imagem: missa evocadora da conversão do Apóstolo das Gentes, ato inicial da existência do pequenino arraial de São Paulo do Campo de Piratininga
O padre Manoel da Nóbrega estava nu e rodeado de índios guaianá
que riam às gargalhadas de seu corpo mal cheiroso e cheio de pelos; André
Ramalho, dos primeiros caboclos e filho de João Ramalho, notara que o padre não
parava de se coçar desde que ele e sua pequena comitiva chegaram ao aldeamento
comandado por seu pai, na entrada do planalto, na borda do campo. André deveria
conduzi-los a um pequeno platô, duas léguas para o interior, conhecido pelos da
terra como Inhampuambuçu (morro que se avista de longe) que, além de ponto de
referência, ficava entre três águas - Anhemby, Anhangabau e Tamanduatey - e era
bem protegido, como uma menagem, uma fortificação natural em acrópole.
- Carrapatos,
padre!... Carrapatos, pulgas, piolhos, muquiranas e sei lá mais o quê... (esses
padres estão podres, e como fedem! André pensou...), vou precisar queimar essa
pelagem toda...
- Vais me queimar, Mestre André!...Por Deus...!
- Non, padre,
vou passar a tocha de fogo sem tocar seu corpo, que é prá queimar esses pelos e
matar esses carrapatos..., mas vossa mercê precisará tomar vários banhos para
sarar essas feridas que se abriram; tanto vossa mercê vem se coçando (e prá
melhorar esse cheiro!)...
- Banho? Non!
Nunca, jamais!... Só tomei 4 banhos em minha vida e foi para cura de
doenças...banho e sangria, banho e sangria, banho e sangria, banho e
sanguessugas, ordens dos irmãos médicos...
- Vossa mercê e
seus companheiros, padres e freis, estão carecendo de banho, de lavar essas
feridas, de se livrar dos carrapatos e pulgas; será em nome da cristandade, hay
de ser um pequeno sacrifício para atingir as portas do céu, vós que viveis
pedindo que nos sacrifiquemos pelo Senhor...!
- Vou pensar...
- Non hay que
pensar; são muitos os da terra e poucos são vossas mercês, curas, e como vedes,
os da terra estão se preparando para jogá-los dentro do Tamanduatey ou do
Anhangabau... São um rór e vós sois poucos..., vale o sacrifício, padre! Tudo
em louvor a Deus...
- Estou a ver
que seu pai, mestre João, não vos ensinou a respeitar a santíssima igreja de
Jesus e seus representantes na Terra...
As
argumentações do padre Manuel da Nóbrega de nada adiantaram: profecias
bíblicas, tradições europeias, frio, "banho-me com as águas que o Senhor
nos agracia, com as gotas da chuva abençoada", etc, etc... A um sinal de
André Ramalho, dezenas de caboclos e índios avançaram para o grupo de jesuítas
e, aos gritos e às gargalhadas, os foram tangendo em direção à margem do
Tamanduatey, fingindo armar seus arcos com flechas de dois metros e ponta
serrilhada ou cutucando-os com tangapemas, bordunas e chuços, até que, aos
gritos de desespero, todos entraram dentro d'água e foram, literalmente,
derrubados, mergulhados, esfregados, lavados pelos índios e pelos primeiros
paulistas ...:
- Ai Jesus! Que
vamos todos a morrer - “vamos orar irmãos para que o Senhor nos acolha no
paraíso dos mártires da santíssima madre igreja”... - "Ave Maria, gratia
plena, Dominus te cum...”.
