(- “Encosta ai!
Documentos na mão” !)
Eu conservara os meus documentos com amor e
carinho até o mês de março de 64. Até então, tudo parecia novinho em folha.
Nos meus tempos do Primário não havia Carteira
de estudante. Era somente o Boletim que levávamos para casa, no fim do mês,
para que os pais assinassem e, no dia seguinte, o devolvíamos. Então, o único
documento que eu usava era o Registro de Nascimento. E o usava quando ia
sozinho às matinês dos cinemas do bairro, para provar que era maior de 10 anos,
ou quando viajava com meus pais para o litoral, ou para o interior. E, como eu
ia muito às matinês, para preservar o Registro de Nascimento original, meu pai me
presenteou com uma segunda via.
Nos tempos de Ginásio eu tinha a famosa
Caderneta de Estudante: de identificação, presença, notas e observações. Mas,
como era fácil falsificar a data de nascimento (Um palito, com algodão na
ponta, embebido em água sanitária, passado levemente sobre o ano escrito e ele
desaparecia. Deixava-se secar e, depois era só escrever um novo ano. Então se
podia ter 14 ou 16 anos.), alguns cinemas exigiam também o Registro.
Depois, a Carteira de Trabalho do Menor
substituiu o registro. Exceção feita a Carteira escolar que nos dava direito a
pagar meia-entrada.
Mas, em 31 de março de 64 (Na verdade, 1º de
abril – “dia da mentira”.) acontece o “glorioso”, o “libertador” golpe militar
que deu origem a uma Ditadura violenta que não tinha nada de “redentora”...
Fins de 1964 - Minha Carteira de Trabalho do
Menor estava um “bagaço”. A Carteira de Estudante então estava na
iminência de desfazer-se, despencar. O Registro então, todo puído!É que, “por
dá cá aquela palha”, os “milicos” nos paravam constantemente e, de maneira
grosseira e descuidada, examinavam os nossos documentos.
No meu caso, pela altura e por aparentar mais
idade do a que tinha, a coisa ficava mais complicada quando eu era abordado
pela PE (Polícia do Exército). –“Cadê o Certificado de Alistamento
Militar”?... Não tinha e nem tinha idade para tê-lo. Então começava a demorada
e minuciosa “olhada” nas carteiras de trabalho e estudante. E, claro, no
registro de nascimento. Comparado os três documentos eu ouvia o famoso “Está liberado!
Pode ir”!...
De março a outubro de 64, eu já havia
“detonado” mais três vias de registro de nascimento (Na verdade, 3ª,
4ª e 5ª vias). Chegara o momento de tirar a Carteira de Identidade.
Aos 16 anos, muito feliz, eu segurava a minha
novíssima Carteira de Identidade, emitida em 03 de novembro de 1964, em São
Paulo – SP., nos Estados Unidos do Brasil, hoje República Federativa do Brasil.
Viva!
Eu tinha uma Cédula de Identidade! O Registro
de Nascimento fora finalmente aposentado. Mas, na prática, mudou quase nada.
Facilitou sim, para os “milicos” que, quando me “enquadravam” exigiam
impudicamente que eu lhes exibisse a minha Identidade, a Carteira de Trabalho
e de Estudante. Só faltavam pedir a Carteira de Cadastro da CMTC que
me dava direito aos passes de ônibus...
Naqueles “dias maravilhosos” da ditadura, a
conversa nas casas eram as mesmas: “Filho, você vai sair”? “Vou!” “Pegou
tooodos os documentos”? “Peguei, sim”... “Pegou meesmo,
meu filho”? “Orra, mãe! Para com isso! Eu não sou retardado”! “Falo
para o seu bem, filho. Se “eles” lhe prendem, adeus ”!...
E “vivas” à ditadura que foi aumentando o
fardo do povo e o fardo dos nossos bolsos, acrescentado mais documentos!
Em 1965, entre os documentos apresentados aos
“omi” e aos “milicos” estreei o meu mais recente documento: o Certificado de
Alistamento Militar. Certificado que não me agradava nada, diante da
perspectiva de me transformar em um “reco”.
