A
história que vou contar é verídica, foi publicada pelo jornal "O Estado de
São Paulo" de nove anos atrás, mais ou menos, com uma foto acompanhada de
texto. Conto a mesma narrativa com um sabor romântico.
Osmar
saiu da redação bastante revoltado, que se localizava no centro de São Paulo,
nas proximidades da Rua Timbiras ou Aurora, Couto de Magalhães.
-
Esse diretorzinho meia-boca, recém formado, ainda cheirando a leite ninho,
dando ordens a veteranos como eu, esnobando minha experiência de mais de 30
anos... “Sr. Osmar, quero esse texto pronto, até duas horas da tarde, nem um
minuto mais”. Ah!
-
Realmente, as coisas mudaram muito.
-
No meu tempo... - E lá foi Osmar divagando, com seus neurônios retesados, mas
já preocupado com o texto.
Uma
escrita para, no mínimo três colunas num quarto de página. Precisava encontrar
na rua alguma coisa diferente, algo sem ser roubo, sequestro, crime passional,
drogas... Esses assuntos cansavam os leitores.
Imbuído
do forte propósito de escrever algo diferente, armou-se de uma caneta Bic e de
um bloquinho, e rumou direto para o bairro de Santa Efigênia, no velho e sempre
"acolhedor" (para esse tipo de serviço) centro da cidade, onde ocorre
de tudo e se não ocorre, fazem ocorrer.
Andando
pelas ruas, chegou a Couto de Magalhães e viu um lance ocasional bem esquisito:
um soldado subir numa longa escada, até uma janela do primeiro andar de uma
hospedaria, entrar e, em seguida, lançar uma mochila para uma mulher que a
apanhou, alçou-a no ombro e foi embora, sem dizer nada.
A
hospedaria apresentava a entrada barrada por um muro recém-levantado. “Que
coisa mais esquisita”, pensou Osmar. Pensando e agindo de imediato, não se fez
de rogado. Seus passos rápidos alcançaram a mulher ao dobrar a primeira
esquina, então, Osmar interpelou-a de bate-pronto:
-
Desculpe, minha senhora, mas acabei de assistir há pouco, uma...
- Eu sei, - interrompeu a moça- e o que é que você tem com isso?
- Eu... eu... na...nada... Só queria...
- Queria o quê? Não estou a fim de papo-furado, portanto, não enche o saco.
Você é da polícia?
- Eu não, eu sou...
- Não me interessa quem você é, – interrompeu a mulher - vá cuidar da sua vida
que eu mesma cuido dessa miserável de vida que levo. Já não chega o que aqueles
bastardos me fizeram? Ainda vem você, com essa cara de assistente de
educandário religioso, querendo o que?
Enquanto
conversavam, Osmar notou que, apesar da raiva, ela andava no mesmo passo que
ele, não dando nenhum sinal de querer se livrar dele. Animou-se.
-
Escute, deixe-me falar um pouco. Pensa que só você tem problema nessa
pestilenta de vida?
- Espere aí, assim... Eu, eu...
- Espera aí você! - cortou Osmar - Vendo seu rosto de perto percebo que tenho
idade pra ser seu pai, portanto, vai me ouvir na marra. Já está na hora do
almoço, aceita o convite?
Ela
olhou pela primeira vez para o rosto de Osmar e resolveu ceder.
-
A troco de que?
- De nada. Por quê?
- Vai me dizer que você não sabe o que faço...? O que sou?
- Não sei, mas desconfio... Pelo seu repertório...
- Isso mesmo. Uma prostituta, como vocês gostam de "embelezar" o
nome.
Neste
momento, passavam por um restaurante e os dois entraram sem falar nada, como se
a sequência natural da caminhada fora aquela. Osmar tomou logo a iniciativa,
perguntando:
-
Me diga, qual a "jogada" do soldado de te atirar a mochila pela
janela e você se mandar com a maior cara de pau deste mundo?
Ela
encarou-o bem nos olhos deixou, sem se aperceber, transparecer um semblante
triste, amargurado, sofrido, bochechas encovadas, olhos a marejar, lágrimas se
formando nos cantos, cabelos lisos em desalinho e atendendo a um sinal de seu
subconsciente, resolveu acreditar naquele cara. Sem responder, pediram o prato,
comeram em silêncio e antes de pedir a sobremesa, resolveu falar.
-
Olha, ó cara, eu... Como é mesmo teu nome?
- Osmar... E o teu?
- Verônica.
- Bonito nome, Verônica. Mas... Continue.
- Osmar, estou numa enrascada...
- Há quanto tempo vem isso? - obtemperou Osmar.
- Quase um ano... Você está anotando tudo? Por quê? – disse Verônica, um pouco
receosa.
- Sou jornalista, não se preocupe... Não irei prejudicá-la.
