto, olhando para mim e ao redor: “Que cobrador mais grosseiro! Chamando-me Crioulo”! Os passageiros concordaram com ele.
Eu, na maior calma digo: “Não se ofenda meu amigo. Neste país, só os índios não são crioulos”!
Confusão geral. Os passageiros pareciam ter enlouquecido: Como? Como assim? Como é que éééé?! Você bebeu demais, meu?... Explica isso daí, di-rei-ti-nho!
E eu fui explicando:
Crioulo é todo o indivíduo filho de estrangeiros, que nascem no país para onde seus pais imigraram. Crioulos eram os filhos de portugueses que aqui nasceram no tempo da colonização do Brasil. Crioulos são todos os filhos dos imigrantes que vieram para o Brasil.
E crioulos são todos os filhos dos africanos que foram trazidos ao Brasil!
Ser crioulo não é privilégio ou estigma. É uma constatação. Denominação comum a todos aqueles de origem estrangeira que nasceram aqui ou em outras pátrias.
Portanto, neste Brasil, só os índios não são crioulos. Pois, como seus antepassados, nascem, vivem e morrem aqui.
Os passageiros, alguns estavam com cara de incréu; outros, estavam confusos dia
nte dessa verdade revelada. Pareciam precisar de algum tempo para digerir aquilo que eu havia dito.
O tempo foi muito pouco. Logo começaram os risos e as piadinhas. Alguns começam a aceitar a verdade:
“Ay caracoles! Entonces que yo soy criollo!”
“Ora, pois, pois! Então sou um crioulo... Não é que nunca me contaram”.
E eu, rindo, falo bem alto:
“Crioulo sono anche io”!
Gargalhada geral.
O motorista nos diz que era português (disse como fosse novidade um português ser motorista dos ônibus da Mooca. As empresas do bairro pareciam um cabide de empregos ultramarino).
Dizia-nos o motorista:
“Eu é que não sou crioulo! Vim de Portugal há vinte anos. Aqui me casei e tive filhos...”
Eu corto a frase do motorista e digo no sotaque lusitano: “Com certeza não és crioulo, mas crioulos são os teus filhos”.
Ri e todos riram. E todos, se sentido crioulos, riram de si mesmos.
O motorista, então, dobra o jornal e o guarda. Dá a partida no ônibus e nos diz entre risos: “Ai, meu Jesus! Hoje eu descobri que sou pai de três crioulinhos! Quem haveria de dizer, meu Deus”! “Então crioulada. Prontos para irem para casa”?.
A gargalhada foi geral.

Por Wilson Natal

17 comentários:

Arthur Miranda disse...

O brasileiro é um povo Crioulo pois Deus Crioulos assim, Natale, gostei dessa sua crioulice, alias no Rio Grande do Sul o Gaucho chama de criolo tudo que é criado ou produzido por ele dentro de suas propriedades, Vinho criolo, queijo criolo e por aí afora. Parabéns.

Miguel S. G. Chammas disse...

Então, meu amigo Natale foi professor e apaziguador de uma possivel guerra na Praça da Sé, no sitio contiguo onde anos antes José de Anchieta deu aulas para os não crioulos que aqii viviam.
Gostei da lembrança. Parabéns

MLopomo disse...

Natal, eu tenho tudo de crioulo. Como minha mãe morreu 4 dias depois que nasci, fiquei sem o leite materno, mas na vizinhança tinha uma mulher negra que amamentava seu filho, e ela me emprestou seu seio. Portanto alem de ser filho de uma italiana legitima, segundo seu contexto, sou super crioulo. Graças a Deus. Obrigado por um texto bastante esclarecedor. Mário Lopomo.

Laruccia disse...

Natale, crioulo da Moóca, com toda sinceridade deste mundo, não sabia disso. Agora me diga, por que vc tem preconcitos com a criolada da nossa turma não querendo ir ao nosso encontro, no Morais?
"Ma,sara che io bisogno darle un picolo pizzicato in vostra faccia. Te voglio vedere n'altra volta, parlare con te, non mi fa piangere, per carita, venite, venite, figliolo, tutti ti voglio bene assai. Perche fa il dificile?"
Vcs, naturalmente querem a tradução, ela será dada na pizzaria pelo próprio Wilson.
Laruccia

Miguel S. G. Chammas disse...

Modesto, a tradução, para mim, não será necessaria.
Aliás, endosso udo que vc escreveu.
Venite Natale!

Miguel S. G. Chammas disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Miguel S. G. Chammas disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Soninha disse...

Olá, Wilson!

