Onde você estava?...
Parecia um dia como outro qualquer.
Na rua, o Sol; e um calor que mordia a pele. Dia quente. Muito quente!
O povão, suando em bicas, ia e vinha pelas ruas exibindo camisas com os colarinhos ensopados, costas e sovacos molhados. Lenços saiam dos bolsos para ‘dar adeus’ ao suor de testas.
Eu, no escritório, sentado à minha escrivaninha, olhava pela janela, admirando a cúpula de poluição que dava uma coloração amarronzada ao céu. A coisa estava braba.
No escritório, os aparelhos de ar-condicionado roncavam, funcionando a todo vapor. Fora, devia estar a mais de trinta. Viva o ar-condicionado! Mesmo que afetasse a minha rinite e me fizesse espirrar muito. Mesmo que deixasse os carpetes úmidos e exalando no ambiente um cheiro de cachorro molhado. Era melhor estar lá dentro do que fora.
Voltei a minha atenção para o trabalho e esqueci da vida.
Passou um tempo e o chefe veio até a minha mesa. Entregou-me um cheque em branco e uma folha com três textos breves. Era coisa particular do patrão. Eu deveria ir às “FOLHAS” mandar publicar aqueles textos nos anúncios classificados. Olhei para ele, dei um sorrisinho amarelo e pensei: “Filho da...! Por que não vai você que é o puxa saco do patrão”?
Peguei a pasta, o cheque, os textos e sai. Na porta do prédio senti aquela sensação de estar entrando em uma fornalha. A cidade derretia, eu também. Mais próximo da Rua Direita que da Praça Antonio Prado, optei pela Direita. Sai da Rua Álvares Penteado e rumei para o Viaduto. Ia resmungando comigo mesmo: “Calçadas deveriam ser rolantes e cobertas”.
Parecia um dia como outro qualquer, mas não foi...
Os quase quarenta anos que me distanciaram do dia 24 de fevereiro de 1972, não me fizeram esquecê-lo. Foi o choque que se transformou em trauma. Jamais havia visto um incêndio de grandes proporções, “ao vivo e a cores”.
A caminho, ‘feliz’ da vida, eu resolvi, por pura pirraça fazer hora. Gazetear um pouco. Resolvi “frugar” no sebo da Livraria Calil, na Barão de Itapetininga. Fiquei pouco tempo, pois o ar estava abafado, quente e o cheiro dos velhos livros brigava com a minha rinite. Fui embora. Quase onze e meia! Circulei um pouco pela Ipiranga, comi um sanduíche de pernil no Jeca, tomei o resto da Coca-Cola e fui para a São João onde, passando, prestei atenção aos cartazes do Metro. Entrei nas Casas Pirani para confirmar o preço de oferta da vitrola portátil da Phillips. Preço ótimo! Comecei a fazer plano...
Para gastar é preciso ter dinheiro. Então bello, vamos trabalhar! E caminhei em direção da Rua Barão de Limeira.
A sessão de anúncios da Folha parecia a casa da mãe Joana. Muito abafado, muita gente e muito falatório. Espera e espera. De repente, um cheiro – como dizíamos à época – de corno queimado - começou a impregnar o ambiente. O negócio era esperar. Não sairia dali sem ser atendido...
Guardava os comprovantes na minha pasta quando, de repente, um Boy enlouquecido entrou correndo, gritando para todos:
- “Gente! O Andraus está indo prás picas! Está pegando fogo”!
Rimos dele. Só podia ser piada. E a gente não ia cair nessa! Mas o Boy insistia: “Né brincadeira não, cacete”!
Enquanto ele falava, ouvimos o estardalhaço de sirenes e o barulho das inconfundíveis sirenes do Corpo de Bombeiros.
Saí da Folha e vi uma multidão andando apressada pela rua e carros fazendo manobras de retorno. Segui pela Barão de Limeira, esgueirando-me entre as pessoas, em direção à Praça Julio de Mesquita. Olhei para o alto e vi o negrume da fumaça no céu. Sentia um cheiro forte e sufocante de materiais incinerados.
