quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Memórias de querer

 
 
Hoje o dia está chuvoso e frio; perfeito para sentar em qualquer canto, calar a voz e permitir que o peito, através das lembranças, chore e ria o quanto e como quiser.
Não será preciso nenhum toque especial, nenhum gole de álcool ou qualquer outro motivador que seja. Basta, apenas, relaxar e esperar as memórias começarem a aparecer.
Bem pensado. Imediatamente colocado em prática. Surge uma dúvida: O que lembrar?
Bem, eu queria voltar no tempo, ir para as décadas de 40/50, e lá, naquele casarão da Rua Augusta 291, encontrar a minha infância, encontrar meu avô Gidi, minha avó Siti, minhas tias Neide e Zazá, meus primos Sonia e Roberto, minha mãe, meu pai.
Queria, de novo, subir pelas escadas de mármore, ganhar o corredor e, adentrando no quarto da frente, encontrar meu avô, já doente, e lhe fazer um cigarro de palha para, depois, então, ler uma boa parte do jornal até vê-lo ressonar, tranquilamente.
Queria continuar percorrendo aquele longo corredor, ultrapassar o primeiro quarto onde dormíamos, eu, meu irmão, meu pai e minha mãezinha. Passar, logo em seguida, pelo segundo dormitório que era ocupado por minha tia Neide e meus primos Sonia e Roberto e, finalmente, chegar à sala de jantar onde as reuniões familiares eram realizadas, onde a árvore de Natal era montada todos os anos, onde os presentes do ”Papai Noel” eram desembrulhados a cada dia 25 de Dezembro, onde as macarronadas dos almoços dos domingos eram realizadas, onde os pacotes de doces do Bar Viaducto, comprados por meu pai, eram abertos e os doces devorados por todos, onde nós, crianças, a cada almoço, tínhamos, divididas com justiça plena, garrafas de deliciosas Tubainas.
Sala onde eu presenciei ainda garoto, os bailecos promovidos por minha tia Zazá, recheados de trilhas sonoras com Fernando Albuerne, Gregório Barrios, Lucho Gatica. Bing Crosby, Frank Sinatra, Tommy Dorsey, Glenn Miller e outros sons doces e melodiosos e, depois, passados alguns anos, mudando de assistente para promotor, passei a realizar bailinhos, não de garagem, mas de sala, abrilhantados por Pick-up e sus Negritos”, amparados por “sandubas” de “Carne-Louca” e espetinhos de Salsicha e Picles enfeitando abacaxis ou outros que tais, regados a Ponche confeccionados com muita guaraná, Cinzano, frutas picadinhas e gelo.
Sala de mil lembranças, inclusive as tristes como os velórios de meu avô e depois de minha tia Neide, onde a ela era transformada em morgue, tomada de panos pretos azuis e dourados, iluminada por velas em castiçais prateados e flores de odor doce e nauseabundo, arejada por um pequeno aparelho emissor de ozônio de barulho irritante.
Ou seja, uma sala grande e facilmente adaptada às exigências da situação apresentada.
Queria continuar atravessando o corredor, passando pelo pequeno quartinho ocupado por minha tia Zazá, quando de sua solteirice, passando, depois, pela porta do único banheiro da casa que , no seu interior, guardava uma enorme e antiga cômoda de madeira que tinha suas gavetas usadas para acondicionar materiais de higiene e toalhas de rosto e banho. Tinha, também, uma enorme banheira de um metal forte e pesado, um tanto quanto enegrecida pelo tempo, e usada de quando em vez, para os banhos alegres das crianças que, depois de se refestelarem na água represada, usavam o chuveiro elétrico que desaguava ao centro da referida banheira para o desensaboamento.
Chegaria, então, ao cômodo mais importante da casa, a cozinha, poucos, onde a vida inteligente da família se reuniam nos dias não festivos para consumirem os alimentos (poucos no pós guerra), mas elaborados com carinho e maestria por Tia Neide e minha mãe. A cozinha era simples, tinha um fogão de ferro onde eram acesos com a ajuda de cascas de laranja que, por sua vez, eram penduradas na barrinha em frente do fogão para serem secas e, consequentemente, transformarem os carvões inertes dentro das bocas em brasas vivas, e emprestarem o seu calor para uma perfeita cocção dos alimentos. Tinha também uma mesa antiga, de madeira já bastante gasta nas bordas arredondadas, um armário para guardar pratos e copos, uma pia que, nos seus baixos, tinham sido empilhadas umas tábuas para acondicionarem-se as panelas que, por sua vez, eram escondidas por uma cortininha de pano estampada com pequenas flores azuis. A geladeira, que chegou um dia, para gáudio de todos, estava instalada ao lado da pia e, pasmem, era alimentada por barras de gelo que recebíamos diariamente através do “geleiro” e sua carroça básica.
Finalmente, descerrar a porta da cozinha e deparar com o cenário de minha pobre, mas alegre infância. O quintal que, ainda hoje, povoa minhas lembranças. No seguimento da porta da cozinha ficava uma escada que descia pela parede até o piso do quintal. Uma pequena parte do quintal, em que estava instalado o tanque onde um dia eu mergulhei como se fora um super-herói e quase matando de susto minha mãe, o corredor lateral e de todo o porão da casa era cimentada, O resto do enorme quintal era em terra bruta, onde alem dos varais de roupa, suspensos por taquaras secas existiam, também, alguns mamoeiros, uma goiabeira de frutos vermelhos, onde eu saciava minha gula, algumas ervas aromáticas, um enorme e pesado pilão de cimento dos tempos de minha avó e, a minha paixão, uma touceira de hortênsias azuis que eram o meu esconderijo preferido depois de alguma travessura.
Esta era minha casa, meu mundo, minha vida. Queria muito poder voltar a ela e matar as saudades que hoje moram no meu coração.
Infelizmente, a realidade é cruel e sei, pesarosamente, ser impossível meu desejo, então tento amenizar estas saudades escrevendo e descrevendo o velho casarão.
Por Miguel Chammas
 