Que bacana quando pódemos orientar, inforar, não é mesmo?!
De minha parte, também não perco a oportunidade de passar as informações corretas...sem medo de ser feliz!
Sabe...quando vc falou sobre o último ônibus, fez-e lembrar de meus tempos de estudante do colégio, quando eu estudava a noite e trabalhava durante o dia...
Era legal quando o motorista do ônibus dava um tempinho e até nos esperava subir correndo a Rua Pascoal Moreira, na Mooca, pois o ônibus passa na Rua Oratório...tomavamos o das 11:45 e, se perdessemos este, só depois da meia noite. Aquela turma de garotada, na correria para não perder o ônibus...o motorista dava aquelas aceleradas, como se fosse ebora e a meninada gritava: MOTORISTAAAAAAAA...ESPERA A GENTE.
Rindo, ele acelerava ainda mais e subíamos no ônibus com os bofes para fora, mas, rindo muito.
Valeu, Natale! Adorei!
Obrigada.
Muita paz!

suely schraner disse...

E viva a crioulada! Abaixo o politicamente correto. Valeu, Wilson!
abs
Suely

Luiz Saidenberg disse...

Muito bem explicado, Wilson, e é verdade. Temos na America Latina nuestros hermanitos, todos criollos. Aliás, para os americanos, criollo deve ser qualquer um que nasça abaixo do Rio Grande. Passou do Texas...
Mas, para falar ainda mais sério, toda a humanidade parece provir da Africa, onde foram encontrados os primeiros hominídeos. Pele amarela, olho puxado, cabelo loiro, olho azul, não importa: no fundo somos mesmo todos crioulos!
Abraços.

Wilson Natale disse...

A TODOS: Embora para alguns estudiosos, as palavras têm a força, ou sentido que se lhes dá é sempre bom saber o seu real significado.
CRIOLO passou a ter um sentido pejorativo, por neologismo. Outras palavras, como BÁRBARO (´rustico, grosseior,etc) passoua ser um superlativo positivo (lindo, maravilhoso, ótimo, etc.), ou então, a palavras ESQUISITO (refinado, diferenciado), que passou a significar ruim,gosto-ruim, etc.
De qualquer modo, tenha a força que se lhe dá, NÃO SE PODE TIRAR-LHE A SIGNIFICAÇÃO.
SOMOS TODOS CRIOLOS!
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

Uau, SONINHA! Então temos algo mais em comum! O MMDC!!! Estudei láááá!
Só que no "meu tempo" (risos) o "M" funcionava no prédio do Pandiá Calógeras, na Paes de Barros. Depois foi lá para os lados do Juventus e depois, definitivamente para onde está até hoje.
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

SAIDENBERG: Você esqueceu que, acima do Rio Grande, na Louisiana, estão os "CRÉOLES",descendentes dos franceses.
E viva o crioléu!
Abração,
Natale

Modesto disse...

... e ele não falou nada da pizzaria Morais, hein?

Mo

Wilson Natale disse...

MIguel e Larù, mio bello. Não falei porque fiquei até agora senza la INTERNET.
E, bello, Não estou em São Paulo. Estou em Rio Claro, fazendo uma pesquisa sobre a Cia. Paulista de Estrada de Ferro, junto com um pessoal da UNICAMP. Não sei se vou chegar a tempo, no fim de semana. Tem coisa que não acaba mais nos arquivos.
Mas com certeza, na próxima, eu estarei junto para infernizar toodos vocês.
Se voltar antes, Eu apareço! E acerto a minha parte lá.
Abração e obrigado por esta demosntração de carinho. Amo vocês também!
Natale

Zeca disse...

Natale,

E como Memórias de Sampa, além de deliciosas crônicas, nos oferece conhecimento e cultura, só posso agradecer-lhe por mais este acréscimo nos meus modestos conhecimentos. Para mim, até hoje, crioulo eram os filhos e descendentes de negros, especialmente dos escravos.
É que também nunca me preocupei em procurar o significado da palavra, mais usada no seu sentido pejorativo mesmo, nesta nossa sociedade preconceituosa, da qual, infelizmente não posso excluir-me.
Tenho amigos e já tive namoradas da raça negra e a cor da pele nunca foi objeto de discriminação de minha parte, pelo contrário, como digno descendente de portugueses, tenho cá minha quedinha pelas peles mais escuras. Por tudo isso, a partir de agora, poderei, com orgulho, dizer que, mesmo com esta pele branquela, eu também sou crioulo.
Fico aplaudindo mais uma das suas deliciosas crônicas!
Abraço.

Wilson Natale disse...

ZECA:A palavra Criolo, ou crioulo marcou a raça africana não como pejorativo, mas como diferenciação.
Nos Censos Demográficos dos séculos 18 e 19 classificavam os brancos e indígenas, sem maiores especificações. Mas, em relação aos negros (pretos,como diziam, o censo era específico: "X" pretos africanos e "X" pretos criolos e havia um adendo sobre os pardos (mestiços de negro com indígena).Daí "criolo" ter marcado a raça negra.
Nos tempos modernos, a palavra torna-se ambígua: No masculino - criolo - é pejorativa. No feminino - criola - é positava... Ai Jisus! Põe positiva nisso! (risos).
E não "esquenta" por não saber o significado da palavra. Eu fui saber aos 21 anos. E a partir daí, eu fui atras das palavras que se usam com a conotação negativa.
Abração,
Deste criolo Calabrês-brasileiro.
Natale