Há 42 anos saí do Braz, tempo mais do que suficiente pra esquecer esse pedaço de coração que deixei com 38 anos. Com esposa Myrtes e 4 filhos. Maurício, professor de inglês, hoje com 54 anos, descasado e um filho, Matheo de 19 anos, estudante; Moacyr com 52 anos, descasado e 2 filhos, Gabriela, 25 anos e Frederico com 23 anos, (os 3 vivendo na Malásia); Maria, 50 anos, coordenadora e professora, 1 filha, Paola, 19 anos, estudante; Marcello, 44 anos, técnico em animação computadorizada, casado com Denise, dona de uma butique, 2 filhos, Anastasia, 10 anos e Vincenzo, com 8 anos, estudantes e finalmente, Myllene, 42 anos, a única nascida no Parque Continental, onde moro atualmente, casada com Fernando, criaram e desenvolvem um tablóide, voltado só pra anúncios comerciais, 1 filho, Rafael, 6 anos, estudante.
Saindo do Braz, da Rua do Gasômetro, 3 minutos (de bonde) da Praça da Sé, ou 10 minutos a pé. Com tudo a mão, mercadão, lojas, padarias, igrejas, clubes, etc. No Parque Continental, tudo... Por fazer... Arrependido, nós? Nem um pouco. Não gostava do Braz? Nem pensar. Vão passar outros 40 anos e eu ainda vou ter saudades do Braz.
Já contei minhas atividades como morador novo, num bairro novo e todos os problemas decorrentes da ausência de tudo que a gente tinha, num piscar de olhos. Mas, tudo foi compensado com a alegria e felicidade que desfrutávamos, principalmente a Myrtes, que foi contemplada com a maior alegria de sua vida ao receber as chaves da casa, tão esperada por 2 anos, nova, tudo ligado, água, luz e, principalmente o silêncio; sabe lá o que é dormir, depois de 12 anos de casado, sem o fabuloso trânsito da Rua do Gasômetro, das 4 horas da manhã até 2 da madrugada?
Desfrutamos o encanto de uma vida bucólica, quase rural, por quase 20 anos. Como sempre trabalhei em vendas para 2 ou 3 empresas, (não conjuntas, uma após outra) praticamente saía de manhã e só voltava no fim do dia, almoçando quase sempre fora de casa.
Nos primeiros 5 anos, morei numa das inúmeras ruas sem saída para carros, fiz pequenos arranjos na casa, estabeleci contatos com os novos vizinhos e, de imediato, descobri quem gostava de futebol; reunimos um bom número de aficionados, completando com moradores de outras ruas. Quem não conhece o Parque Continental, ele é dividido em quadras que, por sua vez, possuem ruas que eles chamavam de “passagens”. As ruas terminavam na divisa das quadras, chamadas de “áreas verdes”. Sossego e tranquilidade, livres do barulho da Rua do Gasômetro.
Para o futebol usávamos a área hoje ocupada pelo Shopping Continental, todos os domingos, de manhã, o famoso “racha”. Com o passar dos meses, precisávamos pressionar a Continental para a construção do clube, do qual hoje sou o sócio mais antigo. Na rua em que morei por 5 anos, (ainda moro no parque mas, numa casa maior e na avenida), junto com os vizinhos próximos, formamos uma só família e nos dias de junho, todos os fins de semana, eram festas juninas, com fogueira, fogos, balões, doces, bebidas, pipocas, quentão e tudo o que se relaciona com festejos juninos, numa convivência gostosa e harmoniosa com todos os vizinhos.
Até hoje estas ruas são bem estreitas; se eu parasse o carro em frente à minha casa, deveria fazê-lo com duas rodas sobre a calçada. Bem, o que eu quero contar, isso não importa. Em frente a minha casa, morava Dona Filomena, que tinha um filho chamado Rui. Magnífica pessoa o Rui, tinha de altura pouco mais de um metro, mas, não era anão atarracado, simplesmente um homem de estatura baixa. Educado, respeitoso, com boa cultura, porém tinha um problema bem “cabeludo”.
Sua mãe, Dona Filomena, tinha momentos de total desligamento, não conhecia ninguém, xingava quem passava na porta; quando via a Myrtes dizia, bem alto, pra toda vizinhança ouvir: “olha só a madame, só ela tem empregada doméstica em casa”. No principio, chocou. Todos chegaram a pensar que minha mulher havia provocado alguma coisa. Alguns dias depois, Dona Filomena bate na porta oferecendo um bolo: “Olha Dona Myrtes, um bolo pras crianças”, sem fazer nenhuma referência ao ocorrido. O Rui ficou sabendo e pediu desculpas pela atitude da mãe explicando que ela sofria de um desvio cerebral, mas, que era inofensiva.
Ocorrências iguais ou parecidas iam acontecendo com mais frequência ainda, não só conosco, mas com outros vizinhos também. Verdade seja dita, por estarmos frente a frente, ao abrir a porta de casa, dava de cara com Dona Filomena e a Myrtes tinha a paciência de ouvir e ficar calada. Um dia falava da empregada, outro, da roupa que ela vestia, sobre seu cabelo. Logo depois, aparecia com doces pra amenizar a situação ou, sei lá pra que, já que ela não se lembrava de nada. O Rui se desmanchava em desculpas. Aí, ela começou a pegar no meu pé. Quando chegava ao fim do dia, eu tinha que abrir o portão pra por o carro na garagem. Aí, aparecia Dona Filomena na porta: “Olha só quem chegou? O Marcelo Mastroiani... quem ele pensa que é? Um artista? Um galã?” Isso causou risos nos vizinhos que ouviram, e a mim, gargalhadas.
Mas, não ficou nisso... A coisa “engrossou” depois que ela começou a falar pra toda vizinhança que o “Mastroiani” não era o homem que vocês pensam, não”, dizia ela. “Ele me espera sempre quando vou à feira e, um dia, me puxou atrás de uma barraca, tentando me agarrar”. Dona Filomena, pra vocês terem uma idéia, era tão idosa que poderia ser minha avó, naquela época. Não fiz caso, mas, falei com o Rui, sugerindo que ela fosse internada ou que colocasse uma empregada que cuidasse dela. Ele me disse que já tentara de tudo, batia, xingava, não respeitava ninguém.
Pouco tempo depois, ele a internou e ela não durou muito, falecendo alguns meses depois.
Estas são as primeiras recordações de quando deixei o Braz e vim para o Parque Continental, na zona oeste de São Paulo, há 40 anos atrás.
Quanto à insanidade de Dona Filomena, creio que ela não era tão desligada da realidade pois, me comparando com Marcelo Mastroiani, acho que tinha, as vezes, resquícios de lucidez.
Por Modesto Laruccia