segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Natal Animadíssimo


imagens da internet: Pronto Socorro do Butantã; Rodovia Raposo Tavares; Vista aérea do Hospital das Clínicas

1984, 1985... Já se passou muito tempo dos fatos ocorridos.
Noite de Natal. Estou de plantão no Pronto Atendimento (P.A.) Municipal do Jardim Arpoador, um dos bairros/quebradas do Butantã, nas bandas da Raposo Tavares. Como não poderia deixar de ser, faz frio, o posto está cheio de gente e os médicos ainda não chegaram para assumir seus plantões.

7:00h da noite.
Enquanto os "dotô" não chegam, nós, Enfermagem, vamos adiantando o expediente, preenchendo formulários, desarquivando prontuários, preparando as salas de curativos e pequenas cirurgias, conferindo as medicações de tarja preta, ouvindo reclamações e ameaças de depredação e espancamento o tempo todo, um ambiente ideal para quem gosta de viver perigosamente (P.A. de periferia não é bolinho, minha gente!).
- Êpa, chegou a Dra. X; vou colocando as fichas e prontuários no consultório, que ela está estacionando o carro, "vamo que vamo"... Ainda bem que chegou alguém...
Vozerio no salão de espera:
- Chegou a 'dotora'... Esses médico véve atrazado...
- Vai vê essa vaca 'tava' em argum motér da Raposo e perdeu a hora... Eu conheço essa gente... Essa gente num presta... Ainda mais uma médica gostosa dessa...
- Ó pessoar, si argum arguém docês mordê a língua morre envenenado...
A Dra. X chega à porta do consultório:
- Senha nº 1...
Aos poucos vão chegando o médico chefe do posto e a Dra Y e, então, o 'bonde' começa a andar...

11:00h da noite
O movimento caiu, bebuns foram atendidos e dispensados (... eu só vim prá tomar uma 'gricose' nos 'cano' e já vou imbora...), alguns casos de 'espirrose aguda', uma diarréia aqui e ali, um ou outro caso de 'esculhambose' na coluna... (viu dotô, fui inchê uma lajia pro visinho e fudi co espinhaço! Tem jeito de dá um tranco prá pô o espinhaço no lugá?...), os hipocondríacos foram atendidos e medicados com drágeas de "substância G" (açúcar) e totalmente curados, sendo dispensados sem receita ou pedido de exames e com a recomendação de retornar no caso de os "sintomas" voltarem...
A Ceia de Natal já estava sendo preparada por nossas colegas de Enfermagem e pelas médicas e tudo levava a crer que seria deliciosa: café com leite, 3 "frangos à manivela" de padaria, algumas garrafas de guaraná e coca-cola e sanduiches de pão de forma com um patê de sardinha em conserva e maionese industrial, um opíparo banquete (certa vez, numa das últimas entrevistas que Procópio Ferreira concedeu, ele usou esses termos - opíparo banquete - que, pessoalmente, eu achei pedante, deslocado do contexto da entrevista, não eufônico, demonstração do uso de uma falsa condição cultural; no Brasil, no sermo vulgaris, ninguém fala desse jeito e, só porque lembrei do nariz do Procópio, resolvi usar a frase)!
Não conseguimos celebrar o nascimento do Menino e muito menos participar da ceia, aliás, não teve ceia de Natal porque, naquela noitemadrugada, o 'couro comeu largado'... Quase meia noite, duas viaturas da PM descem, de ré, a rampa que leva à porta do P.A., sirenes explodindo em som, encrenca da braba! Macas e cadeiras de roda na porta! Dois casos: um homem com FAF (Ferimento por Arma de Fogo) e uma gestante em trabalho de parto.
- Anda, anda, depressa com as coisas, baleado na sala de curativos, o cara tá sangrando muito. Acho que algum vaso grande tá estourado, a subclávia talvez, orifício de entrada: região escapular direita, não há sinal de saída; no mínimo pneumotórax também, não dá prá nós cuidarmos aqui, curativo compressivo bem apertado, ambulância e HC, a Dra. Y acompanha... E chama uma menina prá te ajudar com esse parto...
- 'Peraí', doutor! Que conversa é essa de "me ajudar com o parto"? Eu nunca fiz um parto em toda minha vida...
- Vai se paramentar, calça as luvas, que hoje você vai fazer o seu primeiro parto...
- Mas doutor...
- Que cazzo, Joaquinzão! O cara aqui tá sangrando muito, não dá prá eu largar prá partejar essa mulher... Deixa de resmungar que nem velho... Essa criança vai sair sozinha... O que não dá é prá por a criança de volta!
- Muito engraçado, doutor...
A mãe acabou dando a luz em pé e eu e a Marisa apenas aparamos a criança para que ela não caísse de cara no chão, o que, definitivamente, não seria um bom começo de vida numa noite de Natal. Mãe, nenê e placenta foram encaminhados para a (antiga) Maternidade da Lapa, para término de procedimentos.
E o baleado? O que foi feito dele? Bem, essa é outra história absurda daquele Natal inesquecível: diminuído o sangramento, o paciente foi levado para o HC, com acompanhamento da Dra Y e deve ter sobrevivido (pelo menos daquele tiro); minutos depois da saída da ambulância com o ferido, o PA foi invadido por um bando que, simplesmente, foi lá prá acabar com a vida do baleado... Ameaças, os consultórios e salas de procedimentos revirados, gritos, correrias, tiros para cima, debandada geral. Pulei uma janela e caí em cima do meu próprio carro (uma Brasilia sofrida). Entrei na Raposo voando baixo, uns 60 por hora... 03h00minh da manhã, Dona Odete espantou-se com minha chegada:
- Ué! Liberaram você mais cedo? 'Tá tudo bem? Tudo bonitinho?
- 'Tá tudo bem... Feliz Natal...
- Prô 'cê também!
- Vamdormí que daqui a pouco eu pego no HC...
- 'Cê tá esquisito! Tá tudo bem, mesmo?
- 'Tá! Eu ajudei num parto...
- Gostou? Menino ou menina?
- Um menino, a mãe quer dar meu nome prá ele e eu disse que não, meu nome não cai bem prum recém-nascido, é nome de adulto...
- Coincidência, heim?
- ???
- Natal, parto, menino, entendeu?
- Só que os Reis Magos chegaram atirando...
- Agora sou eu que não entendi...
- Não esquenta; depois eu te explico com mais calma...
- Tchau então, parteiro...
- Num enche, Dé! Vê se dorme... Tchau!

