sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Bonde Anastácio - Linha 37


imagens: Bonde Anastácio; colégio Campos Salles; chocando o bonde; bonde da Lapa; motorneiro

Meninos, acreditem, eu vivi minha infância e adolescência em uma São Paulo que tinha bondes elétricos! As linhas eram geralmente radiocêntricas, ou seja, convergiam para o centro da cidade. A linha 37 Anastácio era uma exceção, pois partia da Lapa, em direção ao bairro do Anastácio, pelas seguintes ruas: Doze de Outubro, Barão de Jundiaí, Brigadeiro Gavião Peixoto, Laurindo de Brito e João Tibiriçá, até as porteiras da Estrada de Ferro Sorocabana (onde hoje é a estação Domingos de Morais da CPTM).
Era uma linha singela, que em seu trajeto possuía três desvios, para permitir a circulação de mais de um bonde na linha. Na realidade, apenas um bonde percorria a linha, que recebia o reforço de mais um carro no período do pico, à tarde. Esta linha passava em frente à minha casa (Rua Laurindo de Brito) e ao Colégio Campos Salles, onde eu estudava. Era, pois, a condução natural para ir à escola.
Um só bonde na linha? Sem problemas, pois além de manter razoavelmente o horário, ninguém tinha pressa como hoje. Mais um detalhe: o ônibus custava um Cruzeiro e o bonde cinquenta centavos. Todo dia minha mãe me dava um Cruzeiro para poder ir e voltar da escola.
- Mãe: me dá dois Cruzeiros, hoje quero ir e voltar de ônibus.
- Dinheiro não nasce em árvore, ouviu! Tome um Cruzeiro e vá de bonde!
Quem disse que o dinheiro era usado na compra da passagem do bonde? Um Cruzeiro, na hora do recreio, rendia um guaraná; só que eu queria também um chocolate.
E como fazer para ir e voltar da escola de graça? Existiam diversos meios. O melhor deles era fazer um "fundo de reserva" para comprar mensalmente uma caixa de charutos para o cobrador amigo e as viagens saiam de graça para a molecada.
- Ei, cobrador! Aquele moleque ali ó, não colaborou com a vaquinha. É um frescão!
- Moleque safado! Vai logo pagando a passagem que aqui não tem moleza não!
Minha mãe diz ao meu pai:
- Acabo de ver o bonde passar; estava quase vazio, com o cobrador sentado no banco, de pernas cruzadas, fumando charuto! Que ridículo!

Saio de fininha até o fundo do quintal para dar uma gargalhada!
O cobrador amigo não trabalha hoje. É o seu dia de folga! Deu zebra! A solução é dar uma de "Miguel". Você fica no estribo, sempre na posição contrária ao cobrador, e vai circulando para ele não te pegar. A isto se chama "chocar" o bonde. O problema é que certos cobradores detestam "chocadores". Aí, começa um pega pega dentro do bonde e senhoras a bordo põe a boca no trombone contra estes malditos pivetes. Neste caso, se você não tem um trocado extra no bolso, é melhor ir para casa a pé.
Os bancos do bonde são para adultos, meninas e maricas. Moleque que não é marica gosta de viver perigosamente e anda no estribo. Jamais desce no ponto; só desce do bonde andando.
- Mãe, tchau, estou indo para a escola.
- Vou com você; tenho que fazer umas compras na Lapa. Nesse dia o negócio é ir quieto e sentadinho ao lado da mãe. O maldito moleque que você mais detesta está no estribo, do seu lado e diz baixinho:
- Maricas...
- Moleque, ai se te pego no estribo do bonde!
- Eu não ando no estribo, mãe! Os outros, sim, mas eu vou lá dentro, sentadinho!
Grande mentira!
Chegando à escola, você percebe que a porta está cheia de alunos a alunas. No meio deles está aquela super garota de quem você está a fim. Você vai descer do bonde andand
o, só que de costas. Como se faz isso? Coloque-se no estribo, de costas, no sentido contrário ao do bonde e prepare as pernas; uma, bem para frente e a outra, o mais para trás que você conseguir. Salte lançando todo o corpo para frente como se estivesse se jogando no chão e apóie se no primeiro momento somente na perna que estiver à frente. Devido a inércia, o seu corpo tenderá ir para trás, ocasião em que você deverá travá-lo com a perna de trás. É um belo salto em que o figurante fica no lugar e não precisa dar aquela feia corridinha para vencer a inércia, quando salta de frente. A alegria é completa quando você arranca um Oh! de admiração da garota em questão. Conselho de amigo: se você não sentir firmeza não o faça! Pode ser desastroso.
O motorneiro do período da manhã está sempre de cara amarrada. Um dia, de saco cheio de tanta molecagem, pára o bonde e prega o maior sermão. Nós o detestamos. À medida que fomos crescendo, porém, começamos a gostar dele. Percebemos que ele estava preocupado com a segurança da garotada.
A linha era um caco velho. Motorneiro novo metido a corredor era sinônimo de descarrilamento na certa! Não posso jurar, mas creio que a média era de um descarrilamento por semana!
Hoje o motorneiro é o Mário. Legal! Sou amigão dele e posso ficar na cozinha junto com mais um amigo. Já sei, você não sabe o que é cozinha! É o seguinte: o bonde tem duas cozinhas, uma em cada ponta, de onde o motorneiro dirige o bonde.
O Mario é diferente! Dirige no maior pau! Não tem linha ruim para ele. Sabe onde brecar e acelerar nos lugares exatos. Dirige na velocidade máxima possível em cada trecho e tem um orgulho: nunca descarrilou! Por onde andará meu amigo Mário? Gostaria de dar uma cópia desta crônica para ele.
Quando meu filho Sérgio tinha 8 anos, levei-o ao museu da CMTC e lá estava e
m exposição um bonde igualzinho ao da Linha Anastácio. Todo empolgado comecei a contar estas historias a ele. Embasbacado, sem tirar os olhos do jurássico veiculo, exclamou:
- Pai! Você ia à escola com ele? Porque tiraram? Porque você pôde andar nele e eu não? Dei um sorriso amarelo, deixei cair uma gota de lágrima e percebi o quanto eu era feliz e não sabia.

