segunda-feira, 10 de setembro de 2012

O NATAL DA MINHA INFÂNCIA




 

Este seria o segundo Natal que eu minha mãe e minhas duas irmãs passaríamos sem o meu falecido pai, que morreu do coração em junho de 1945. Este ano porem, graças a uma promoção Social do Governo de São Paulo encabeçado por sua famosa esposa e primeira Dama do Estado Leonor Mendes de Barros, eu não iria ficar sem presentes. Minha Irmã mais velha, Jurema, conseguiu três convites depois de pegar uma fila enorme no diretório do ANTIGO PSP - Partido Social Progressista, dirigido pelo Joaquim Fernandes o português mais brasileiro que conheci. Um homem lutador que trabalhou muitos anos incansavelmente para trazer melhorias para o bairro da Freguesia do Ó.

Esse convite dava o direito para que no domingo que antecedesse o dia de Natal, pudéssemos comparecer no PALÁCIO CAMPOS ELÍSIOS (na época Sede do Governo do nosso Estado) e retirássemos ali os presentes que seriam distribuídos às crianças pobres da cidade.

Passei grande parte dos dias que antecedeu esse Natal, Igual corintiano depois de ganhar a Libertadores, ou seja, em estado de graça! Acostumado pela pobreza nata a não ganhar presentes no dia de Natal, estava me achando um felizardo, principalmente por saber que os convites estavam esgotados e eu era o único menino daquele pedaço que possuía o convite, graças ao sacrifício da minha irmã que enfrentou enorme fila das 11h: 00 até às 20h: 00 para pegar o mesmo.

E assim à medida que o tempo ia passando, a minha ansiedade aumentando, e eu ia fantasiando o presente que iria ganhar Uma bicicleta, um Patinete, um carro de dar corda, uma bola de futebol, um revolver com cartucheira, uma caixa com um jogo ou um quebra cabeça, um caminhão ou carro de Bombeiros, uma espingarda. E se fosse o meu grande sonho de consumo! Um trem elétrico puxa! Se fosse um trem elétrico eu prometi a mim mesmo que quando ficasse grande eu iria votar no Adhemar de Barros também.

Dia de Natal demorado aquele! Não chegava nunca, eu até então, jamais havia aguardado a chegada de um dia de Natal, com tamanha ansiedade e aquele domingo acabou virando uma obsessão, os dias levavam anos para passar, e eu estava irremediavelmente possuído de um verdadeiro TPN, (Transtorno do Presente Natalino).

Por fim, chegou o domingo por mim esperado, minha mãe descolou as duras penas, aquele famoso vil metal que hoje em dia é a principal causa da destruição de muita gente simples, como também de varias autoridades constituídas do nosso Brasil. Esse dinheiro seria usado por nós para o nosso transporte de ônibus. Que naquela época no bairro não era da CMTC ainda. Era um ônibus amarelinho que, naquele tempo, não circulava até o centro da cidade e transportava os moradores da Freguesia somente até o Largo Pompeia, lá era necessário pegar outro ônibus ou bonde, para alcançar o atual centro velho, que naquele tempo ainda era novo.

Naquele domingo ataquei de passarinho, as quatro da matina já estava acordado, em ação, e altamente motivado para junto à minhas irmãs, seguir rumo à sede do Governo Paulista, em busca dos presentes fartamente anunciados pelas rádios e jornais e pelo alto falante do diretório eleitoral do PSP do Bairro, ao som da voz sempre marcante pelo sotaque português, do querido e hoje saudoso Joaquim Fernandes.

Às seis da manhã em ponto (oi nóis no ponto) aguardando a chegada do esperado amarelinho, na época ir ao centro da cidade era para nós coisa tão rara como hoje em dia é, viajar para a Europa ou Disney, Quando o mesmo chegou eu já entrei disputando e anunciando para minhas irmãs:

-Eu quero ir na janelinha! Já que entrei naquele ônibus tendo a absoluta certeza que minhas irmãs também entraram, pensando exatamente essa mesma coisa. Ou seja, sentar do lado da Janelinha.

