Texto sem edição
Olhando
pelo janelão do hospital, vejo claramente a escadaria que leva à praça Santo
Agostinho, à igreja e ao colégio... Lembranças chegando...
Faz
tempo, muito tempo, eu ainda usava calças curtas, cinto de couro, suspensórios,
sapatos pretos e meias compridas brancas - um boné ou um capacete de massa, do
tipo que os ingleses usavam na Índia, da Ramenzoni, claro. Dependendo do tempo
ou do clima, albornozes, quipás ou filás de minha infância, a cabeça estava sempre
coberta, como a proteger meu 'ori' ou como sinal de temência a Adonai/Jeovah,
Allah, Deus (já repararam que nas fotos antigas de grupos familiares,
amarelecidas pelos anos, os homens posam sérios, de cara fechada, terno
completo, chapéu coco, corrente de relógio cruzando a frente do colete e
cofiando seus longos bigodes, sempre sentados; as mulheres em pé com seus
rostos tristes, as crianças com as melhores roupas, as meninas com enormes
laçadas de fita, tipo butterfly, presas com 'ramonas' no alto da cabeça, os
meninos com chapéus desabados ou bonés, tendências fashions dos anos 20?
Peço
desculpas pela digressão; não sei o porquê dessas lembranças, talvez a visão do
meu antigo colégio e da igreja de Santo Agostinho me fizeram criar analogias
idiotas sobre cabeças cobertas, fotos em sépia, sei lá)!...
Situações
esquecidas vêm à tona, (o(h) tempora, o(h) mores)!; o que seria um
'bom-lembrar-se', do meu ponto de vista, hoje, em pleno século XXI, do alto de
minha septuagenaridade, vejo que as coisas não eram bem do jeitão que se
costuma idealizar; aqueles bons tempos não eram tão bons tempos como são
apregoados hoje em dia, mas é melhor deixar prá lá, tempos idos, tempos
vividos, cada tempo tem seu tempo, palavras do velho Conselheiro Acácio; vamos
deixar o menino do início dos anos 50s em seu passado e passemos ao que eu
queria escrever, botar prá fora...
Meus
pensamentos idiotas são interrompidos por uma voz educada, meio afeminada:
"Hora do banho, 'seu' Joaquim...", voz de um Auxiliar de Enfermagem do
turno, sujeitinho simpático, sorridente. seus 19, 20 anos, quase imberbe, ainda
tendo muito a viver, a aprender; segura as manoplas de minha cadeira de rodas,
parece pretender me levar de volta para meu leito...
- Me
deixa mais um pouco aqui, 'mermão'!; tem tempo, não 'tou' tão precisado de
banho agora...; tem um pessoalzinho na Enfermaria mais necessitado, aquela
turma do peito esburacado...
-
'Tá'!... Depois, então, eu venho buscar o senhor, depois dos curativos...
- Legal,
não esquenta a cabeça..
Ter feito
parte da honrada e sofrida corporação da Enfermagem durante bastante tempo tem
lá suas vantagens, algumas prerrogativas, principalmente quando se está em
'decúbito dorsal' em algum leito de hospital, doente, evidentemente. No meu
caso, um terceiro infarto acabou me levando para a Beneficencia Portuguesa onde
passei por um festival de angioplastias em uma semana, com implante de stents
por parte de uma equipe competentíssima de prospectadores de coronárias. O
pessoal de enfermagem, meus colegas, me tratou de maneira um pouquinho
diferenciada, nada exagerado, apenas um pouco mais de carinho...
- ...fica
de olho nesse 'nego véio', êle é dos nossos... é enfermeiro das antigas... é
corintiano, não deixa êle fugir...
- Ah!
é?... é corintiano, é?, por isso que o'relógio' dele ameaçou parar, 'tava 'cos'
'cano intupido'...
-
...querem saber duma coisa? Vão à merda...colegas...
Aposentado,
longe do meu ambiente de trabalho, sinto saudades da faina diária, dos colegas,
das colegas, dos cheiros, dos ruidos de um hospital. O fato de estar internado
me faz lembrar situações pelas quais passei, uma delas, por exemplo:
- O
senhor que é o 'seu' Joaquim?
- Sou
eu...
- Eu
precisava de um favor seu...
-???