Claro que
ninguém morreu e nem foi levado pela correnteza para finisterra, fosse lá onde
ficasse essa tal de finisterra, ou para os braços do cramunhão ou ainda, para o
Hades infernal de Lucifer; foram ajudados a sair da água e saíram, não
agradecendo a Deus pelo fato de não terem morrido levados pelas águas, mas
imprecando inter-dentes em latim, grego, espanhol, galego, catalão, português;
nenhum dos padres quis confessar abertamente, mesmo entre si, mas todos
sentiram uma sensação gostosa após o banho forçado, uma refeição quente de
carne de capivara moqueada, mandioca e cabaças de cauim; ao término do dia,
orações e todos foram para debaixo da tapera e dormiram imediatamente, bem
alegrinhos, de pilequinho eclesiástico; dormiram toda uma noite sem sonhos...
Na manhã do dia
seguinte, 29 de agosto de 1553, o padre Nóbrega celebrou a 1ª missa no local
onde seria erguido o Colégio dos Jesuítas, marco inicial da cidade de São Paulo
dos Campos de Piratininga, dando início aos projetos de cristianização do
gentio e a construção de um local que pudesse abrigar àqueles que viessem do aldeamento
de João Ramalho, Santo André da Borda do Campo.
25 de janeiro
de 1554. O noviço ilhéu espanhol José de Anchieta, após a missa de fundação
celebrada pelo padre Manoel de Paiva, num portunhol misturado com termos bascos
e castelhanos, oficializa a fixação de 130 pessoas, homens, mulheres e crianças
curumins no Inhampuambuçu, numa espécie de terreno aplainado, como um páteo, em
frente ao Colégio; nem Nóbrega, nem Anchieta, nem Manoel de Paiva, nem
Aspilcueta Navarro, nenhum dos fundadores, ninguém, poderia imaginar que aquele
aldeamento cercado e protegido pelos índios guaianá de Tibiriçá e Caiuby,
chegaria aonde chegou mais de 500 anos depois, São Paulo das águas e dos
montes, do Tamanduatey de 7 curvas, do Anhemby, do Anhangabau, do Saracuraçu,
do Itororó, do Jurubatuba, da pedra gigante do Jaraguá, lá longe, onde o mundo
acaba...
O hermano
Joselito de Anchieta, pertencia a uma família abastada de cristãos-novos
bascos, que, devido à atuação do Santo Ofício na área de Castilla La Vieja, por
via das dúvidas, migrou para as Canárias, razão pela qual foi enviado para
estudar em Portugal, país mais condescendente com judeus e cristãos novos
àquela época. Sua vinda para o Brasil, a vinda de Manoel de Nóbrega e dos
outros jesuítas deveu-se a uma missão a ser cumprida, missão com conotação de
evangelização, fixação de alguns degredados e postura estratégica militar pois
a Companhia de Jesus era (é?) uma espécie de Ordem dos Templários light.
José de
Anchieta chegou ao Brasil com 19 anos de idade e deve ter sido tratado melhor,
embora tenha passado pelos mesmos problemas pelos quais passaram Nóbrega e seu
pequeno entourage; Anchieta tinha uma escoliose bastante acentuada, problemas
respiratórios e era um rapaz bastante fraco... Os índios e caboclos devem ter
aliviado a mão... O "trote" deve ter sido mais suave.
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Como esse texto
baseia-se em alguns fatos históricos sobre a fundação de São Paulo, dei asas à
imaginação e criei umas situações que bem poderiam ter acontecido, pois nossa
cidade foi fundada não por super homens, mas por seres humanos, com fraquezas,
manias, superstições, cultura e comportamentos ibéricos quinhentistas.
Pensando bem,
não vejo porque os acontecimentos 'inventados' não devam ter acontecido, afinal
de contas, São Paulo desde o começo sempre foi diferente, é uma cidade única em
todo o planeta!
Por Joaquim
Ignacio
7 comentários:
Olá, Ignácio!
Eu acredito que tenha sido mais ou menos assim mesmo os acontecimentos daquela época, da fundação de São paulo.
Os europeus não tinham o hábito de banharem-se, como nossos índios... Posso imaginar o fedor daqueles padres, com suas grossas batinas, sob o sol tropical do Brasil, mesmo com a garoa de Sampa.