Saímos do largo da Matriz, pegamos a Av. Itaberaba, passamos em frente ao Cemitério da Freguesia do Ó descemos a Rua Javoraú até a altura do Largo do Clipper, ainda sem o cinema que lhe cedeu o nome, pegamos a Avenida Santa Maria, os imóveis, e as construções do bairro que na época já eram poucas foram ficando para traz, passamos por um lixão onde hoje em dia estão construídas as marginais do Tiete, e um posto de gasolina, atravessamos uma velha ponte de madeira sobre do Rio Tiete, passamos em frente a um grande terreno onde existia a torre de transmissão da Radio Cultura, circundada por um belo lago onde alguns adultos às vezes pescavam escondidos, já que havia em todo seu contorno, placas de aviso de pesca proibida.

Passamos em frente à Rua Comendador Souza onde até hoje esta localizado o campo do NAC, Nacional Atlético Clube, (grande celeiro de craques para o nosso futebol, assim como o Juventus e o antigo C. A. Ypiranga), atravessamos as porteiras da chamada Água Branca e depois de contornarmos o Largo Pompeia chegamos ao ponto inicial da linha, no finalzinho da Av. Pompeia esquina com Rua Turiassú ao lado de um enorme deposito de bebidas da Cia. Antárctica Paulista depósito este que há muitos anos não existe mais, assim como os armazéns da fabrica da (IRFM) Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo que na época ocupavam quase toda a extensão da atual Avenida Matarazzo.  

Estávamos ansiosos para chegar ao local eu nem percebi que o bonde já havia saído da Av. Francisco Matarazzo ultrapassado o largo Padre Péricles nas Perdizes, o viaduto Pacaembu e já estava em frente o Velho Circo Piolim na Avenida General Olímpio da Silveira, portanto já bem próximo ao final da viagem, o que aconteceu mais a em frente na altura da Alameda Glete, após termos ultrapassado a Praça Marechal Deodoro.

Desci do bonde lutando para se livrar de minha irmã, pois queria muito descer sozinho e sem ajuda de ninguém (coisa de menino que já se sente adulto) e fiquei pela primeira vez sozinho em cima daquelas ilhas que existiam no meio da antiga Avenida São João para facilitar a travessia dos pedestres e servir de plataforma para a subida e a descida dos passageiros dos bondes que circulavam pelo local.

Subimos a Glete em direção a Rio Branco rumo ao Palácio Campos Elísios, e pelo caminho notamos um grande movimento de crianças e adultos seguindo nessa mesma direção, e então no momento que aproximávamos do Palácio, as ruas foram ficando congestionadas e ao aproximarmos do local do citado evento, eu e minhas irmãs vimo-nos obrigados a pedir licença para seguir à diante.

Minha primeira impressão ao chegar ao local era que o mundo todo também estava por lá. Em 1947 a população paulistana estava um pouco acima de um milhão e meio de pessoas, hoje imagino que no mínimo umas cento e cinquenta mil cabeças circulavam no local, levamos pelo menos uns cinquenta minutos para achar o final da fila que dava umas três voltas ou mais, em torno do quarteirão do Palácio.

Quando conseguimos achar o final da fila já passavam das 10 horas da manhã eu já choramingava com sede e com vontade de ir ao banheiro, incomodo esse que passou a ser abrandado à medida que eu passei a notar que os meninos que estavam nos primeiros lugares dessa enorme fila, já transitavam de volta para suas casas com seus presentes, essa maravilhosa visão abrandou um pouco a minha sede, como também a minha vontade de ir ao banheiro, antevendo que meu sacrifício seria compensado, no momento gostoso de ter um daqueles presentes, que aqueles felizardos meninos portavam, também em minhas pequeninas mãos.

Aguardando horas sob um forte sol naquela imensa fila eu assistia cheio de felicidade, aquele maravilhoso desfile de meninos e meninas sorridentes e felizes, carregando bicicletas, bolas de futebol de capotão, patinetes, lindas bonecas, brinquedos a granel, que eu passei a suportar a tortura da sede e da vontade de fazer Xixi até ao meio dia, aí consegui me livrar não sem certa vergonha daquele terrível aperto, atrás de um caminhão estacionado na Alameda Nothmann, logo depois minha irmã conseguiu um copo plástico, e com ele foi pegar água em um bar estabelecido na ainda antiga e tímida. Avenida Rio Branco. O que para ela foi muito custoso, já que no bar havia uma multidão pedindo água e permissão para usar o banheiro, sentindo que tudo aquilo já estava caminhando para um grande tumulto, o proprietário além de não querer mais permitir o uso do banheiro, ameaçava prudentemente fechar o estabelecimento, fato que acabou ocorrendo um pouco depois com ajuda da Guarda Civil.

