segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Novos velhos tempos da "Dita"




(- “Encosta ai! Documentos na mão” !)

Eu conservara os meus documentos com amor e carinho até o mês de março de 64. Até então, tudo parecia novinho em folha.
Nos meus tempos do Primário não havia Carteira de estudante. Era somente o Boletim que levávamos para casa, no fim do mês, para que os pais assinassem e, no dia seguinte, o devolvíamos. Então, o único documento que eu usava era o Registro de Nascimento. E o usava quando ia sozinho às matinês dos cinemas do bairro, para provar que era maior de 10 anos, ou quando viajava com meus pais para o litoral, ou para o interior. E, como eu ia muito às matinês, para preservar o Registro de Nascimento original, meu pai me presenteou com uma segunda via.
Nos tempos de Ginásio eu tinha a famosa Caderneta de Estudante: de identificação, presença, notas e observações. Mas, como era fácil falsificar a data de nascimento (Um palito, com algodão na ponta, embebido em água sanitária, passado levemente sobre o ano escrito e ele desaparecia. Deixava-se secar e, depois era só escrever um novo ano. Então se podia ter 14 ou 16 anos.), alguns cinemas exigiam também o Registro.
Depois, a Carteira de Trabalho do Menor substituiu o registro. Exceção feita a Carteira escolar que nos dava direito a pagar meia-entrada.
Mas, em 31 de março de 64 (Na verdade, 1º de abril – “dia da mentira”.) acontece o “glorioso”, o “libertador” golpe militar que deu origem a uma Ditadura violenta que não tinha nada de “redentora”...
Fins de 1964 - Minha Carteira de Trabalho do Menor estava um “bagaço”.  A Carteira de Estudante então estava na iminência de desfazer-se, despencar. O Registro então, todo puído!É que, “por dá cá aquela palha”, os “milicos” nos paravam constantemente e, de maneira grosseira e descuidada, examinavam os nossos documentos.
No meu caso, pela altura e por aparentar mais idade do a que tinha, a coisa ficava mais complicada quando eu era abordado pela PE (Polícia do Exército).  –“Cadê o Certificado de Alistamento Militar”?... Não tinha e nem tinha idade para tê-lo. Então começava a demorada e minuciosa “olhada” nas carteiras de trabalho e estudante. E, claro, no registro de nascimento. Comparado os três documentos eu ouvia o famoso “Está liberado! Pode ir”!...
De março a outubro de 64, eu já havia “detonado” mais três  vias de registro de nascimento (Na verdade, 3ª, 4ª e 5ª vias). Chegara o momento de  tirar a Carteira de Identidade.
Aos 16 anos, muito feliz, eu segurava a minha novíssima Carteira de Identidade, emitida em 03 de novembro de 1964, em São Paulo – SP., nos Estados Unidos do Brasil, hoje República Federativa do Brasil. Viva!
Eu tinha uma Cédula de Identidade! O Registro de Nascimento fora finalmente aposentado. Mas, na prática, mudou quase nada. Facilitou sim, para os “milicos” que, quando me “enquadravam” exigiam impudicamente que eu lhes exibisse a minha Identidade, a Carteira de Trabalho e  de Estudante. Só faltavam pedir a Carteira de Cadastro da CMTC que me dava direito aos passes de ônibus...
Naqueles “dias maravilhosos” da ditadura, a conversa nas casas eram as mesmas: “Filho, você vai sair”?  “Vou!”  “Pegou tooodos os documentos”?  “Peguei, sim”...  “Pegou meesmo, meu filho”?  “Orra, mãe! Para com isso! Eu não sou retardado”!  “Falo para o seu bem, filho. Se “eles” lhe prendem, adeus ”!...
E “vivas” à ditadura que foi aumentando o fardo do povo e o fardo dos nossos bolsos, acrescentado mais documentos!
Em 1965, entre os documentos apresentados aos “omi” e aos “milicos” estreei o meu mais recente documento: o Certificado de Alistamento Militar. Certificado que não me agradava nada, diante da perspectiva de me transformar em um “reco”.
Em março de 1966, tive em mãos a minha primeira Carteira Profissional como maior e o Título de Eleitor. E fiz parte da lista dos convocados excedentes do Exército. Fui lá, no Cambucí, prestar o Juramento à Bandeira e retirar o meu Certificado de Reservista de 3ª categoria. Fiquei tão feliz que cheguei à minha casa gritando: “Allelluiah”! E, embora nunca gostando de dirigir, vale comentar aqui, que é desse ano a minha Carteira Nacional de Habilitação.
1968 foi o ano das “RPM” (revoluções por minuto). Era chegar ao Centro à noite e ouvia-se a miúdo: “Encosta ai, para averiguação”!... “Identidade? Confere! Profissional? Confere! Estudante? Confere! Reservista? Confere! Eleitor? Confere!”... Perdia-se um tempão reservado àquilo que pretendíamos que fosse uma noitada  ou fim-de-semana feliz! E, muitas vezes éramos premiados: em intervalo de poucos minutos, mais adiante, “encostávamos para mais uma averiguação”.
Em 1969 – tempos do AI5 - a coisa ficou preta. Vez ou outra, com ou sem os documentos éramos convidados a fazer um “tour” dentro de um “camburão”. Íamos à delegacia, para uma averiguação mais detalhada. Pelos nossos nomes procuravam por “capivaras” (fichas criminais), via telefone com o DOPS. Passavam-se horas até ouvirmos o tal “nada consta”. Sem um “desculpe pelo incômodo”, nos mandavam embora.
Em uma dessas “viagens”, um policial da Civil nos aconselhou a pedir um Atestado de Idoneidade. Mais que depressa tratei disso!
E o atestado funcionou muitas vezes. Mas não era um salvo-conduto. Com ou sem documentos, com ou sem atestado fui parar na delegacia... Para averiguação. Quase cheguei a ficar “sócio” da antiga delegacia da Rua Frei Caneca e amigo do meu xará, o delegado, que “tão bem” nos recebia... Ahahahahaaaa!
Mais tarde a ditadura soltou o faminto “Leão” do IR. Mais um “troço” pra carregar. Agora tínhamos CIC ou CPF ou CPJ...
E caminhei eu, caminhamos nós pela ditadura levando nos bolsos todos os documentos a que tínhamos direito. Documentos tão usados e manuseados que necessitavam de segundas e terceiras vias. E o mais importante: As velhas Carteiras Profissionais deterioradas,  remontadas, rearranjadas com cola ou fita “Durex” ficaram guardadas em gavetas preservando os velhos registros dos empregos que tivéramos...
2011 – Saio às ruas carregando os meus documentos: Crachá, Identidade, CPF, Cartão do Plano Médico, Cartão magnético para a condução... Vou andando, com aquela sensação de bolsos vazios e a impressão de haver esquecido algo... Logo nossos bolsos vão ficar mais vazios com a nova Cédula de Identidade que englobará todos os outros documentos.




