quarta-feira, 27 de setembro de 2017

A Batalha da Campanella

Imagem tirada do blog Falcão do Morro Itaquerense - Seleção Juvenil de 1963

Itaquera 1966, 23 de dezembro.
Sou acordado logo cedo por minha mãe e de imediato convocado por ela para irmos ao Mercadinho do SESI ao lado da padaria Vencedora para efetuarmos as compras para o almoço de natal que seria realizado na casa da tia Terezinha sua irmã mais velha.
Saímos de casa com duas enormes sacolas e na descida do Morro do Falcão passamos pela casa da prima Mariinha para pegar meu primo Paulinho, conhecido em Itaquera por Paulinho Porrete, pois ele iria nos ajudar a carregar as sacolas na volta para casa além de levar a lista de compras que ficara a cargo de sua mãe.
Chegamos ao SESI e como era de se esperar nos deparamos com enormes filas para efetuar as compras de natal, tendo em vista que aquele estabelecimento vendia a preços populares.
Enquanto minha mãe fazia as compras Paulinho e eu fomos nos sentar ao lado das carroças de carreto que ali tinham o ponto, e nos ocupamos em ficar jogando pedrinhas, ou melhor, saquinhos, pois eu sempre carregava os 5 saquinhos que eram preenchidos com areia, que minha mãe havia feito para substituir as pedrinhas.
Compras feitas, dona Nair minha mãe entregou as duas sacolas e ordenou a mim e ao Paulinho, que fôssemos direto para a casa da tia Terezinha levar as compras, e que não era para pararmos em lugar algum. Depois de deixar as sacolas lá poderíamos então sair para brincar.
Ordem dada ordem a ser cumprida. Colocamos as sacolas atravessadas num cabo de foice que havíamos levado para esta finalidade e marchamos em direção a Vila Corberi.
Passamos pela estação de Itaquera e no final da mesma Paulinho sugeriu que fôssemos direto pela linha do trem, que cortaríamos caminho. De imediato concordei e lá fomos nós. Esta mudança de rota foi o ponto chave para tudo que ocorreu e que vou relatar a seguir.
Ao passarmos pelo pontilhão sobre o Rio Verde, neste lugar o rio atravessava da Tomazzo Ferrara para a 25 de Março, e lá havia um túnel onde no seu término tinha uma queda que os garotos utilizavam para escorregar, nos deparamos com o Tampinha lutando contra o Landóia da Campanella dentro do rio.
Paramos para observar a luta entre os dois garotos e aos poucos foram chegando mais meninos da Campanella que começaram a atirar pedras em nós que estávamos lá no barranco da linha do trem. Vendo que a turma da Campanella ia crescendo, Tampinha interrompeu a luta corporal no rio e subiu para a linha onde nós estávamos e pediu para irmos buscar reforço.
Pegamos as duas sacolas e correndo descemos pelo campo do Figueirinha e fomos na casa do tio Bruno, onde deixamos as sacolas guardadas e convocamos o Bruninho Carijó, o Bilú irmão do Lauro e mais uma “renca” de garotos que estavam jogando bola no Figueirinha e marchamos em disparada para o pontilhão.
Em maioria e com farta munição de pedras de brita que sustentavam os dormentes da linha do trem passamos a levar vantagem na batalha, e aos poucos os garotos da Campanella foram retrocedendo e nós avançando, até que eles bateram em retirada subindo pela trilha da Biquinha que ligava pelo meio do mato a 25 de Março com o alto da Avenida do Contorno.
Empolgados, enchemos nossos bolsos de pedras e partimos em perseguição aos fujões, e não percebemos que estávamos entrando em terreno do inimigo. Dito e feito. La no alto já na Avenida do Contorno, perto do Campo do Botafogo os garotos da Campanella haviam juntado uma turma maior que a nossa e bem armados de paus e pedras.
Meia volta e desta vez partimos em retirada para o nosso lado, porém meu primo por ser portador de paralisia infantil de uma das pernas, não podia correr na mesma velocidade dos demais garotos, e sendo assim ele e eu ficamos mais para trás da fila. Ao chegarmos na trilha da descida da Biquinha, vendo que seríamos alcançados pelo inimigo, Paulinho se atirou de carrinho em uma grande touceira de Capim Angolão que havia ao lado do barranco e até mesmo por instinto eu fui atrás.
Ali escondidos vimos cada um dos garotos da Campanella passarem na trilha ao nosso lado sem nos verem. Após todos terem passado, não sei até hoje por qual motivo, o Paulinho cismou de sair do esconderijo e ir ao encontro do inimigo pela retaguarda. Ele sacou de seu bolso um canivete suíço que havia ganho de seu pai do qual nunca se separava e iniciou a marcha em direção aos garotos que agora estavam já na 25 de Março ao lado do rio travando uma batalha de pedras contra a turma do Falcão que estava sobre a linha do trem.
Desta vez eu titubeei, pois sendo um garoto magrela, não teria a menor chance o corpo a corpo contra aqueles garotos, diferentemente do Paulinho que compensara a perda de força na perna afetada por uma força descomunal nos braços, e encará-lo no braço era para poucos.
De onde eu estava podia ver meu primo aproximando-se da retaguarda do inimigo, até o exato momento em que ele desapareceu de minha visão e fora cercado por um grupo menor de garotos que defendiam esta retaguarda. Neste momento fui invadido por uma coragem súbita e com uma pedra em cada mão disparei em socorro ao Paulinho.
Ao aproximar encontrei Paulinho no chão gemendo de dor e gritando: - Quebrei a perna, quebrei a perna, corre chamar minha mãe.
Não sabia se obedecia ao Paulinho ou partia para a porrada contra os moleques, quando o Landóia falou: - nem tocamos nele, ele caiu sozinho. Versão esta que Paulinho de imediato confirmou.
Parti em disparada em busca de socorro, peguei minha mãe em casa e em seguida passamos na dona Olga cabelereira onde estava minha prima Mariinha a mãe do Paulinho fazendo o cabelo par a festa de Natal. Saímos então todos correndo e desesperados para a 25 de março, prima Mariinha ainda com os bobs no cabelo. E minha mãe se descabelando.
Encontramos o Paulinho já na beira da rua sentado em uma cadeira que fora providenciada pela mãe do Anibal e do Zé Zoiudo que moravam ao lado do rio.
Paulinho estava pálido e suando frio, mas pode contar que ao aproximar dos moleques, com o canivete em punho decidido a enfrenta-los e espetar o primeiro que chegasse perto, escorregou no barro e caiu sobre a perna afetada pela paralisia e quebrou o fêmur.
Os moleques a esta altura já haviam de dispersado temendo a consequência do ocorrido que ficara muito sério a partir deste acidente.
Fui incumbido de correr até a casa do seu Gabriel para que socorresse o Paulinho em seu taxi e dei sorte que seu Gabriel estava chegando para o almoço e de imediato atendeu a meu pedido.
Paulinho foi levado para o Hospital das Clínicas onde foi internado e teve que passar por uma grande cirurgia para implantar uma placa de platina de mais de 20 centímetros para religar os ossos do fêmur, placa esta que está em sua perna até hoje.
O Natal naquele ano foi triste, mais entendemos que a providência fora divina, pois se meu primo não caísse e quebrasse a perna poderia ter feito algo terrível com seu canivete.
Assim terminou a Batalha da Campanella. Paulinho, ou melhor Dr. Paulo Douglas Primerano Jr, hoje aos 66 anos é renomado advogado em Boituva. Tampinha continua em Itaquera desfilando com sua carrocinha de amolar facas e indo a todos os jogos do Falcão do Morro. Bruninho Carijó e Landóia já morreram, dos demais não tenho notícias.
Fica aqui uma enorme saudade do tempo de moleque e de Itaquera de antigamente.