Consegui chegar até a Praça, mas a Barão estava fechada com uma corda de isolamento. Dali eu vi o Andraus sendo consumido pelas chamas. Estalava, enquanto as línguas de fogo que pareciam ter vida própria avançavam para o topo. Ferragens, vidros, reboco despencavam em meio a Av. São João. Uma fumaça densa e negra brigava com as chamas e as duas envolviam o edifício. Uma garoa fina, provocada pelas mangueiras de alta pressão chegava até mim, assim como o bafo quente daquele fogo que devorava o monólito.
Olhando para o alto, vi no topo do edifício um grupo de pessoas. Cai na realidade. Havia vida naquele prédio! Tinha gente dentro dele! Entrei em pânico. Fui tomado por uma vertigem que quase me fez cair. Respirei fundo e tentei sair daquele estado de ansiedade, impotência e desespero. Minha mente desviou o meu olhar fixado no alto e o direcionou para o térreo. Vi então que a Pirani não mais existia. Pensei: “Adeus oferta especial da vitrola Phillips”...
Um simples pensamento tão fútil, banal, fez com que eu me recompusesse. Não podia fazer nada para aliviar aquela situação terrível, a não ser rezar.
Fiquei lá, olhando o trabalho magnífico dos bombeiros que, com toda aquela estratégia de salvamento que me parecera nova até para eles mesmos, trabalhavam alheios ao barulho ensurdecedor do helicóptero, que tentava pousar no teto do prédio.
Quanto tempo eu fiquei por lá, vagando, olhando? Quantas horas? Não sei. Sei que foi uma eternidade.
Cheirando a fumaça, coberto de partículas de cinza, voltei ao escritório e de lá fui para a minha casa. Fui pensando na fragilidade da vida humana e nos por quês existenciais... Por que o Andraus, um prédio tão novo?
Os jornais, a TV e o rádio explicaram todos esses por quês. Não fosse o incêndio do Andraus teríamos hoje muitos casos de “morte anunciada”. Mas não foi bem assim. Outra tragédia estava por vir...
Por Wilson Natale
Parecia um dia como outro qualquer.
Na rua, o Sol; e um calor que mordia a pele. Dia quente. Muito quente!
O povão, suando em bicas, ia e vinha pelas ruas exibindo camisas com os colarinhos ensopados, costas e sovacos molhados. Lenços saiam dos bolsos para ‘dar adeus’ ao suor de testas.
Eu, no escritório, sentado à minha escrivaninha, olhava pela janela, admirando a cúpula de poluição que dava uma coloração amarronzada ao céu. A coisa estava braba.
No escritório, os aparelhos de ar-condicionado roncavam, funcionando a todo vapor. Fora, devia estar a mais de trinta. Viva o ar-condicionado! Mesmo que afetasse a minha rinite e me fizesse espirrar muito. Mesmo que deixasse os carpetes úmidos e exalando no ambiente um cheiro de cachorro molhado. Era melhor estar lá dentro do que fora.
Voltei a minha atenção para o trabalho e esqueci da vida.
Passou um tempo e o chefe veio até a minha mesa. Entregou-me um cheque em branco e uma folha com três textos breves. Era coisa particular do patrão. Eu deveria ir às “FOLHAS” mandar publicar aqueles textos nos anúncios classificados. Olhei para ele, dei um sorrisinho amarelo e pensei: “Filho da...! Por que não vai você que é o puxa saco do patrão”?
Peguei a pasta, o cheque, os textos e sai. Na porta do prédio senti aquela sensação de estar entrando em uma fornalha. A cidade derretia, eu também. Mais próximo da Rua Direita que da Praça Antonio Prado, optei pela Direita. Sai da Rua Álvares Penteado e rumei para o Viaduto. Ia resmungando comigo mesmo: “Calçadas deveriam ser rolantes e cobertas”.
Parecia um dia como outro qualquer, mas não foi...
Os quase quarenta anos que me distanciaram do dia 24 de fevereiro de 1972, não me fizeram esquecê-lo. Foi o choque que se transformou em trauma. Jamais havia visto um incêndio de grandes proporções, “ao vivo e a cores”.