Observação:
- Não participei de todos os episódios aqui contados, mas dos que não participei, eu presenciei. Os mais perigosos eu evitava. Os acidentes mais graves se resumiram a tombos a escoriações, felizmente.

Por Roberto Flugge

12 comentários:

Miguel S. G. Chammas disse...

Roberto, eu participei de todos as aventurescas operações com bondes da Rua Consolação, os bondes da Rua Augusta não se prestavam a elas, eram "camarões". Edescerdo bonde de costas eu fazia no lugar mais perigoso, em frente ao Cine Odeon, uma reta sem aclives nem declives.
Valeu esta recordação.

Soninha disse...

Olá, Roberto!

Seja bem vindo!
Fiquei feliz por você me autorizar postar seus textos,lá do SPMC.

Mas,que aventura, heim!
Os bondes não são do meu tempo, mas,meu amado pai nos contava sobre eles,sobre as idas e vindas de bonde para ir trabalhar ou passear.
Minha mãe também nos relatava sobre eles.
Em minha infância e adolescência, via,ainda,os trilhos do bonde, no meu bairro, assim como em vários bairros de Sampa.
Muito legal.
Obrigada.
Muita paz!

Arthur Miranda disse...

Que ótima narrativa Roberto. Gostosa de ler, e o grande atrativo os são sempre os bondes, também estive a uns três anos passados no Museu da CMTC, e adorei ver os Bondes principalmente o camarão famoso, o Gilda. Historia muito bem contada, parabéns e seja bem vindo no Blog.

Modesto disse...

Flugge, quando vc começou a falar de bonde, me entusiasmei, em matéria de bonde, só não peguei o "puxado a burro" porque nasci alguns anos depois. Tudo o que vc contou a respeito de travessuras, fiz todas. Mas, vou confessar uma coisa, ao citar o nome da linha, "Anastácio - 37", pensei, este cara vai falar de bondes do Rio de Janeiro. Nunca tinha ouvido falar dessa linha. Como vc bem colocou, ela tinha um percurso, vamos dizer, "doméstico", apesar de eu conhecer os locais citados. Seu texto é muito bem redigido e, como estreante no "Memórias...",
saudo-o, esperando mais histórias daquela época. Parabéns, Roberto.
Modesto

Luiz Saidenberg disse...