Em março de 1966, tive em mãos a minha
primeira Carteira Profissional como maior e o Título de Eleitor. E fiz parte da
lista dos convocados excedentes do Exército. Fui lá, no Cambucí, prestar
o Juramento à Bandeira e retirar o meu Certificado de Reservista de 3ª
categoria. Fiquei tão feliz que cheguei à minha casa gritando: “Allelluiah”! E,
embora nunca gostando de dirigir, vale comentar aqui, que é desse ano a minha
Carteira Nacional de Habilitação.
1968 foi o ano das “RPM” (revoluções por
minuto). Era chegar ao Centro à noite e ouvia-se a miúdo: “Encosta ai, para
averiguação”!... “Identidade? Confere! Profissional? Confere! Estudante?
Confere! Reservista? Confere! Eleitor? Confere!”... Perdia-se um tempão
reservado àquilo que pretendíamos que fosse uma noitada ou
fim-de-semana feliz! E, muitas vezes éramos premiados: em intervalo de poucos
minutos, mais adiante, “encostávamos para mais uma averiguação”.
Em 1969 – tempos do AI5 - a coisa ficou preta.
Vez ou outra, com ou sem os documentos éramos convidados a fazer um “tour”
dentro de um “camburão”. Íamos à delegacia, para uma averiguação mais detalhada.
Pelos nossos nomes procuravam por “capivaras” (fichas criminais), via telefone
com o DOPS. Passavam-se horas até ouvirmos o tal “nada consta”. Sem um
“desculpe pelo incômodo”, nos mandavam embora.
Em uma dessas “viagens”, um policial da Civil
nos aconselhou a pedir um Atestado de Idoneidade. Mais que depressa tratei
disso!
E o atestado funcionou muitas vezes. Mas não
era um salvo-conduto. Com ou sem documentos, com ou sem atestado fui parar na
delegacia... Para averiguação. Quase cheguei a ficar “sócio” da antiga
delegacia da Rua Frei Caneca e amigo do meu xará, o delegado, que “tão bem” nos
recebia... Ahahahahaaaa!
Mais tarde a ditadura soltou o faminto “Leão”
do IR. Mais um “troço” pra carregar. Agora tínhamos CIC ou CPF ou CPJ...
E caminhei eu, caminhamos nós pela ditadura
levando nos bolsos todos os documentos a que tínhamos direito. Documentos tão
usados e manuseados que necessitavam de segundas e terceiras vias. E o mais
importante: As velhas Carteiras Profissionais deterioradas, remontadas,
rearranjadas com cola ou fita “Durex” ficaram guardadas em gavetas preservando
os velhos registros dos empregos que tivéramos...
2011 – Saio às ruas carregando os meus
documentos: Crachá, Identidade, CPF, Cartão do Plano Médico, Cartão magnético
para a condução... Vou andando, com aquela sensação de bolsos vazios e a
impressão de haver esquecido algo... Logo nossos bolsos vão ficar mais vazios
com a nova Cédula de Identidade que englobará todos os outros documentos.
Por Wilson Natale
17 comentários:
Olá, Wilson!
Cada época com suas necessidades, né? Mas, nem o passar das décadas faz dos policiais diferentes nos procedimentos. Embora, hoje em dia, sejam muito mais simples os documentos, são ainda muitos. Principalmente quando vamos utilizar o carro. Tem que levar um calhamaço de docs.
Tomara que fique mais simples mesmo, daqui pra diante.
Valeu, Natale.
Muita paz!
Ainda ando com todos os meus documentos, que são originais, raridades.
Perfeito seu texto! Quanta papelada não é? Seria bom se pudéssemos, como diz a música do Caetano..."caminhar contra o vento, sem lenço sem documento" Um abraço.
Não tem jeito, meu querido Natale, aquele tempo maldito se impregnou na nossa carne, nas nossas memórias, nos nossos pesadelos. Eu também já tratei muito desse assunto em crônicas, mas parece que , de tão amargo, é inesgotável. E o pior: eu sempre duvido do caráter daqueles que defendem a ditadura. Abraços, Vera Moratta.
Pois é, SONINHA.
Falou-se tanto, naquele ano de 2012, do tal documento integrado e até hoje, nadinha.
Abração,
Natale
DARCY:
Tenho todos os doc.originais bem guardados. Até a carteirinha de passes da CMTC. (risos)
Abração,
Natale
BERNARDETE:
Sonho com o dia em que, em toda a parte, vai haver uma célula sensível que, ao toque da mão ou dirigida aos nossos olhos, dará todas as informações sobre nós. Ai, então, caminharemos contra o vento,sem lenço e sem documento.