- Mais do que já estou, você não vai conseguir... Bem, vim de Minas, de uma
cidadezinha do norte do estado, com meu marido, deixando...
- Você é casada? – interrompeu Osmar.
- Mais uma interrupção, juro que vou...
- Calma, calma, eu só... Estou surpreso, não podia imaginar você, uma “mulher
da vida” com...
- Com marido, não é mesmo? - interrompeu Verônica, um tanto quanto incomodada
com o comentário de Osmar - Não me venha com esse papo de "mulher da
vida", "profissão mais antiga" ou "mulheres de vida
fácil", hipócrita duma figa! Eu só não fui embora ainda, porque estava com
muita fome!
- Está bem, não vou te interromper mais, juro. Continue.
Olhou novamente nos olhos dele e pensou: "esse cara é diferente, não sei o
porquê, mas confio nele" e prosseguiu:
-
Vim pra São Paulo com meu marido e deixamos três filhinhos pequenos com minha
mãe. Logo que pudesse mandaria dinheiro. O Julio, marceneiro, encontrou logo
serviço, mas eu não... Mal sei escrever o meu nome, o melhor que pude arrumar
foi de garçonete, num bar aí dá "boca". Moramos, numa pensão no Brás
até acontecer o pior.
Verônica
suspirou e continuou:
- Um dia eu estava trabalhando até mais tarde, outra garçonete havia faltado e
o dono do bar pediu para eu ficar até as dez. Não tinha como avisar o Julio e,
não querendo perder o emprego, resolvi ficar e depois iria explicar para o
Julio e ele iria entender. O Julio apareceu lá pelas oito. Expliquei e ele
entendeu. Pedi pra ele esperar sentado numa mesa, no fundo do bar. Em dado
momento, um bêbado entrou no bar e mexeu comigo. Estou habituada e não liguei.
Mas o Julio não deixou por menos. Foi tirar satisfação, brigaram e o Julio
pegou seu canivete e acertou o pescoço do homem que, esvaindo-se em sangue,
morreu antes de chegar a ambulância. Preso, pegou cinco anos por ser primário e
eu fui despedida do emprego. Não sabendo fazer nada, sem escola e precisando
mandar dinheiro pra minha mãe, resolvi "me vender". Arrumei um quarto
nessa hospedaria, vinte e cinco "pratas" por dia, explorada por um
patife de um paraguaio que mantinha um mercado negro de paraguaias.
Desconfiados com as estrangeiras, alguns policiais apareceram e eles fecharam,
com um muro, o “local do Sr. Gutierres”.
A
jovem fez uma pausa, fixou o chão. Após uns instantes, olhou no rosto de Osmar
e disse:
- Cheguei hoje de manhã, disse aos guardas que tudo que eu tinha estava no
quarto e ele ficou com dó de mim. Arrumou uma escada e o resto você já sabe...
Agora me diga: o é que eu vou fazer com essa minha maldita vida?! Oriente-me,
por favor... – Verônica parou, levantou a sobrancelha - E você me fez tantas
perguntas e quero saber: você acredita em mim?
- Acredito. Você não teria condições de inventar uma história dessas... Mas...
Seu marido sabe de tudo isso?
- É claro. Quando mando dinheiro pras crianças, fica tudo bem. E, bem, eu gosto
muito dele... Às vezes vou à penitenciária, nos dias de visita – com lágrimas
nos olhos, Verônica exclamou - Mas tenho uma vida maldita, não é? Bem, e agora?
Vai querer...? Costumo cobrar cinquenta "pratas", mas, pra você, não
vou cobrar nada, só que não tenho lugar...
- Já disse que não quero nada de você, apenas um "bate-papo"... Mesmo
porque... Ah, deixa pra lá...
- Espera aí, Osmar! Está me esnobando por quê? Sou tão feia assim? – falou a
moça, surpresa.
- Não, não. É que eu... Não posso me envolver contigo e com nenhuma outra
mulher... Bem, tenho outro amor e não sou correspondido.
- Também não precisa ser tão fiel assim! - exclamou Verônica - Hoje em dia,
isso é tão comum e... Posso saber quem é “a gata”?
Osmar ficou em silêncio, com uma expressão sem graça, e respondeu:
- Trabalha comigo é... “Um gato...”
Verônica
descansa o garfo no último pedaço de sobremesa. Atarantada, levanta-se, vai
embora sem se despedir, pensando: “Sempre tem alguém pior do que a gente.”.
Osmar paga a conta, anota os últimos itens para o texto, saboreia
antecipadamente a cara do diretorzinho ao imaginá-lo lendo seu texto. E, ainda,
fica louco pra contar sua experiência do dia para sua esposa, principalmente a
parte final da conversa com a jovem Verônica, a única ficção da narrativa.
Por Modesto Laruccia