 
Por Joaquim Ignacio de Souza Netto

11 comentários:

Jeferson Cardoso disse...

Parabéns a todos os autores por esse magnífico trabalho!
Tenham uma excelente semana!

“Para o legítimo sonhador não há sonho frustrado, mas sim sonho em curso.” (JefhCardoso)

Convido para que leiam e m“O CHEIRO DO DIABO” em meu blog http://jefhcardoso.blogspot.com/
Abraço de um blogueiro navegante do interior paulista!

Luiz Saidenberg disse...

Caro Joaquim,
já havia lido seu excepcional relato. Existem Natais e Natais...para alguns, haja Cristo para poder conseguir ter alguma paz, como foi seu caso.
Muito legal, e por sorte teve um final feliz.
Feliz Natal, desta vez sem tantos destemperos, e um abração!

Miguel S. G. Chammas disse...

É meu amigo, como diria minha avó, "O que não tem remédio, remediado está" e já que não tinha parteira você foi designado.
Agóra, atender um bando de fascinoras, de berro em punho...isso já é um outro departamento.
"Ossos do orifício" rsrsrsrs
Boa noite e bom sono (se puder conciliar).

Arthur Miranda disse...

Joaquim, gosto de ler seus textos, eles me fazem um bem que você não nem imagina, lendo esse, me senti sentado ou em uma fila tentando uma consulta num posto do meu passado,no bairro da Freguesia. Parabéns

Zeca disse...

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Ignácio!

Já disse em outro comentário que gosto muito de ler os seus textos. Repetir aqui seria um pouco demais! Afinal, nunca fui puxa-saco de ninguém, nem baba-ovo de celebridades e agora, com mais de sessenta, é um pouco tarde pra começar, não é? Então, só posso dizer que gostaria muito de continuar lendo-os e, para isso, só posso contar com você - e com a colaboração da querida amiga Sônia - némess? E desejar, para você e para toda a sua família

Um Natal muito feliz, repleto de paz, saúde e tranquilidade!

Abraço

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Modesto disse...

Um Natal diferente pinçado da vida desse valoroso enfermeiro, tirando de letra o primeiro parto, com o premio de ter seu nome a acompanhar a vida do novo habitante terráqueo. Nada como enfermeiro pra ter mil e uma história pra nosso deleite.
Na contigência de ter que lidar diariamente com problemas de doenças, as vezes com resultados trágicos, nada mais gratificante do que lidar com uma nova vida. Parabéns, Joaquim Ignácio, vc escreve bem "pacas". Modesto

Jeferson Cardoso disse...

Bem, eu já disse que achei magnífico o trabalho. Tenho sim alguma história paulistana pra contar. Vivo em Ituverava (nordeste de SP), mas tenho meu pé Natal em São Caetano e Sampa. Voltarei com algo para figurar neste lugar tão rico e charmoso. Abraço e obrigado pela atenção ao meu blog!

Soninha disse...

Olá, Ignácio!

Sensacional sua história de Natal!
Além de darmos boas risadas, vimos a realidade dos prontos socorros de nossa Sampa e a vida sofrida dos pacientes e dos funcionários.
Um Natal diferente, mas sem deixar de exemplificar os verdadeiros principios cristãos.
Valeu, Ignacio! Obrigada!
Feliz Natal a você e Odete e a todos os seus familiares.
Boas Festas!
Muita paz!

Wilson Natale disse...

Joca: Lendo a sua narrativa lembrei tanto do Vinícios de Moraes...
"A vida vem em ondas, como o mar"...
No seu caso você chegou na maré alta, com ondas de repuxo forte. No seu "durante" em ondas altas o mar quebrou no quebra-mar. Não contente "ressacou", galgou a praia e invadiu a avenida... E para fechar o seu Natal com chave de ouro, o ele mandou-lhe uma Tsuname das boas! Ahahahaaaaa! E você mui esperto, largou o povão lá,entrou no seu catamarã e "si mandou"! Ahahahaaaa!
Falando sério, agora. Gostei muito do seu texto. É assim mesmo. Para certos profissionais a vida torna-se mais difícil na época das festas de fim de ano.
E quê fazer? Somente rezar e pedir ao Papai Noel, natais de paz, alegria e traquilidade.
Abração,
Natale

joaquim ignacio disse...

Amigos(as) do M.deS., estou em minha casa na praia em companhia da Odete (não sou ninguém sem aquela mulata!)e minha mãe, a intimorata e nunca por demais assáz louvada D. Zezé, e por isso não comentei alguns textos publicados, peço desculpas; ao mesmo tempo desejo um grande e feliz Natal "pá" todos "o 6".
NB: Vim prá São Paulo prá atender a uma convocação por carta precatória relativa ao engavetamento da Imigrantes e já estou descendo novamente e dessa vez levando meu "laps-tops" (apud Mussum).
Abraços do Ignacio

suely aparecida schraner disse...

Delícia de texto! Esses heróis do plantão foram bem lembrados. E viva esta verve literária que tão bem pinçou aqueles momentos e compartilhou conosco.