Por Wilson Natale

17 comentários:

Soninha disse...

Olá, Wilson!

Cada época com suas necessidades, né? Mas, nem o passar das décadas faz dos policiais diferentes nos procedimentos. Embora, hoje em dia, sejam muito mais simples os documentos, são ainda muitos. Principalmente quando vamos utilizar o carro. Tem que levar um calhamaço de docs.
Tomara que fique mais simples mesmo, daqui pra diante.
Valeu, Natale.
Muita paz!

Unknown disse...

Ainda ando com todos os meus documentos, que são originais, raridades.

Bernadete disse...

Perfeito seu texto! Quanta papelada não é? Seria bom se pudéssemos, como diz a música do Caetano..."caminhar contra o vento, sem lenço sem documento" Um abraço.

Anônimo disse...

Não tem jeito, meu querido Natale, aquele tempo maldito se impregnou na nossa carne, nas nossas memórias, nos nossos pesadelos. Eu também já tratei muito desse assunto em crônicas, mas parece que , de tão amargo, é inesgotável. E o pior: eu sempre duvido do caráter daqueles que defendem a ditadura. Abraços, Vera Moratta.

Wilson Natale disse...

Pois é, SONINHA.
Falou-se tanto, naquele ano de 2012, do tal documento integrado e até hoje, nadinha.
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

DARCY:
Tenho todos os doc.originais bem guardados. Até a carteirinha de passes da CMTC. (risos)
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

BERNARDETE:
Sonho com o dia em que, em toda a parte, vai haver uma célula sensível que, ao toque da mão ou dirigida aos nossos olhos, dará todas as informações sobre nós. Ai, então, caminharemos contra o vento,sem lenço e sem documento.
Valeu!
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

VERA:
Embora eu ironize aquele tempo, realmente foram anos difíceis.
A maioria que defendem a ditadura, são aqueles que nunca tomaram consciência de que vivíamos uma censura violenta - lembra?
E até hoje nunca falaram dela, tentndo mostrar o porquê de tudo ser "maravilhoso".
Valeu!
Abração,
Natale

Laruccia disse...

