quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Memórias de uma palavrão


imgens: Nydia Licia; Marcelo Gastaldi; Osmar Prado

Sou hoje um ex ator frustrado, mas, tenho ainda, minhas boas lembranças dos palcos que pisei.
Lembro-me que um dia, lá atrás, eu com o “fantástico” cargo de Diretor Artístico do G.A.T.O. (Grupo Amador Teatral Ozanam) do Colégio Comercial Frederico Ozanam, que muito me orgulhava, fui cientificado que a famosa Nydia Licia, naquela altura uma das grandes damas do teatro nacional, estava promovendo testes para formação de um novo espetáculo.
Não tive dúvidas. Junto com mais alguns membros do meu grupo, inclusive Maria do Carmo Seraphim, que era por mim considerada como excelent
e, fomos bater às portas do antigo Teatro Bela Vista.
Lá chegando, fomos atendidos por um senhor gordo e muito simpático, era ele o Sr. Renato, Gerente Administrativo do teatro. Ciente do motivo que nos levara até lá, nos encaminhou, de imediato, para o Alceu Nunes que, depois de nos fazer preencher uma ficha de inscrição, solicitou que retornássemos no sábado seguinte para fazer testes.
Ganhamos a rua bastante eufóricos e assim permanecemos até a data pré-estabelecida para o tão esperado teste.

Chegou o dia. Fomos admitidos no recinto onde vários candidatos permaneciam esperando o início da sessão. A aflição, o medo, a angústia deixavam nítidas marcas no rosto de todos.
Observando-os mais atentamente víamos gestos comuns a todos, mãos postadas, para diminuir o tremor, falta de melhor acomodação nas poltronas, risos nervosos.
De repente, não mais que de repente, acendem-se luzes na ribalta e surgem no palco a dama Nydia Licia, Alceu Nunes e mais um homem que ficamos sabendo, era o ator e diretor Libero Miguel.
Dona Nydia,então falou, explicou que estávamos todos ali para dar início ao projeto do Teatro da Juventude.
Explicou o intuído do projeto e, sem mais delongas, deu início aos testes. Foi chamando os candidatos, pedindo que lessem um texto previamente selecionado, depois representassem um trecho de um monólogo ou recitassem uma poesia.
Na minha vez, de tão nervoso, fiz tudo o que me pediram, mas não me lembro, até hoje, o que foi que pediram e, lógico, o que foi que fiz. Sei apenas que devo ter convencido, pois, ao final da sessão de testes, eu estava entre os selecionados e tinha como pares, nada mais, nada menos que Osmar Prado, Marcelo Gastaldi, e a Tuca.
Foram diversos dias de ensaio e de muita união. Minha admiração e respeito por Nydia Licia cada dia aumentava.
Enfim é chegado o dia da estréia.
Nas coxias, todos os membros, devidamente maquiados, esquentavam as vozes, corriam para uma última visita ao sanitário (coisa inevitável), eis que somos visitados, novamente, por Nydia Licia que nos reúne, dá mais um empurrão de confiança e, ao final, olhando nos olhos de todos diz: -“Bem, vamos para a cena e, MERDA para todos.”.
Um balde d’água caiu sobre minha cabeça. A diva do teatro usando palavra tão vulgar e de baixo calão?
Mesmo parcialmente decepcionado, não me permiti abatimento, fui para o palco e fiz a minha parte.
Depois, longe da repercussão dos elogios pelo desempenho de todos, recuperado da emoção provocada pelos elogios da Nydia, do Alceu e do Libero pelo sucesso da estréia, voltei a pensar no assunto e naquela palavra até então, para mim, bastante ofensiva.

Questionei o Alceu e ele, depois de sonora gargalhada, fez pose de mestre e me disse:
- Jovem companheiro, nos primórdios do Teatro, o público dirigia-se para assistir um espetáculo teatral usando como condução os coches, os tilburis, os cabriolés e outros que tais. Lógico, apeavam de seus veículos à porta do Teatro, em consequência, esse portal ficava coberto do estrume dos animais que tracionavam esses veículos. Para os atores, quanto mais estrume à porta, melhor era o resultado da bilheteria. Então apalavra MERDA passou a representar uma forma de augúrio e de expressar o desejo de muito sucesso.
Pronto, a decepção desapareceu e, daí em diante, sempre que aguardava o início de uma representação, fiz questão de dizer em alto e bom som: "MERDA PARA TODOS!"

Por Miguel S. G. Chammas

10 comentários:

Arthur Miranda disse...