Valeu!
Abração,
Natale
VERA:
Embora eu ironize aquele tempo, realmente foram anos difíceis.
A maioria que defendem a ditadura, são aqueles que nunca tomaram consciência de que vivíamos uma censura violenta - lembra?
E até hoje nunca falaram dela, tentndo mostrar o porquê de tudo ser "maravilhoso".
Valeu!
Abração,
Natale
Caríssimo fratelo, ti voglio dire che, la tragedia di nostro tempo, si chiama: BUROCRACIA.
TEVE UM GRANDE SENADOR QUE CHEGOU A IMPOR O FIM DA BUROCRACIA.
Morreu e com ele a grande conquista.
Infelizmente, Natale, veja bem, por traz de cada cartório, uma legião de antecedentes detentores do direito de explorar um autenticador, herdado do pai, do avõ, do bisavô e por ai a fora. Centenas de milhares de documentos, devidamente reconhecidos... por quem? pelo cartório. Vc quer abrir um? como se faz... Vc precisa ser, antes de mais nada, descendente de herdeiros premiados pelas "Capitania hereditárias". Não é? alora, áqua la pipa, va, porta via il sacheto, posto de piangere non'ne per te.
Wilson, parabéns vc mexeu numa chaga que dificilmente vai desaparecer. Un bacio in testa, auguri.
Laruccia
LARÙ, bello:
Infelizmente todos nós, do século XX nascemos sob o sígno de governos ditatoriais e, infelizmente as memórias de adolescência estão ligadas a esse período. Você, com a ditadura Vargas.Eu, com a "gloriosa".
O que vale é que somos sobreviventes.
E os documentos, meu caro, vão coninuar fazendo parte da nossa pele.
Tante belle cose, um bacio in testa.
Natale
Natale,lendo seu texto lembrei que eu tinha meu registro de nascimento, o de batismo, o Título de Eleitor e a Identidade. Quando me casei ganhei a certidão de casamento com novo nome e o CPF. Consegui mudar o nome no título, mas não mudei na minha identidade. Fui mudá-la só depois que meu marido faleceu.Se me perguntar, nem sei por que. Sempre achei que tinha muitos documentos e e podia perdê-los por esta razão nunca os levei comigo quando saía.Eles ficavam guardados em uma carteira destinada para os documentos, assim quando eu precisava de um, recorria a ela. Hoje parece que os documentos aumentaram, com cartões do banco, de saúde, da farmácia etc.Continuo com o mesmo hábito, não carrego nada comigo, apenas o que vou usar no momento.Acho até perigoso porque se acontecer alguma coisa comigo , na rua, ficarei como indigente, mas só em pensar em perdê-los ou ser roubada e tiver que tirar tudo de novo, tenho calafrios, detesto.Bem que podia ser só por digital, né. Adorei seu texto e desculpa por ter contado um pedacinho da minha vida.Um abraço.
Natalr, esqueci de dizer, tem ainda o Passaporte...rsrsr
PERAMEZZA: Valeu!
Não tenho que desculpá-la. Penso que a função de um texto é essa.Vidas diferentes e as coisas comuns à todos nós.
E a consequência foi fazer-me lembrar que tive também um porta-documentos e dos passaportes. Sim, tenho dois, o brasileiro e o italiano. E lembrei mais - que você não lembrou. Tenho ainda o meu certificado de batismo e - pasme - o de crisma!
É sempre bom acrescentar lembraças às nossas.
Valeu,
Natale
Natale, vô dizê uma coisa pra você caro mio.Dos 73 andar dos meus anos di idade, eu já tive todos esse dicumentos qui voce falou no texticulo. Pior ainda, tive de vários deles muitas vias extras.
Agora, modelo novo, com todos os números num unico papel, acho que não ficarei vivo para conhecer.
MIGUÈ:
Axu qui nem eu vô tá prá vivo prá vê isso.
Se estiver vou estar tão esclerosado que não vai fazer nenhuma diferênça.
Ahahahahaaaaaaaaaaaa!
Abração,
Natale
Natale, pode parecer estranho mais ainda tenho intacta a minha carteira profissional de capa marron com todas as anotações desde 1.953, sou muito cuidadoso com documentos, abraços, Nelinho.
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