- Minha
irmã é freira... Trabalhou muito tempo na cozinha do Hospital Matarazzo, mas
'tá' velhinha, coitada, 'tá' com cancer - coisa feia, está internada no
Iguatemi... Será que o senhor podia dar uma atençãozinha especial prá ela? O
senhor também trabalha lá, né?
-
Trabalho sim, mas não é favor, colega... nós vamos dar um atendimento
prioritário à freirinha... fica frio...
-...ela
'tá' morrendo, 'tá' sofrendo muito...
Eu
trabalhava no HC e no antigo Hospital Iguatemi na Francisco Morato, a 3
quarteirões de minha casa, fins dos anos 70s; naquele dia , quando assumi meu
plantão, procurei de imediato a enfermaria onde estaria a freirinha.
Achei um
feixe de ossos com monitoração, eletrodos fixados num torso onde as costelas
pareciam perfurar a pele, olhos destacando-se num rosto encaveirado, sondas,
tubos, venóclises, flebotomia, facies doloroso. As colegas do plantão faziam as
anotações dos sinais vitais quando ela 'parou' na minha frente , assim, num
estalar de dedos, num 'clap'!, com os alarmes do monitor soando
ininterruptamente. Médico, residentes, enfermagem, correria organizada, tábua
de ressuscitação, 'carrinho de parada'; ambu, massagem cardíaca, desfibrilador,
adrenalina direto no coração, conversas e orientações em voz baixa, esperança:
"ela está voltando...vai voltar, vai voltar, vai voltar", segura,
segura, segura, se ajuda, menina!, força, força!,..."; vejo uma colega
dando nós nas pontas do lençol nos 'pés' da cama, ela meio-sorri e dá uma
piscadela para mim como se estivesse dizendo: "no nosso plantão essa não
'viaja'; os lençóis estão amarrados nos pés da cama!" (simpatia para
'segurar' vivo o paciente terminal durante o plantão - pronto, não deveria mas
acabei revelando um dos segredos mais bem guardados daquele pessoal da
enfermagem que, verdadeiramente, põe a mão na massa, nós, os técnicos e
auxiliares de enfermagem!).
Resumindo
a ópera: a freirinha foi ressuscitada, ficou internada na UTI durante uns 15
dias, voltou para a enfermaria e, deu aquela melhorada que prenuncia o fim de
tudo, dizem que é a melhora prá morrer!
- 'Seu'
Joaquim, o senhor deu um murro no meu peito, um, dois murros e começou a
massagear... eu vi tudo lá de cima, aquele montão de médicos e enfermeiros, uma
correria... eu estava voando... fazia muito frio... entrei num lugar 'que nem'
um buraco escuro e aí vi minha mãe e meu pai, bem mocinhos, meu tio que veio da
Itália em 47... ele perdeu uma perna na guerra da Abissínia mas estava com as
duas, bem mocinho também... muitos parentes que já tinham morrido... então
voltei para a enfermaria... todo mundo desapareceu... vocês estavam rezando, eu
ouvia dentro da minha cabeça... tinha uma menina que estava chorando... o
senhor mesmo chorou depois, que eu sei,o senhor e o meu médico, o Dr. X (não
vou nomear o médico que atendeu à freirinha; hoje êle é um dos figurões da
medicina, cuida de presidentes, governadores, políticos, chefia hospitais de
referência, coordena planificações na área da saude em âmbito nacional)...
Alguns
dias depois ela partiu... Tínhamos sido orientados a não tentar nenhm
procedimnto heróico para trazê-la de volta... dormiu e não acordou...
A partir
desse acontecimento mudei minha maneira de ver às coisas insólitas. No que eu
não acreditava, passei a acreditar... Não discuto, não faço proselitismo, tenho
minhas convicções... não me impressiono mais quando, em sonhos (sonhos?), vejo
meu pai, meus avós, ou pessoas que devem estar ligadas à mim, de uma maneira ou
de outra...
-
'Seu" Joaquim, seu médico autorizou o senhor a sair da cadeira... pode
tomar seu banho em pé, sózinho...
- Graças
a Deus... não 'tava' aguentando mais esse negócio de cama, cadeira de rodas...
tem sabonete no banheiro?
- No seu
criado mudo...
- Voce
viu se minha esposa trouxe minhas dentaduras?
- '...tão
no postinho, vou buscar...