Caríssimo fratelo, ti voglio dire che, la tragedia di nostro tempo, si chiama: BUROCRACIA.
TEVE UM GRANDE SENADOR QUE CHEGOU A IMPOR O FIM DA BUROCRACIA.
Morreu e com ele a grande conquista.
Infelizmente, Natale, veja bem, por traz de cada cartório, uma legião de antecedentes detentores do direito de explorar um autenticador, herdado do pai, do avõ, do bisavô e por ai a fora. Centenas de milhares de documentos, devidamente reconhecidos... por quem? pelo cartório. Vc quer abrir um? como se faz... Vc precisa ser, antes de mais nada, descendente de herdeiros premiados pelas "Capitania hereditárias". Não é? alora, áqua la pipa, va, porta via il sacheto, posto de piangere non'ne per te.
Wilson, parabéns vc mexeu numa chaga que dificilmente vai desaparecer. Un bacio in testa, auguri.
Laruccia

Wilson Natale disse...

LARÙ, bello:
Infelizmente todos nós, do século XX nascemos sob o sígno de governos ditatoriais e, infelizmente as memórias de adolescência estão ligadas a esse período. Você, com a ditadura Vargas.Eu, com a "gloriosa".
O que vale é que somos sobreviventes.
E os documentos, meu caro, vão coninuar fazendo parte da nossa pele.
Tante belle cose, um bacio in testa.
Natale

margarida disse...

Natale,lendo seu texto lembrei que eu tinha meu registro de nascimento, o de batismo, o Título de Eleitor e a Identidade. Quando me casei ganhei a certidão de casamento com novo nome e o CPF. Consegui mudar o nome no título, mas não mudei na minha identidade. Fui mudá-la só depois que meu marido faleceu.Se me perguntar, nem sei por que. Sempre achei que tinha muitos documentos e e podia perdê-los por esta razão nunca os levei comigo quando saía.Eles ficavam guardados em uma carteira destinada para os documentos, assim quando eu precisava de um, recorria a ela. Hoje parece que os documentos aumentaram, com cartões do banco, de saúde, da farmácia etc.Continuo com o mesmo hábito, não carrego nada comigo, apenas o que vou usar no momento.Acho até perigoso porque se acontecer alguma coisa comigo , na rua, ficarei como indigente, mas só em pensar em perdê-los ou ser roubada e tiver que tirar tudo de novo, tenho calafrios, detesto.Bem que podia ser só por digital, né. Adorei seu texto e desculpa por ter contado um pedacinho da minha vida.Um abraço.

margarida disse...

Natalr, esqueci de dizer, tem ainda o Passaporte...rsrsr

Wilson Natale disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Wilson Natale disse...

PERAMEZZA: Valeu!
Não tenho que desculpá-la. Penso que a função de um texto é essa.Vidas diferentes e as coisas comuns à todos nós.
E a consequência foi fazer-me lembrar que tive também um porta-documentos e dos passaportes. Sim, tenho dois, o brasileiro e o italiano. E lembrei mais - que você não lembrou. Tenho ainda o meu certificado de batismo e - pasme - o de crisma!
É sempre bom acrescentar lembraças às nossas.
Valeu,
Natale

Miguel S. G. Chammas disse...

Natale, vô dizê uma coisa pra você caro mio.Dos 73 andar dos meus anos di idade, eu já tive todos esse dicumentos qui voce falou no texticulo. Pior ainda, tive de vários deles muitas vias extras.
Agora, modelo novo, com todos os números num unico papel, acho que não ficarei vivo para conhecer.

Wilson Natale disse...

MIGUÈ:
Axu qui nem eu vô tá prá vivo prá vê isso.
Se estiver vou estar tão esclerosado que não vai fazer nenhuma diferênça.
Ahahahahaaaaaaaaaaaa!
Abração,
Natale

Leonello Tesser (Nelinho) disse...

Natale, pode parecer estranho mais ainda tenho intacta a minha carteira profissional de capa marron com todas as anotações desde 1.953, sou muito cuidadoso com documentos, abraços, Nelinho.