5 comentários:

Soninha disse...

Olá, Miguel!

As lembranças de infância nos enternecem.
Tenho certeza que todos que lerem o seu texto serão remetidos às suas vidas de crianças, jovens, adultos, em todas as idades.
Seu relato nos mostrou, com detalhes, a velha Rua Augusta, sempre nova nos corações paulistanos.
Valeu!
Muita paz!

Miguel Chammas disse...

Obrigado Soninha por mais esta deferência. Mais um rosário das memórias que me acompanham. Valeu!

Teresa disse...

Transporte sua casa da Rua Augusta para a Rua Dr. Ricardo Gonçalves, no Brás e estamos na minha casa. O mesmo corredor, os quartos, o quintal, o mamoeiro, a goiabeira e até a moita de hortênsias. Uma porção de gente morando num casarão e, é claro, uma porção de gente morrendo nesse mesmo casarão e sendo velada na sala da frente que só era usada para essas ocasiões e para receber visitas, com uma única exceção: era onde ficava a nossa ma-ra-vi-lho-sa árvore de Natal, que meu tio fazia questão de fazer todos os anos e comprava a mais alta que encontrava, pois o pé direito da casa era altíssimo e cabia lá. Aliás naquela casa sempre cabia mais um, pois meu tio sempre tinha as portas abertas para receber um parente ou um amigo necessitado. Boas lembranças. Obrigada, Miguel por tê-las despertado.

Unknown disse...

Texto com a griffe Miguel Chammas; sensibilidade à flor da pele. Vida vivida, vivência, recolhimento para dentro de si mesmo, não são lembranças, são saudades...

Anônimo disse...

Miguel, à medida que você descreve o casarão da sua infância, ele vai ganhando vida, na sua memória, que o descreve e na mente de quem o lê. Portanto ele existe sim, no plano da imaginação (ou no plano astral, como eu prefiro chamar) e eu te agradeço pelo convite de visitá-lo!
O detalhe mais importante é que ele era completamente recheado de amor, o que garante que o casarão continue mais vivo do que nunca.