Adorei sua imaginação.
Valeu!
Muita paz!
Ignácio, tua estória é tão ou mais verídica do que todas as já editadas e apresentadas nos bancos das escolas deste Brasil durante todos esses anos que se seguiram àqueles acontecimentos.
Gostei muito, mas me ficou aqui, por detrás do pavilhão auditivo, juma pequena pulga. Estivestes por lá ou praticaste a feitiçaria e a vidência?
Abraços amigo.
Pois é, Ignácio!
Como bem disse o Miguel, eu também acredito que você esteve por lá, quem sabe um dos padres ou frades, atirado nas águas do Tamanduatehy para se transformar num quase -mártir, como queria o Padre Manuel da Nóbrega? Afinal, conhecer tão bem, a ponto de colocar detalhes na história da fundação de São Paulo, só mesmo um dos participantes... quem sabe, talvez, André Ramalho, o filho de João Ramalho que, acostumado com a sujeira dos portugueses e espanhóis que por aqui apareciam, logo percebeu o que precisava ser feito e providenciou?!
Mas, estando ou não no palco dos acontecimentos, seu conto está muito bom! Pena que tenha nos brindado tão pouco com suas histórias sempre tão interessantes!
Abraço.
Ignácio, quanta criatividade, meus parabéns! Com certeza foi muito tumultuado a chegada dos Jesuítas e da Família Real em terras brasileiras.Nada muito confortável...rsrs. Um abraço.
Ignácio, tem um ditado italiano que diz: "Si non'e vero, é bem trovato". (se não é verdade é bem contado). Agora, como se manifestaram os colegas abaixo, eu não acho que vc testemunhou o "banho dos padres". Maldade deles, vc estava nos terrenos onde se ergueria o futuro Hospital das Clínicas, queria ser o primeiro enfermeiro a ser contratado. Isso eu sei por que vc foi o segundo. Eu já estava lá.Quanto ao Tamanduateí, depois desses banhos, nunca mais foi o mesmo, até hoje cheira mal.
Desculpe a brincadeira, gostei da sua história, parabéns.
Modesto
Amigos, agradeço as palavras elogiosas, mas, deixem-me falar uma coisa: EU NÃO ESTAVA LÁ! Juro por Deus, quero morrer cego e arreganhado se estiver mentindo...
Sr Modesto, o sr quase advinhou, mas outros colegas meus já estavm na fila para se inscrever no HC antes de sua construção... eu apenas, humildemente, colhia material para os Drs. Heinrich Schaumann e Adolph Lutz, trabalhei um pouco ara o Dr. Arnaldo e preparei agumas lâminas para o Dr. Aphonso Bovero... mas isso já faz algum tempinho(riod à bandeiras despregadas...!)
Abraços do Ignacio
Joca:
Tá certo que não foi um mar de rosas e, o serviço, não foi 5 estrelas.
Tá certo que a coisa estava mais para fim de desfile de escola de samba.
Concordo até, que ao final da "suntuosa missa", nas moitas adjacentes, algum padre foi "saboreado".
Mas, para isso, está a História e os pintores de alegorias que tornam tudo mais interessante e politicamente correto... Ahahahaaaaa!
Não fosse assim, o ato da independência do Brasil, seria uma m...!
Imagina você, um aluno de História, lendo no livro: "Às margens do Riacho Ypiranga, o Principe Regente, desceu da mula e em grande descoforto, arriou o culote e aliviou-se de umas caganeiras causadas por alimentos ingeridos em Santos, Estava assim, a aliviar-se, quando emissários trouxeram-lhe graves notícias da Corte"...
Ahahahahahahaaaaaaaaaaa!
Ficou até hoje, em mim, uma dúvida atróz e cruel: O Príncipe aproveitou-se do, ou dos pergaminhos para limpar-se?...
Abração,
Natale
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