Este
seria o segundo Natal que eu minha mãe e minhas duas irmãs passaríamos sem o
meu falecido pai, que morreu do coração em junho de 1945. Este ano porem,
graças a uma promoção Social do Governo de São Paulo encabeçado por sua famosa
esposa e primeira Dama do Estado Leonor Mendes de Barros, eu não iria ficar sem
presentes. Minha Irmã mais velha, Jurema, conseguiu três convites depois de
pegar uma fila enorme no diretório do ANTIGO PSP - Partido Social Progressista,
dirigido pelo Joaquim Fernandes o português mais brasileiro que conheci. Um
homem lutador que trabalhou muitos anos incansavelmente para trazer melhorias
para o bairro da Freguesia do Ó.
Esse
convite dava o direito para que no domingo que antecedesse o dia de Natal,
pudéssemos comparecer no PALÁCIO CAMPOS ELÍSIOS (na época Sede do Governo do
nosso Estado) e retirássemos ali os presentes que seriam distribuídos às
crianças pobres da cidade.
Passei
grande parte dos dias que antecedeu esse Natal, Igual corintiano depois de ganhar
a Libertadores, ou seja, em estado de graça! Acostumado pela pobreza nata a não
ganhar presentes no dia de Natal, estava me achando um felizardo,
principalmente por saber que os convites estavam esgotados e eu era o único
menino daquele pedaço que possuía o convite, graças ao sacrifício da minha irmã
que enfrentou enorme fila das 11h: 00 até às 20h: 00 para pegar o mesmo.
E assim à
medida que o tempo ia passando, a minha ansiedade aumentando, e eu ia
fantasiando o presente que iria ganhar Uma bicicleta, um Patinete, um carro de
dar corda, uma bola de futebol, um revolver com cartucheira, uma caixa com um
jogo ou um quebra cabeça, um caminhão ou carro de Bombeiros, uma espingarda. E
se fosse o meu grande sonho de consumo! Um trem elétrico puxa! Se fosse um trem
elétrico eu prometi a mim mesmo que quando ficasse grande eu iria votar no
Adhemar de Barros também.
Dia de
Natal demorado aquele! Não chegava nunca, eu até então, jamais havia aguardado
a chegada de um dia de Natal, com tamanha ansiedade e aquele domingo acabou
virando uma obsessão, os dias levavam anos para passar, e eu estava
irremediavelmente possuído de um verdadeiro TPN, (Transtorno do Presente
Natalino).
Por fim,
chegou o domingo por mim esperado, minha mãe descolou as duras penas, aquele famoso
vil metal que hoje em dia é a principal causa da destruição de muita gente
simples, como também de varias autoridades constituídas do nosso Brasil. Esse
dinheiro seria usado por nós para o nosso transporte de ônibus. Que naquela
época no bairro não era da CMTC ainda. Era um ônibus amarelinho que, naquele
tempo, não circulava até o centro da cidade e transportava os moradores da
Freguesia somente até o Largo Pompeia, lá era necessário pegar outro ônibus ou
bonde, para alcançar o atual centro velho, que naquele tempo ainda era novo.
Naquele
domingo ataquei de passarinho, as quatro da matina já estava acordado, em ação,
e altamente motivado para junto à minhas irmãs, seguir rumo à sede do Governo
Paulista, em busca dos presentes fartamente anunciados pelas rádios e jornais e
pelo alto falante do diretório eleitoral do PSP do Bairro, ao som da voz sempre
marcante pelo sotaque português, do querido e hoje saudoso Joaquim Fernandes.
Às seis
da manhã em ponto (oi nóis no ponto) aguardando a chegada do esperado amarelinho,
na época ir ao centro da cidade era para nós coisa tão rara como hoje em dia é,
viajar para a Europa ou Disney, Quando o mesmo chegou eu já entrei disputando e
anunciando para minhas irmãs:
-Eu quero
ir na janelinha! Já que entrei naquele ônibus tendo a absoluta certeza que
minhas irmãs também entraram, pensando exatamente essa mesma coisa. Ou seja,
sentar do lado da Janelinha.