Miguel, que coisa boa, você conviveu com pessoas que foram grandes amigos e colegas meus, e você fala em Libero Miguel,grande diretor de Dublagem da saudosa AIC. e do meu querido Marcelo Gastaldi, grande ator, dublador e diretor de dublagens, e que durante o final dos anos 60 formou com cantor Antonio Marcos, e o Fominha o conjunto Os Iguais. Marcelo faleceu de enfarte a alguns anos passados quando era diretor do departamento de Dublagens do SBT. grande amigo e companheiro e uma ótima pessoa, grandes companheiros dos quais eu tenho muita saudades,
parabéns Miguel pois sua historia me trouxe grandes recordações.

Wilson Natale disse...

Miguel, Miguel... Ahahaaaaaa!
A primeira vez que ouví a MERDA teatral, foi no Rio de Janeiro. Eu tinha 15 anos. Eu e meu primo Stelvio estávamos "sapeando" pela Praça Tiradentes quando vimos um grupo saindo do Teatro Recreio.Literalmente deliramos de prazer! Com o grupo, sairam a Nélia Paula e a Mara Rúbia. Ai, passou um homem e gritou para as duas: "Amanhã é estréia. Desejo UM CAMINHÃO DE MERDA PARA VOCÊS! Elas soltando beijinhos no ar agradeceram muito. E eu, escandalizado, só deixei aquela postura abestalhada depois que o meu primo explicou o que significava aquilo.
Adorei o teu texto!
Natale

Luiz Saidenberg disse...

Miguel, agora sim, "merde", ou merda mesmo, entra em cena em boa atuação.
Destinada ao seu propósito de trazer boa sorte aos atores, pois dura é a vida do artista. E sem adições de Nox Vomica ou qualquer outro ingrediente capaz de transmutar a palavra em feia matéria física...
Senão, seria o Toque de Merdas, e não de Midas.
Abraços.

Mô disse...

Oi, Miguel, essa eu não conhecia, escatologicamente, os artistas estavam bem quando estavam na merda. Quando o substantivo era usado pra identificar a posição social do indivíduo, era estar na pior ou na inevitável situação de uma vítima de queda brusca em seus vencimentos pecuniários, oriundos da malversação de aplicações nebulosas. É melhor falar que o cara está na merda, mesmo. Gostei de sua crônica, Miguel.

Soninha disse...

Olá,amor!

Bacana estapassagem de sua vida!
Boas recordações, né?!
Ter vivido e compartilhado palco com estas feras é o máximo!
Adorei!
Valeu!
Mita paz! Beijossssssssss

Luiz Saidenberg disse...

Nos ùltimos texto, Merda foi uma das palavras mais ouvidas. No sentido teatral, é verdade. Ainda assim vcs andaram espalhando merda no ventilador...abraços.

MLopomo disse...

Na escola que eu estudava nos anos 1954-55-e 56, a palavra mariposa que Adoniran colocou em sua musica foi motivo de censura por parte de dona Alaíde, que monitorava as moças da escola, no texto escrito por mim. O que diria ela se no inicio disséssemos Merda para todos. Grandes nomes foram mencionados pelo Miguel. Grande Nydia Licia, que não sei se ainda é viva, a Tucá, de saudosa memória. O teatro é, o que melhor temos para a cultura. Pena que a montagem de uma peça seja tão onerosa, que encarece o ingresso, o que impede que pessoa de baixo nivel financeiro fique de fora dessa cultura.

Nelson de Assis disse...

Sua explanação sobre 'merda' está correta, Miguel.
Há ainda uma outra expressão, mais comumentemente utilizada na américa que é: 'Break a leg' que, literalmente quer dizer 'quebre a perna'.
Refere-se às pernas do palco dos teatros, onde estão as cortinas e que, após o vai e vem dos agradecimentos, espera-se que os aplausos sejam tão intensos a ponto de quebrar as cordas que movimentam as cortinas.
Abraços

Zeca disse...

Graaaande, Miguel! Mais um pouquinho da sua rica história aqui revelado! Com que então você contracenou com essas feras?! Isso é uma grande honra e merece ser contado, não apenas nesta crônica, mas em outras que, espero, venham logo.
Abração.

Anônimo disse...

Si non é vero é bene trovato!
Conheço outra versão para MERDA!
Segundo dizem, deve-se a Ionesco, em sua peça sobre Eurídice. A afirmação é! "Madame Euridice reviendra des Enfers". A letra inicial de cada palavra comporia o MERDE! que se diz a cada apresentação teatral.
Merde a nous!