Por Marcos Falcon

5 comentários:

Memórias de Sampa disse...

Olá, Falcon!

Sua infância recheada de aventuras infantis e juvenis, mostrada aqui de uma forma bem humorada e com gosto de ler mais sobre as pessoas que fizeram parte de sua vida.
É sempre bom recordar e ver que , na época que você nos relatou, tinha esta possibilidade de sairmos pelas ruas com mais segurança; nossos pais nos delegavam responsabilidade e nós as cumpríamos piamente, sem deixar de sermos fiéis à nossa turma de amigos que, como você nos mostrou, ainda fazem parte de sua vida.
Paulino, Dr Paulo, heim! Abraço pra ele, ok?
Muito bacana. Abração, Falcon!
Muita paz!

Sonia Astrauskas

Anônimo disse...

Olá, amigo Falcon!
Lendo teu relato senti nas boca o gosto da saudades. Velhos tempos das brigas de turmas, eu vivi muito dessas turmas, principalmente a minha Turma da Rua Paim que brigava muito com a turma da Rua Frei Caneca. Tinha Também a Turma do Morro do Careca e muitas outras do velho Bixiga.
Graças a Deus que as nossas brigas eram menos violentas.
Tua aventura, se não contasse coma a mão da Providência Divina poderia ter acabado bem mal.
Mas, na verdade, teu texto foi deliciioso. Parabéns outra vez.

Wilson Colocero disse...

Que lindas memórias a infância e a juventude nos deixam! E quantas aventuras e emoções podemos reviver, agora sem o risco dos perigos que então nos assustavam. As "rixas" entre cidades, bairros e até entre turmas de ruas diferentes eram na verdade destinadas a mostrar a "valentia" de cada um, que hoje, infelizmente, se expressa de forma tão mais violenta e dramática, fazendo com que aquelas "batalhas" sejam hoje doces recordações...
Obrigado por ter nos levado ao "olho do furacão" com tanta autenticidade!

Nelinho disse...

Pois é caro Falcon, antigamente em alguns bairros existiam "turmas" que se degladiavam todos os dias, mas vocês foram corajosos embora com prejuizo físico para o seu amigo, aquí no Ipiranga também existia isso, não se podia atravessar a Rua Bom Pastor no lado de cima, bons tempos caro Falcon.

Unknown disse...

Falcon, que experiência né! Vc teve uma infância recheada de aventuras e hoje tem muito a nos contar! Gostei muito de saber dessa também.