Fechando o ciclo “cabeludo”, cuja inspiração surrupiei carinhosamente do
texto do Natale, vou contar aqui quando, como e porque eu quis matar a
Fatinha.
Passando pelas várias fases em torno dos meus cabelos, cheguei aos
cinquenta anos ainda ostentando uma bela cabeleira grisalha, da qual me
orgulhava bastante. Mas, como sempre existe um “mas”, havia uma pedra no meu
caminho. Ou melhor: no meu caminho havia uma cabeleireira. Melhor ainda: no meu
caminho havia, atravessada, uma pedra que era cabeleireira e se chamava
Fatinha.
Como éramos bons amigos, acabei
traindo o meu velho amigo Luis com ela. Não se assustem, não! O Luis não era o
marido da Fatinha! E tampouco meu, cruzcredo! Ele era o antigo barbeiro que,
durante muitos anos cortara os meus cabelos. Seu salão era dos antigos, herdado
do pai que o recebeu do avô. Havia três cadeiras de barbeiro, daquelas que
sobem e descem através de um pedal. Que se reclinam e, no encosto, existe um
suporte para a cabeça. E onde, quando se corta o cabelo de um menino, coloca-se
sobre os braços, uma tábua para o garoto sentar e ficar, assim, um pouco mais
alto. O que faltava mesmo era encontrar barbeiros para ocuparem as outras duas
cadeiras. Atualmente eles querem ser chamados de cabeleireiros e, alguns, mais
ousados, de hair stylist. Barbeiro mesmo, só o Luis e, hoje, o Tião – o
barbeiro sessentão que corta os meus cabelos.
Voltando à Fatinha!
Ela insistiu, fez charminho, muxoxo, jogou seus loiríssimos cabelos prá lá
e prá cá e até chantagem emocional. Por fim conseguiu convencer-me a deixá-la
cortar os meus cabelos no seu salão. No princípio eu não me sentia muito
confortável. Sabe como é: cidadezinha do interior, todo mundo se conhece, a
mulherada reunida, falando sobre seus assuntos e eu lá; um galalau cinquentão,
atrapalhando a ordem natural. Mas o que a gente não faz para agradar essas
maravilhas da natureza? Tudo o que elas quiserem, claro!
Depois ela começou a implicar com o tom agrisalhado do meu cabelo. E mais
uma vez, tanto fez que, um dia - oh! Sofrimento! – eu cedi. E deixei que ela
passasse uma mistura preparada carinhosamente por ela mesma, que devolveria aos
meus cabelos o maravilhoso tom alourado da minha juventude. Mas quando ela,
orgulhosamente me virou para o espelho... que baita susto eu levei! O alourado
da minha juventude havia se transformado mais num tom acobreado... mais de
acordo com uma comédia do que com aquele senhor responsável que se olhava
indignado.
Mas a danada da pedra - ops! - da Fatinha, tinha uma lábia daquelas! E
tanto falou que me convenceu de que a cor não apareceria na hora. Depois de
algumas lavagens, o tom iria surgindo. E com as demais tinturas ele se
consolidaria. E como o mal já estava feito e ela falava mais do que duas
maritacas brigando, acabei me deixando convencer de que a paciência era mesmo a
alma do negócio. No caso, dos meus cabelos. E assim fui deixando os dias
passarem, evitando espelhos de todas as formas, como se fosse um vampiro
fugindo da cruz. Mas nas horas em que escovava os dentes não tinha jeito! Lá
vinha sofrimento com os cabelos de um bufão na minha cabeça.
Esse sofrimento durou duas semanas. Até que, desesperado, invadi o salão e
intimei: “Fatinha, é hoje que você vai passar a máquina neste cabelo e acabar
com essa palhaçada!”
A moça se sentiu ofendida em seus brios mais íntimos e me colocou de lá
para fora, mais com as vociferações em cascata do que com sua recusa em
cortar-me os cabelos. Saí de lá com o rabo entre as pernas e fui direto para o
salão do Luis que, recompensado pela traição sofrida, passou a máquina naqueles
fios de cobre com o maior prazer. E eu, então, passei a desconhecer mais uma
vez o meu reflexo no espelho. Desta vez pela absoluta falta de cabelos. Ou
então, pela falta dos cabelos acobreados que me atazanaram durante quinze dias.
Saí dali com a cabeça mais parecendo uma bola de bilhar do que qualquer
coisa. E fui direto para o salão da Pedrinha – ops! Desculpe! – da Fatinha.
Claro que não tive coragem de entrar, mas fiquei passeando pela calçada, indo e
vindo, até que ela visse o estrago que me desfigurava. E não é que a danada
caiu na gargalhada? Ficou parada na porta do salão, com as manicures atrás e,
por último, as freguesas. Com as duas mãos na cintura, ela ria (e as outras
também) como se estivessem assistindo a uma comédia estrelada pelo nosso amigo
Tutu. E eu, cada vez mais enfezado, não ousei dizer nada. Apenas olhei-a com um
olhar assassino e, virando-lhe as costas com a dignidade possível, saí dali
batendo as solas dos sapatos, para nunca mais voltar.
E assim, ela livrou-se de ser friamente assassinada, eu me livrei de ir
parar atrás das grades e acabei gostando tanto do formato da minha cabeça que,
poucos anos depois, voltei a passar a máquina na cabeça toda. Só que agora
passo a máquina quatro, que me deixa com mais ou menos um centímetro de cabelos
belamente agrisalhados. Com todo o meu orgulho!
Por
Zeca Paes Guedes