A caminho, ‘feliz’ da vida, eu resolvi, por pura pirraça fazer hora. Gazetear um pouco. Resolvi “frugar” no sebo da Livraria Calil, na Barão de Itapetininga. Fiquei pouco tempo, pois o ar estava abafado, quente e o cheiro dos velhos livros brigava com a minha rinite. Fui embora. Quase onze e meia! Circulei um pouco pela Ipiranga, comi um sanduíche de pernil no Jeca, tomei o resto da Coca-Cola e fui para a São João onde, passando, prestei atenção aos cartazes do Metro. Entrei nas Casas Pirani para confirmar o preço de oferta da vitrola portátil da Phillips. Preço ótimo! Comecei a fazer plano...
Para gastar é preciso ter dinheiro. Então bello, vamos trabalhar! E caminhei em direção da Rua Barão de Limeira.
A sessão de anúncios da Folha parecia a casa da mãe Joana. Muito abafado, muita gente e muito falatório. Espera e espera. De repente, um cheiro – como dizíamos à época – de corno queimado - começou a impregnar o ambiente. O negócio era esperar. Não sairia dali sem ser atendido...
Guardava os comprovantes na minha pasta quando, de repente, um Boy enlouquecido entrou correndo, gritando para todos:
- “Gente! O Andraus está indo prás picas! Está pegando fogo”!
Rimos dele. Só podia ser piada. E a gente não ia cair nessa! Mas o Boy insistia: “Né brincadeira não, cacete”!
Enquanto ele falava, ouvimos o estardalhaço de sirenes e o barulho das inconfundíveis sirenes do Corpo de Bombeiros.
Saí da Folha e vi uma multidão andando apressada pela rua e carros fazendo manobras de retorno. Segui pela Barão de Limeira, esgueirando-me entre as pessoas, em direção à Praça Julio de Mesquita. Olhei para o alto e vi o negrume da fumaça no céu. Sentia um cheiro forte e sufocante de materiais incinerados.
Consegui chegar até a Praça, mas a Barão estava fechada com uma corda de isolamento. Dali eu vi o Andraus sendo consumido pelas chamas. Estalava, enquanto as línguas de fogo que pareciam ter vida própria avançavam para o topo. Ferragens, vidros, reboco despencavam em meio a Av. São João. Uma fumaça densa e negra brigava com as chamas e as duas envolviam o edifício. Uma garoa fina, provocada pelas mangueiras de alta pressão chegava até mim, assim como o bafo quente daquele fogo que devorava o monólito.
Olhando para o alto, vi no topo do edifício um grupo de pessoas. Cai na realidade. Havia vida naquele prédio! Tinha gente dentro dele! Entrei em pânico. Fui tomado por uma vertigem que quase me fez cair. Respirei fundo e tentei sair daquele estado de ansiedade, impotência e desespero. Minha mente desviou o meu olhar fixado no alto e o direcionou para o térreo. Vi então que a Pirani não mais existia. Pensei: “Adeus oferta especial da vitrola Phillips”...
Um simples pensamento tão fútil, banal, fez com que eu me recompusesse. Não podia fazer nada para aliviar aquela situação terrível, a não ser rezar.
Fiquei lá, olhando o trabalho magnífico dos bombeiros que, com toda aquela estratégia de salvamento que me parecera nova até para eles mesmos, trabalhavam alheios ao barulho ensurdecedor do helicóptero, que tentava pousar no teto do prédio.
Quanto tempo eu fiquei por lá, vagando, olhando? Quantas horas? Não sei. Sei que foi uma eternidade.
Cheirando a fumaça, coberto de partículas de cinza, voltei ao escritório e de lá fui para a minha casa. Fui pensando na fragilidade da vida humana e nos por quês existenciais... Por que o Andraus, um prédio tão novo?
Os jornais, a TV e o rádio explicaram todos esses por quês. Não fosse o incêndio do Andraus teríamos hoje muitos casos de “morte anunciada”. Mas não foi bem assim. Outra tragédia estava por vir...
Por Wilson Natale