-
Obrigado...
...e tem
a história daquela mulher toda de branco que de vez em quando é vista rezando
no corredor do setor de queimados do HC ou rezando na capela ecumênica, na
laje, acima do 10º andar... Qualquer dia desses, se eu tiver ânimo, posso falar
sobre ela ou lembrar de mais alguma coisa!
Por
Joaquim Ignácio de Souza Netto
7 comentários:
Olá, Ignácio!
Depois de tantas décadas trabalhando em hospitais e presenciando todas estas situações, não tem como não lembrar de tudo, não é?!
Você mesmo vivenciou o outro lado, como paciente também.
Espero que você já esteja recuperado, gozando de plena saúde junto à sua família.
Valeu!
Muita paz e saúde pra você!
Joaquim, nosso conhecimento já marcaa idade dos 50 e tantos anos, assim sendo,´posso gozar de certa intimidade.
Teu texto me fez meditar, muito mais, sobre o insólito do andar de cima.
Já não tenho mais as forças de antigamente e, por orgulho ou sei lá o que, prouro não demonstrar essa minha quaze total fragilidade.
Acho que a luz da velaesxtá tremilicando e uma hora quyaqer vai se apagar.
Espero poder ainda te dar um abraço. Quem sabe na proxima Rodadas?
Vamos lá
Ignácio!
Estou com um nó na garganta! Já disse antes o quanto gosto de ler os seus textos. Estava estranhando sua ausência por aqui e foi com alegria que encontrei, hoje, este texto! O texto é comovente, especialmente por saber que é um testemunho de uma vida; de uma, não! De várias vidas de pessoas que, como você, se dedicam, muitas vezes a duras penas, no cuidado de pessoas doentes. Já estive internado há alguns anos, quase morrendo devido a uma pneumonia que não havia sido detectada antes e, sozinho no hospital, todo o pessoal da enfermagem se revezava para me fazer companhia, condoidos por verem que eu não recebia visitas. É que meus pais estavam em Minas e eu não quis contar para ninguém que estava doente. Foram verdadeiros anjos levitando ao meu redor durante os primeiros e mais críticos dias. Nunca os agradeci pessoalmente, mas oro por eles todos os dias. Assim como sei que muitas pessoas já cuidadas por você também fazem.
Espero que você esteja recuperado, junto aos seus familiares e pronto para nos presentear com outros textos com a mesma qualidade de sempre.
Sou seu fã!
Abração.
Meus amigos do Memórias: tenho estado em um lugar incivilizado, acompanhando a reforma de minha casa no litoral; é uma cidade com infraestrutura praticamente medieval; já ouviram falar em Mongaguá? Internet? Esquece! Telefone fixo? Funciona, mas nem tanto. Telefonia móvel? Só a molecular, ou seja, você escreve um bilhete e pede prum moleque entregar...Quanto à minha saude: vai bem, obrigado...
Miguel, um grande abraço e ânimo rapaz, bola prá frente, já dizia Friedenreich...
Ignacio
Um ótimo texto, como sempre! Gostei e compartilhei. Melhoras e continue nos brindando com seus relatos.
Ignácio, não sendo fruto de sua imaginação, tudo isso compõe um resumo de acontecimentos reais, evidentemente. As vezes trágicos(quase sempre)outras romanceados, outras, ainda, inacreditáveis porém, todos os eventos aqui narrados, levam a chancela de sua sinceridade em contar, com a beleza de uma perfeita crônica que só vc sabe muito bem narrar. Parabéns, Ignácio.
Modesto
Ignacio, que bom que existe enfermeiros tão cuidadosos como você e seus colegas.Pelo seu relato da para sentir como tudo é muito trabalhoso, com certeza os pacientes agradecem. Eu já não tive a mesma sorte, já fiquei internada mas eles não tiveram a paciência com as perguntas que eu fazia. Na ultima vez que fui fazer um exame, a enfermeira me disse, ao colocar uma agulha na minha veia pra injetar um anestésico,que a minha veia havia estourado porque eu estava muito nervosa e quando uma pessoa fica nesta situação suas veias estouram mesmo. Ainda afirmou que eu não estava colaborando.Conclusão fiquei com a mão toda roxa e um calombo para completar.Seu texto está muito bonito porque retrata sua vivencia.Um abraço.
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