Saímos do
largo da Matriz, pegamos a Av. Itaberaba, passamos em frente ao Cemitério da
Freguesia do Ó descemos a Rua Javoraú até a altura do Largo do Clipper, ainda
sem o cinema que lhe cedeu o nome, pegamos a Avenida Santa Maria, os imóveis, e
as construções do bairro que na época já eram poucas foram ficando para traz,
passamos por um lixão onde hoje em dia estão construídas as marginais do Tiete,
e um posto de gasolina, atravessamos uma velha ponte de madeira sobre do Rio
Tiete, passamos em frente a um grande terreno onde existia a torre de
transmissão da Radio Cultura, circundada por um belo lago onde alguns adultos
às vezes pescavam escondidos, já que havia em todo seu contorno, placas de
aviso de pesca proibida.
Passamos
em frente à Rua Comendador Souza onde até hoje esta localizado o campo do NAC,
Nacional Atlético Clube, (grande celeiro de craques para o nosso futebol, assim
como o Juventus e o antigo C. A. Ypiranga), atravessamos as porteiras da
chamada Água Branca e depois de contornarmos o Largo Pompeia chegamos ao ponto
inicial da linha, no finalzinho da Av. Pompeia esquina com Rua Turiassú ao lado
de um enorme deposito de bebidas da Cia. Antárctica Paulista depósito este que
há muitos anos não existe mais, assim como os armazéns da fabrica da (IRFM)
Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo que na época ocupavam quase toda a
extensão da atual Avenida Matarazzo.
Estávamos
ansiosos para chegar ao local eu nem percebi que o bonde já havia saído da Av.
Francisco Matarazzo ultrapassado o largo Padre Péricles nas Perdizes, o viaduto
Pacaembu e já estava em frente o Velho Circo Piolim na Avenida General Olímpio
da Silveira, portanto já bem próximo ao final da viagem, o que aconteceu mais a
em frente na altura da Alameda Glete, após termos ultrapassado a Praça Marechal
Deodoro.
Desci do
bonde lutando para se livrar de minha irmã, pois queria muito descer sozinho e
sem ajuda de ninguém (coisa de menino que já se sente adulto) e fiquei pela
primeira vez sozinho em cima daquelas ilhas que existiam no meio da antiga
Avenida São João para facilitar a travessia dos pedestres e servir de
plataforma para a subida e a descida dos passageiros dos bondes que circulavam
pelo local.
Subimos a
Glete em direção a Rio Branco rumo ao Palácio Campos Elísios, e pelo caminho
notamos um grande movimento de crianças e adultos seguindo nessa mesma direção,
e então no momento que aproximávamos do Palácio, as ruas foram ficando
congestionadas e ao aproximarmos do local do citado evento, eu e minhas irmãs
vimo-nos obrigados a pedir licença para seguir à diante.
Minha
primeira impressão ao chegar ao local era que o mundo todo também estava por
lá. Em 1947 a população paulistana estava um pouco acima de um milhão e meio de
pessoas, hoje imagino que no mínimo umas cento e cinquenta mil cabeças
circulavam no local, levamos pelo menos uns cinquenta minutos para achar o
final da fila que dava umas três voltas ou mais, em torno do quarteirão do
Palácio.
Quando
conseguimos achar o final da fila já passavam das 10 horas da manhã eu já
choramingava com sede e com vontade de ir ao banheiro, incomodo esse que passou
a ser abrandado à medida que eu passei a notar que os meninos que estavam nos
primeiros lugares dessa enorme fila, já transitavam de volta para suas casas
com seus presentes, essa maravilhosa visão abrandou um pouco a minha sede, como
também a minha vontade de ir ao banheiro, antevendo que meu sacrifício seria
compensado, no momento gostoso de ter um daqueles presentes, que aqueles
felizardos meninos portavam, também em minhas pequeninas mãos.
Aguardando
horas sob um forte sol naquela imensa fila eu assistia cheio de felicidade,
aquele maravilhoso desfile de meninos e meninas sorridentes e felizes,
carregando bicicletas, bolas de futebol de capotão, patinetes, lindas bonecas,
brinquedos a granel, que eu passei a suportar a tortura da sede e da vontade de
fazer Xixi até ao meio dia, aí consegui me livrar não sem certa vergonha
daquele terrível aperto, atrás de um caminhão estacionado na Alameda Nothmann,
logo depois minha irmã conseguiu um copo plástico, e com ele foi pegar água em
um bar estabelecido na ainda antiga e tímida. Avenida Rio Branco. O que para ela
foi muito custoso, já que no bar havia uma multidão pedindo água e permissão
para usar o banheiro, sentindo que tudo aquilo já estava caminhando para um
grande tumulto, o proprietário além de não querer mais permitir o uso do
banheiro, ameaçava prudentemente fechar o estabelecimento, fato que acabou
ocorrendo um pouco depois com ajuda da Guarda Civil.