Perto das 13 horas estávamos chegando próximos ao portão principal do Palácio, eu já não via mais os meninos que passavam de volta para casa com grandes presentes, e sim apenas umas pequenas sacolinhas, por fim, perto das 14 horas depois de seis longas horas de sede, fome, atropelos e empurrões após atravessar um corredor de uns quinze metros formados por homens da antiga e simpática Guarda Civil de São Paulo, chegamos a enorme e esperada barraca de distribuição dos presentes do Governador de São Paulo.

Sobrou para nós, o resto de um grande banquete, uma bonequinha de pano, um saco de balas e um pequeno chocolate Gardano, para elas. Um saco contendo um caminhão de cinco centímetros, fabricados com um plástico mole imitando as rodinhas, mais meia dúzia de micros caminhões iguais, porem bem menores, um saco de balas, e um saco plástico contendo 10 bexigas coloridas. Foi o que me restou.

Mais tarde já mocinho, toda vez que via documentários cinematográficos de Urubus devorando restos de animais abatidos por leões na selva africana, me sentia como um deles.

Não preciso dizer que em 1957 dez anos depois, o meu primeiro voto assim como os das minhas irmãs, foram dados ao Jânio Quadros para governador, e em 1960 ao mesmo, para Presidente. Não por gostar do Jânio, mas para ser contra o Adhemar. (santa e alienada inexperiência).

E assim naquele "Lindo Natal" de 1947 eu as duras penas, acabei descobrindo, que os últimos aqui na Terra. Serão sempre os ÚLTIMOS MESMO. RSRSRS.

Nenhum pobre irá morrer ou sofrer, se não tiver um presente no dia de Natal.

Mas se ele ganhar algo que machuque seu orgulho de ser humano, fatalmente carregara esse trauma e essa frustração por toda vida.


Arthur Miranda (tutu)

 

6 comentários:

Zeca disse...

Arthur,

se não fossem seus toques cômicos durante a narração, esta seria uma história tristíssima, que levaria às lágrimas os corações menos endurecidos pelas asperezas da vida. Mas a sua conclusão de que "os últimos aqui na Terra. Serão sempre os ÚLTIMOS MESMO", é brilhante!
Confesso que já andava sentindo falta dos seus textos, sempre tão bem elaborados.

Abraço.

Miguel S. G. Chammas disse...

Tutu, mais um texto emocionante, escrito com as tintas do coração.
Tal e qual a vida, você escreveu o drama e colocou pitadas de humor para amenizá-lo. Lindo!

margarida disse...

Arthur, uma linda historia de vida,mas com fundo de tristeza. Confesso que ao ler seu texto torci para que ganhasse um presente a altura dos seus sonhos.Mesmo sem o presente ideal naquele natal, a vida, com certeza lhe enriqueceu com muitos outros.Parabéns pelo belo texto e um grande beijo.

leonello tesser (Nelinho) disse...

Arthur, mais um belo texto, mixto de tristeza e toques de humor, eu também passei por isso mas foi no antigo Largo São Paulo, abraços, Leonello Tesser (Nelinho).

Laru disse...

Tutu, já conversamos a respeito desse testemunho eloquente da pior espécie de logro que um adulto pode perpetrar com uma criança. Se vc tratar bem uma criança, com respeito, dedicação e amor, ela nunca vai esquecer. Se vc querer enganar essa mesma criança, NUNCA mais ela vai esquecer e sempre guardará um resquício de rancor pro resto de sua vida. Parabéns, Arthur.
Laru

Wilson Natale disse...

ARTHUR:
"Quando a esmola é grande, até o santo desconfia."
O Adhemar queria votos! Não tinha a menor importância se, nesses eventos "caritativos", o povo sofresse às portas do Palácio, ou qualquer outro lugar.
Afinal, "o inferno está cheio de boas intenções", não é mesmo?
O teu presente foi "de grego". Mas o presente que você nos deu foi maravilhoso.
Nessa sua trajetória em busca do presente, você nos deu uma boa visão desta São Paulo de 1947. Adorei!
E você, mãe e irmãs tiveram sorte: voltaram para casa com os dedos e os anéis... Ahahahahahaaaaaaa! Afinal, o Adhemar era o Adhemar.
Abração,
Natale