Benvindo, Roberto, com uma bela estréia...era muito legal mesmo a época dos saudosos bondes. Agora vc pode ir até Santos, pegar um na Pça. Mauá, e relembrar como era sua marcha, o ranger nos trilhos, o cheiro de óleo. Em Campinas, sempre chocávamos os bondes, na volta do colégio. E descer em movimento era de lei. Isto quando uns alunos mais bandidos não removiam paralelepípedos do trilhos, defronte ao colégio, para fúria do condutor! Abraços.

suely schraner disse...

Bela narração. Me lembrei do guaraná caçulinha e do doce Neuza. Tempos de guaraná de rolha, eita! Parabéns.

Wilson Natale disse...

Flugge: Delícia de memórias e de molecagem! "Choquei" muito caminhão e ônibus. Bonde não... Que inveja!
Benvenuto! Que esta memória seja a primeira das tantas que eu gostaria - gostaríamos - que você enviasse.
Abração,
Natale.

Leonello Tesser (Nelinho) disse...

Roberto, seja benvindo ao grupo, parabéns pela narrativa, eu também choquei muito bonde aquí npo Ipiranga e tinha muita prática em descer de costas com o bonde em movimento, abraços, Nelinho.

MLopomo disse...

Os bondes tem muitas historias desde que eles aram de propriedade da Ligth. Depois que passou para a CMTC em 1947, a coisa degringolou. Foi naquele ano que quiseram aumentar o preço da passagem de 0,20 para 0,50. Foi um tremendo quebra-quebra, que foi até para os ônibus. Meu pai viu um menino ser morto por um motorista no Anhangabaú. Mas voltando aos bonde usei muito aqueles trambolhos de ferro e madeira (mais ferro) Eu o pegava na praça Clovis Bevilaqua a caminho do Brás onde seu estudava SENAI. Já antes de ele chegar ma Praça Clovis eu o pegava na Rua Irmã Simpliciana, a caminho do Brás eu e outros vadios alunos da escola pulávamos do estribo cada vês que o cobrador estava perto da gente, era pular e subir em seguida. Parecia uma gincana. Na Rua do Gasômetro pulávamos em frente a Rua Monsenhor Andrade onde ficava a escola. Um dia cai do estribo porque o bonde estava muito rápido. Rolei no asfalto e vi i zunido do reboque passando pertinho da cara. Os carros brecavam e minha mãe deve ter ficado com um forte zunido por ser muito xingada. Tinha também o bonde 40 J. Paulista, que virava a rotatória da Praça Veneza, um passava menos de um metro do outro. Um dia um bonde deu uma rabeada num entregador de mercearia e o coitado morreu. The End.

MLopomo disse...

Para completar, não posso deixar de falar da musica feita em homenagem ao Bonde. “O bonde São Januario carrega sempre um Otário, ele que vai trabalhar!” Era ainda a ditadura Vargas. O censor o chamou por ordem presidencial,e com um papel escrito mandou ele mudar a letra. E, ele obediente fez a alteração como mandava o bilhete que recebeu, e a musica ficou assim: “O bonde São Januario carrega sempre um operário, ele que vai trabalhar!”.

Zeca disse...

Olá, Roberto!

Que delícia de texto! Me fez lembrar da época em que, aluno do curso primário no Grupo Escolar Almirante Barroso, pertinho da Igreja São Judas Tadeu, no Jabaquara, eu também fazia todas as traquinagens tão bem contadas por você. Eu "chocava" o bonde aberto que passava alí em frente, até um pouco mais acima, onde ele virava, tomando outro rumo. Era hora de saltar, exatamente do jeito que você contou, o que, entretanto, não me livrou de alguns tombos onde ralava os joelhos e os cotovelos. O difícil era inventar uma história para contar em casa, pois minha mãe não podia nem sonhar com o filhinho "chocando" bonde... rs.

Seja bem vindo e traga outras histórias!

Abraço.

Anônimo disse...

Olá
Interessante a história do Bonde 37 o Anastácio.
Não sei se você tem essas fotos do bonde da linha 37 mas de qualquer forma ai vai

https://www.facebook.com/vilaanastacio/photos/a.866291180047698.1073741878.438590116151142/778735498803267/?type=3&theater

https://www.facebook.com/vilaanastacio/photos/a.771859632824187.1073741877.438590116151142/778728812137269/?type=3&theater

e do ônibus lapa-armour

https://www.facebook.com/vilaanastacio/photos/a.866291180047698.1073741878.438590116151142/594658813877604/?type=3&theater

Abaraços