Perto das
13 horas estávamos chegando próximos ao portão principal do Palácio, eu já não
via mais os meninos que passavam de volta para casa com grandes presentes, e
sim apenas umas pequenas sacolinhas, por fim, perto das 14 horas depois de seis
longas horas de sede, fome, atropelos e empurrões após atravessar um corredor
de uns quinze metros formados por homens da antiga e simpática Guarda Civil de
São Paulo, chegamos a enorme e esperada barraca de distribuição dos presentes
do Governador de São Paulo.
Sobrou
para nós, o resto de um grande banquete, uma bonequinha de pano, um saco de
balas e um pequeno chocolate Gardano, para elas. Um saco contendo um caminhão
de cinco centímetros, fabricados com um plástico mole imitando as rodinhas,
mais meia dúzia de micros caminhões iguais, porem bem menores, um saco de
balas, e um saco plástico contendo 10 bexigas coloridas. Foi o que me restou.
Mais
tarde já mocinho, toda vez que via documentários cinematográficos de Urubus
devorando restos de animais abatidos por leões na selva africana, me sentia
como um deles.
Não
preciso dizer que em 1957 dez anos depois, o meu primeiro voto assim como os
das minhas irmãs, foram dados ao Jânio Quadros para governador, e em 1960 ao
mesmo, para Presidente. Não por gostar do Jânio, mas para ser contra o Adhemar.
(santa e alienada inexperiência).
E assim
naquele "Lindo Natal" de 1947 eu as duras penas, acabei descobrindo,
que os últimos aqui na Terra. Serão sempre os ÚLTIMOS MESMO. RSRSRS.
Nenhum
pobre irá morrer ou sofrer, se não tiver um presente no dia de Natal.
Mas se
ele ganhar algo que machuque seu orgulho de ser humano, fatalmente carregara
esse trauma e essa frustração por toda vida.
Arthur
Miranda (tutu)
6 comentários:
Arthur,
se não fossem seus toques cômicos durante a narração, esta seria uma história tristíssima, que levaria às lágrimas os corações menos endurecidos pelas asperezas da vida. Mas a sua conclusão de que "os últimos aqui na Terra. Serão sempre os ÚLTIMOS MESMO", é brilhante!
Confesso que já andava sentindo falta dos seus textos, sempre tão bem elaborados.
Abraço.
Tutu, mais um texto emocionante, escrito com as tintas do coração.
Tal e qual a vida, você escreveu o drama e colocou pitadas de humor para amenizá-lo. Lindo!
Arthur, uma linda historia de vida,mas com fundo de tristeza. Confesso que ao ler seu texto torci para que ganhasse um presente a altura dos seus sonhos.Mesmo sem o presente ideal naquele natal, a vida, com certeza lhe enriqueceu com muitos outros.Parabéns pelo belo texto e um grande beijo.
Arthur, mais um belo texto, mixto de tristeza e toques de humor, eu também passei por isso mas foi no antigo Largo São Paulo, abraços, Leonello Tesser (Nelinho).
Tutu, já conversamos a respeito desse testemunho eloquente da pior espécie de logro que um adulto pode perpetrar com uma criança. Se vc tratar bem uma criança, com respeito, dedicação e amor, ela nunca vai esquecer. Se vc querer enganar essa mesma criança, NUNCA mais ela vai esquecer e sempre guardará um resquício de rancor pro resto de sua vida. Parabéns, Arthur.
Laru
ARTHUR:
"Quando a esmola é grande, até o santo desconfia."
O Adhemar queria votos! Não tinha a menor importância se, nesses eventos "caritativos", o povo sofresse às portas do Palácio, ou qualquer outro lugar.
Afinal, "o inferno está cheio de boas intenções", não é mesmo?
O teu presente foi "de grego". Mas o presente que você nos deu foi maravilhoso.
Nessa sua trajetória em busca do presente, você nos deu uma boa visão desta São Paulo de 1947. Adorei!
E você, mãe e irmãs tiveram sorte: voltaram para casa com os dedos e os anéis... Ahahahahahaaaaaaa! Afinal, o Adhemar era o Adhemar.
Abração,
Natale
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